O Sudão é um país localizado no norte de África, habitado por volta de 41 milhões de pessoas. Fazendo fronteira com, entre outras nações,  Chade, Líbia, Egito e Etiópia, o país se espreme entre as três grandes regiões africanas: está na fronteira do Magrebe, enquanto partes de seu território integram o Sahel e a África Subsaariana. O país, que durante o imperialismo capitalista colonial sofreu com uma dominação anglo-egípcia, tem tomado as manchetes dos jornais mundiais nos últimos meses.

Omar al-Bashir assumiu o poder do Sudão em 1989, após um golpe de Estado que contou com a ajuda de militantes islamitas; naqueles dias, o país vivia uma guerra civil que já se arrastava por 21 anos. Daí em diante, implantou uma ferrenha ditadura.

Pesa sobre Bashir uma condenação emitida pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), por genocídio cometido em Darfur – região que, desde 2003,  sofre com conflitos e onde a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que já tenham morrido 300 mil pessoas – no início dos anos 2000. Como noticiou o jornal portugûes Diário de Notícias:

“Al-Bashir é acusado de ter apoiado as violentas milícias árabes Janjaweed, que levaram a cabo crimes de guerra e ações de limpeza étnica contra as populações negras daquele país. As vítimas, segundo a acusação do TPI, eram sobretudo pertencentes às etnias fur, masalit e zaghawa. Mulheres que foram violadas por homens das Janjaweed contaram que, enquanto eram atacadas, eles lhes diziam que estavam a fazer um bebé mais clarinho. A ONU tentou, em vão, obter consenso no Conselho de Segurança da ONU para uma maior ação no Darfur. O atual secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, visitou a região, na altura na qualidade de alto-comissário da ONU para os Refugiados. Colin Powell, ex-secretário de Estado dos EUA, foi das poucas pessoas que ousaram, logo no início, em setembro de 2004, chamar genocídio ao que se passava naquela região do oeste do Sudão”.

A mesma reportagem frisa que o mandatário, mais de uma vez, desafiou o TPI: viajou à África do Sul, em 2015, e a Jordânia, em 2017, sem que as autoridades dos respectivos países cumprissem a condenação do tribunal internacional.

Omar al-Bashir, de 75 anos, se manteve absoluto até o fim do ano passado. Após 3 décadas de poder, uma série de protestos tomou o Sudão a partir de dezembro de 2018, principalmente por causa de uma prolongada crise econômica que, segundo uma reportagem da agência alemã Deutsche Welle, tem sua origem na independência do Sudão do Sul, região de maioria católica que fazia parte do Sudão, mas conquistou sua autonomia em 2005, e sua independência em 2011:

“Até a independência do Sudão do Sul, a economia era fortemente dependente do petróleo, que era responsável por 95% das exportações e metade da arrecadação do governo. Em 2001, o Sudão perdeu a maior parte dos campos petrolíferos, que ficaram com o Sudão do Sul”.

Os protestos resultaram em sua deposição e prisão, no dia 11 de abril de 2019. Em seu lugar, uma junta militar assumiu, prometendo um governo transitório de 2 anos, período após o qual eleições seriam convocadas. O fato é que a população e as entidades civis que haviam tocado os protestos não aprovaram a idéia de que seriam governados por uma junta militar por, no mínimo, 2 anos, sem eleições livres e decidiram manter as demonstrações: eles montaram um acampamento em torno do Ministério da Defesa e bloquearam vias da capital, Cartum. A junta militar até chegou a abrir negociação com representantes dos movimentos civis, mas tudo foi suspenso quando, em 3 de junho, militares atiraram contra os manifestantes, deixando, como saldo, mais de 100 mortos, segundo noticiou a Reuters, e por volta de 600 feridos, de acordo com levantamento do jornal Nexo. O episódio foi altamente condenado por potências internacionais, como os Estados Unidos da América, e instituições internacionais, como a ONU, a União Européia e a União Africana. Parecia que os canais de diálogo e negociações haviam se fechado. Foi então que entrou em cena a figura de  Abiy Ahmed.

Ahmed assumiu o cargo de primeiro-ministro etíope no início de 2018. Foi o primeiro da etnia Oromo a ocupar tal cargo e, por isso, sua indicação foi vista como um meio de apaziguar os ânimos em um país que sofria com choques étnicos; sua figura foi vista como a de um conciliador. Na diplomacia, a Etiópia, sob o governo de  Abiy Ahmed, parece buscar maior protagonismo, sempre através do diálogo: logo em seu primeiro ano de governo, a Etiópia declarou fim do estado de guerra com a Eritréia e restabelecimento das relações entre os 2 países, após 20 anos de hostilidades entre as partes. Para tanto, o primeiro-ministro etíope aceitou desocupar militarmente a região de Badme, que justamente foi o motivo do conflito entre os dois países e, assim, cumprir de forma integral um acordo de paz firmado em 2000 entre seu país e os vizinhos. Para aumentar ainda mais a simbologia do momento que vive a diplomacia da Etiópia sob a égide de  Abiy Ahmed, a declaração de paz foi assinada em Asmara, capital da Eritreia, solo em que um mandatário etíope não pisou por décadas.

Tendo a mentalidade de valorizar as saídas negociadas e colocar seu país como um importante player regional que Ahmed, logo após a matança ocorrida em Cartum no último dia 3, voou ao Sudão no dia 7, reunindo-se tanto com representantes da junta militar, quanto com líderes dos protestos. Lá, expressou seu cometimento em fazer florescer a paz na região, se ofereceu para realizar a mediação entre os dois lados em desacordo, além de sugerir que os diálogos fossem levados para Addis Abeba, capital da Etiópia – proposta esta recusada pelos militares sudaneses. A idéia de Abiy Ahmed e que foi apresentada à Junta Militar e a oposição é a de formação de um conselho de transição integrado por 15 membros – 8 civis e 7 militares. A iniciativa parece estar surtindo efeito:  há notícias de que as lideranças civis já estão elaborando a lista de nomes de seus 8 indicados para o conselho de transição.

O governo brasileiro, durante a crise venezuelana, vem, explicitamente, tomando atitudes que representam o oposto da postura conciliadora e protagonista que a Etiópia tem praticado em sua diplomacia.

Desde que assumiu o Ministério das Relações Exteriores, Ernesto Araújo tem recebido duras críticas, por adotar, na política externa brasileira, diretrizes que causariam uma diminuição da relevância brasileira no cenário internacional e, ao mesmo tempo, afastam o Brasil de parceiros estratégicos para favorecer parceiros que, no cenário atual, não são tão importantes assim. Em entrevista para o The Intercept Brasil, Samuel Pinheiro, um dos mais experientes diplomatas brasileiros e que foi o número dois do Itamaraty durantes os dois mandatos de Lula da Silva, falou pesadamente contra a decisão do Brasil de renunciar ao Tratamento Especial Diferenciado (TED) na Organização Mundial do Comércio (OMC) – “O Tratamento Especial Diferenciado é uma reivindicação histórica dos países subdesenvolvidos. Parte do princípio de que existem países desenvolvidos e países subdesenvolvidos. Vocês já foram ao aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro? Já viram como é ali perto? Já foram ao aeroporto de Zurique? É diferente, né? Aqui é um país subdesenvolvido. Já os desenvolvidos querem extrair o máximo possível das relações de troca” – e se mostrou descrente de que o chanceler do governo Bolsonaro encampe uma luta que, após a saída dele e de Celso Amorim do comando do Ministério das Relações Exteriores foi abandonada – “a luta pela redistribuição de quotas e de poder de voto  [do Brasil] no FMI [Fundo Monetário Internacional] e no Banco Mundial”: “Nunca mais ouvi falar nisso. Porque os EUA são contra, o congresso americano é contra, isso diminui o poder americano. Você acha que o presidente Bolsonaro vai lutar para diminuir o poder americano? Eu tenho a impressão que não é bem o caso”. Sobre a venezuela, de forma específica, o diplomata disse que o Brasil está cometendo um grande erro interferindo no país vizinho “sem ter força para tal” e que, nesta questão, o Brasil não passa de um “ajudante dos EUA”.

À época da tentativa frustrada de Juan Guaidó, Donald Trump, Jair Bolsonaro e Ivan Duque de fazer entrar na Venezuela uma ajuda humanitária, Celso Amorim, ministro das relações exteriores durante o governo Lula e que conduziu a política externa brasileira ao seu ápice, condenou veementemente, em sua coluna no blog Nocaute, a postura do país frente a ação, que, de acordo com ele, foi “provocativa” e tinha o objetivo de “favorecer uma facção”. No mesmo vídeo, ele chamou a investida de “inrefletida” e disse que um conflito na Venezuela seria uma situação que não se acomodaria de forma fácil, pois influenciaria toda a geopolítica mundial.

O fato é que a “escola brasileira de diplomacia” é uma das mais admiradas do mundo. É uma tradição que começou com o Barão do Rio Branco e passou por nomes emblemáticos, como Ruy Barbosa (o águia de Haia), Bertha Lutz, Oswaldo Aranha, Sérgio Vieira de Melo, e, talvez, tenha hoje como seus principais representantes Roberto Azevedo, que comanda a OMC, Celso Amorim e Samuel Pinheiro, estes últimos já citados anteriormente neste artigo. É uma tradição que se orgulha de não ter se envolvido em nenhum conflito em seu continente desde a Guerra do Paraguai e sempre ter dado ao Brasil a imagem de mediador confiável. Na primeira década dos anos 2000, a diplomacia brasileira também tomou gosto por ser protagonista, chegando a almejar ultrapassar os limites de potência regional para ser um país de relevância global no tabuleiro da diplomacia mundial – um país que desabrochava diplomaticamente pautado pelas relações sul-sul e que tinha trânsito em África e na América Latina a partir da cooperação técnica, vendendo know-how de seus grandes programas sociais e passando a imagem de que o caráter de sua atuação estava distante das práticas usuais das velhas potências.

A postura da atual administração federal, no caso venezuelano, tem representado uma quebra, tanto na tradição histórica, quanto na “tradição recente” da diplomacia brasileira: invade a soberania venezuelana, insita o conflito, não oferece perspectivas de resolução ou amenização da crise humanitária que atinge o país bolivariano,  não é nada conciliadora, não coloca o Brasil como um protagonista na questão.

Curiosamente, a diplomacia etíope atualmente se parece mais brasileira do que a própria diplomacia do Brasil.