Por Luiz Henrique Eloy*

O Conselho do Povo Terena realiza desde 2012 sua Grande Assembleia para discutir diversos temas sobre sua luta e resistência. Na última semana aconteceu a 13 ª Assembleia do Povo Terena na aldeia Ipegue, no município de Aquidauana em Mato Grosso do Sul. Na pauta, estavam os principais retrocessos da política indigenista brasileira no contexto do governo Bolsonaro. Essa Assembleia reuniu cerca de 800 lideranças indígenas como caciques, líderes de retomadas, mulheres, anciões e juventude, de diferentes povos. Além dos Terena, participaram os Guarani Kaiowá, Kinikinau, Kadiwéu, Guató, Guajajara, Kaigang, Xukuru e Xakriabá.

No terceiro dia da Assembleia Terena houve a mesa que reuniu grandes nomes da política nacional, tais como a deputada federal indígena Joênia Wapichana, a deputada federal Áurea Carolina, o deputado federal Edmilson Rodrigues, o deputado federal Dagoberto Nogueira, o deputado estadual Pedro Kemp e as líderes indígenas Sônia Guajajara e Célia Xakriabá. Nesta mesa, após a fala do cacique da aldeia Ipegue, Sr Ademir Soares, foi me dado a oportunidade para falar tendo em vista que sou oriundo dessa comunidade. O evento foi especial para mim, pois aconteceu na escola indígena onde recebi as primeiras lições dos meus professores indígenas. Quando peguei o microfone, me deparei com autoridades não indígenas sentados na mesa juntamente com os caciques. Logo, me veio a mente uma reflexão que abordei em minha tese de doutorado defendido recentemente no Museu Nacional (UFRJ), tratando especialmente da categoria, agora tratada como analítica, dos puxarará.

Na medida que o termo puxarará é utilizado para designar o som do trovão, na língua Terena, ela também é utilizada para se referir ao homem branco. Durante a pesquisa de campo do doutorado busquei entrevistar pessoas tanto da TI Taunay-Ipegue quanto da TI Cachoeirinha e quando questionado porque dessa relação, entre homem branco e o som do trovão, a primeira resposta foi de Dona Nena, ancião da aldeia Água Branca, dizendo: “Porque antigamente quando o puxarará falava, acabou, ninguém retrucava”. Esta mesma reflexão foi reforçada pelo professor Estevinho Floriano. Quando lhe questionei sobre isso e devolveu a seguinte pergunta: “Quem questiona o trovão? Puxarará falou, água parou!”.

A primeira vez que ouvi a palavra puxarará sendo usada como sinônimo de homem branco, foi na retomada Esperança no ano de 2013, por ocasião da reunião do Conselho Terena. Até então, desde minha infância, só havia escutado o termo purutuyê, para se referir ao homem branco, como é mais utilizado nas comunidades. Nesta reunião, ouvi atentamente a fala de Dona Lucila que explanava de modo incisivo, se direcionando aos homens, que não devíamos ter medo dos puxarará. Dona Lucila dava ênfase afirmando que os puxarará iriam vir bem bravos, mas não deveriam temer pois estavam lutando pelo território terena: “não podemos abaixar a cabeça, temos que enfrentar. É pelos nossos filhos e netos”.

Ainda durante a pesquisa de campo, ouvi dos professores Estevinho e Élcio Albuquerque a reflexão que vem ao encontro da análise feita em torno do despertar do povo Terena para os seus direitos. A superação da situação de dominação requer romper com o paradigma de autoridade expressada pelo puxarará. Estevinho afirmou: “esse puxarará não tem mais razão de ser, porque não temos medo mais”. No mesmo sentido Élcio reafirmou: “se puxarará falar, hoje o Terena responde à altura”. A partir dessas frases, é que pude entender uma outra reflexão deixada pelo professor da aldeia Ipegue, Jonas Gomes, anos atrás durante a pesquisa de mestrado, quando afirmou: “essa geração que está vindo agora, não vai baixar a cabeça para os purutuyê”. Seja na aldeia ou na retomada e até mesmo em instância estatal, como por exemplo, no judiciário e mesmo no Congresso Nacional quando deixei claro ao me referir a deputada federal Joênia Wapichana; “se o puxarará falar, os Terena têm a capacidade de responder, por meio de porta vozes próprios”.

A Assembleia Terena no Ipegue teve todo um significado especial. O nome Ipegue é uma modificação do termo terena “Epeakáxoti”, utilizado para se referir ao lugar onde as garças renovam suas penas. Diante dos tempos tão difíceis que vivenciamos, Ipegue foi o lugar onde os povos se encontraram e renovaram o seu compromisso com a luta pela terra, a mãe de todas as lutas.


* Advogado e antropólogo, doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional e assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)

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