Texto por Felipe Honorato

Apesar da grande tradição oral que há em muitas partes de África, existem, no continente, muitos autores e autoras que produzem uma literatura que os padrões ocidentais chamaria de erudita. No entanto, tirando 4 nomes que chegam às nossas prateleiras – Mia Couto, Pepetela, Chimamanda e Nelson Mandela, através de sua biografia -, a literatura africana praticamente não está presente nas livrarias brasileiras. A literatura africana, além de seu refinamento – vale lembrar que o continente já arrebanhou 4 prêmios Nobel de Literatura, com o nigeriano Wole Soyinka, em 1984, o egípcio Naguib Mahfouz em 1988, a Sul-africana Nadine Gordimer em 1991, e o também sul-africano J.M. Coetzee em 2003, além de 6 prêmios Camões – serve também para iluminar um pouco do obscurantismo que cerca o conhecimento que o brasileiro de forma geral tem sobre o continente. A seguir, deixo algumas dicas de livros, sejam eles acadêmicos ou literários, e artigos com os quais tive contato e indico para todos que queiram conhecer um pouco mais sobre o que é escrito em África e, o mais importante, a narrativa sobre o continente construída por seus próprios filhos.

Uma grande questão, para quem se interessa por África, é conhecer a história do continente e fugir das narrativas construídas por olhares “ex-ópticos” – olhares externos e que, muitas vezes, carregam velhos estereótipos. Por isso, começo indicando dois grandes manuais sobre história da África escrito por dois pesquisadores nascidos no continente. Elikia M’Bokolo é um historiador congolês. Filho de um médico congolês que teve de fugir com a família para a França após o assassinato do líder independentista Patrice Lumumba, diz que escolheu sua profissão após ouvir, em um discurso, o mesmo Lumumba falar sobre a história dos africanos pelos africanos. Ele escreveu uma obra clássica, dividida em dois volumes (tomos), que percorre a história da África negra da antiguidade até a contemporaneidade: “África negra: história e civilizações”. Os dois volumes da obra – sendo que o primeiro engloba a história africana até o século XVII, e o segundo do Século XIX em diante –  foram publicados no Brasil através de um trabalho conjunto entre a Casa das Áfricas e a Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA), mas se encontram, como uma representante da própria editora me confessou na última feira do livro da USP, “esgotadíssimos”.

Para quem estiver interessado mais especificamente na história da República Democrática do Congo, país com o qual mantenho uma relação mais próxima, minha dica são dois trabalhos do historiador Didier Gondola. Conheci a obra de Gondola através de um africanista especialista em cultura popular africana pelo qual nutro imensa admiração – o professor Wilson Trajano Filho, da Universidade de Brasília (UnB). Ele, em uma disciplina, nos indicou um capítulo do livro “ Gendered Encounters: Challenging Cultural Boundaries and Social Hierarchies in Africa” chamado “Popular Music, Urban Society, and Changing Gender Relations in Kinshasa, Zaire (1950-1990)”. Este capítulo, escrito por Charles Didier Gondola, é minha primeira indicação de leitura da obra deste historiador. Nele, ele fala sobre como o Congo colonial era um local de hibridização, como esta hibridização foi responsável pela formação da música popular congolesa e como a música popular congolesa acabou por transformar-se numa arma para vencer barreiras de gênero na atual República Democrática do Congo. Gondola, que é professor da Universidade de Indiana, nos EUA e tem o título de doutor em História Africana pela Universidade de Paris VII – Denis Diderot, escreveu também um livro sobre a história do Congo intitulado “The History of Congo”, o qual também deixo como dica para quem quiser saber mais sobre a história do maior país da África Central.

Jean Mabeko-Tali é um um historiador e romancista congolês – nasceu na República do Congo, também chamada de Congo-Brazzaville para se diferenciar do vizinho Congo-Kinshasa (República Democrática do Congo). Conviveu de perto com muitos nomes da luta pela independência angolana, que se refugiaram e organizaram sua resistência no Congo-Brazzaville e, depois, após ter estudado na França, foi à mesma Angola, agora independente, dar aulas na Universidade Agostinho Neto, em Luanda. Ele possui um artigo, que me fez refletir bastante, que trata sobre a sistemática de exploração e espoliação das maiores potências coloniais, com foco principal nos franceses: diferenças e aproximações entre o mandato direto, metodologia de exploração e espoliação francesa, o mandato indireto, metodologia de exploração e espoliação do Império Britânico, e a metodologia belga, um híbrido entre o modelo francês e o modelo britânico. Este artigo se chama “Considerações sobre o despotismo colonial, e a gestão centralizada da violência no Império colonial francês” e está acessível, de forma gratuita, aqui.

Se existe uma região africana que teve o contexto pós-colonial marcado por duras consequências trazidas no arrasto dos antigos regimes coloniais, essa região é a dos grandes lagos africanos, especialmente os países que tem como ex-metrópole a Bélgica: República Democrática do Congo, Ruanda, Burundi. Ruanda e Burundi foram tomadas por disputas étnicas entre Hutus, de origem Bantu, e Tutsis, povo que tem suas origens na atual Etiópia e que o colonizador, através de teorias racistas, escolheu para ser seu parceiro no empreendimento colonial – apoiado no mito hamítico. Isso, após os processos de independência política, acabou por descambar numa série de genocídios, dentre os quais o mais letal foi o ocorrido em Ruanda em 1994 – foram 800 mil pessoas assassinadas entre os meses de abril e julho do referido ano. Para quem quiser ler mais sobre este trágico evento, indico duas obras – uma acadêmica e outra literária. Mahmood Mamdani é um historiador ugandês. Como seu nome nos adianta, ele é um africano com raízes indiana – e sofreu, em seu país de origem, por causa de sua ascendência. Ele, que fez sua educação superior nos Estados Unidos e participou da luta pelos direitos civis, é hoje professor da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, após ter ocupado posições acadêmicas em duas grandes universidades africanas: a Universidade de Makerere, em Uganda, e a Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul. Mamdami é o autor do livro “When victims become killers” (“quando vítimas se tornam assassinos”, em tradução livre para o português), em que trata, com entrevistas feitas com envolvidos no genocídio, inclusive, do contexto histórico que formou o ambiente que possibilitou a matança em Ruanda, do genocídio em si e de suas consequências. Infelizmente, este livro ainda não conta com tradução para o português. Scholastique Mukasonga é uma escritora ruandesa. Ela esteve nos últimos dois anos no Brasil e, em 2017, foi uma das estrelas da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. De etnia Tutsi, se refugiou na França e viu sua família ser diretamente afetada pelo genocídio. No livro “A Mulher de Pés Descalços”, ela conta memórias familiares e pessoais sobre a tragédia de 1994.

À época da independência da República Democrática do Congo, anos de 1959 e 1960, mais especificamente, o poder colonial belga não enfrentava nenhuma ameaça armada ao seu território ocupado. Apesar de ter sempre empregado a violência de forma sistêmica contra os congoleses na colônia – seja ela física, como as mutilações e castigos físicos nos seringais e no extrativismo do marfim, ou simbólica, através da racismo e da supressão de direitos políticos e civis -, os congoleses lutaram por sua independência através de meios pacíficos. Ainda assim, quando Patrice Lumumba foi eleito o primeiro primeiro-ministro congolês, as potências ocidentais viram no nacionalismo dele um porta de entrada para o comunismo. Assim, as atitudes das grandes potências para com o Congo foram drásticas: apoio à secessão do Catanga, assassinato de Patrice Lumumba, golpe de Estado e imposição de uma ditadura que duraria 32 anos e seria marcada pelo enriquecimento mais do que suspeitoso do ditador Joseph Mobutu, uma rotina de abuso dos direitos humanos e passe livre para a exploração, por parte de mineradoras estrangeiras, das riquezas minerais do Congo. Sobre este contexto, apesar de sempre ter negado, tratou Sony Labou Tansi.

Sony Labou Tansi nasceu em Kimwanza, então Congo Belga, em 1947 e faleceu em 14 de junho de 1995, em Brazzaville, República do Congo, vítima da Aids. Foi dramaturgo, romancista, poeta, diretor de teatro e ator, além de professor de inglês. Tansi foi fundador da companhia de teatro “Rocado-Zulu Theatre de Brazzaville”, com a qual rodava o mundo a fazer apresentações. A obra do escritor é composta, majoritariamente, por peças teatrais. Dentre elas, pode-se destacar “Conscience de tracteur”, sua primeira peça e que venceu o prêmio Concours theatral interafricain de Radio-France Internationale em 1979. Romances foram, ao todo, 8 publicados, 6 deles pela importante editora Éditions du Seuil: “L’Anté-peuple”, de 1983, recebeu o Grand prix littéraire d’Afrique noire; Aqui indico seu primeiro romance, “La Vie et demie” (“Life and a Half” em inglês), publicado em 1979.

O enredo de Life and a Half se desenrola na imaginária República da Katamalanasia; sua capital, Yourma, é onde a maior parte das ações do romance acontece. Providential Guide é um líder violento e adepto do canibalismo – não dificilmente tortura até a morte e depois come seus opositores; ex-ladrão e perseguido pela polícia, muda de identidade e de cidade, emergindo ao poder por meio de um golpe de estado, após traçar uma carreira de prestígio dentro das forças armadas. Seu governo, que dura 25 anos, é suportado por uma combinação de 3 forças: violência; o apoio do que o autor chama de “potência estrangeira”; ajuda estrangeira – a técnica é descrita no livro: no caso de uma ação do governo, o número de mortos é sempre diminuído; no caso de um desastre, o número de vítimas é sempre inflado, para que se possa receber ajuda externa. Martial era o líder da resistência ao governo de Providential Guide, a qual comandava desde a cidade de Yourma-la-neuve. Perdeu a luta armada contra as tropas governamentais, que receberam auxílio da dita “potência estrangeira” e, depois de morto, virou mártir. Martial deixou uma filha – Chaïdana. Única a sobreviver de sua família, Chaïdana era dona de uma beleza inigualável, fato que se mostra essencial no decorrer da narrativa. É por meio do enlace destas 3 personagens que o livro se desenvolve. Life and a half é, estruturalmente, dividido em 9 capítulos, todos eles sem título.

Apesar da importância da obra, o livro de Sony Labou Tansi, mesmo publicado há mais de três décadas, ainda não conta com tradução para o português.

Para quem quiser navegar pela literatura africana para além das dicas que trouxe aqui, um bom ponto de partida é a lista dos 100 melhores livros africanos do século XX. Este projeto nasceu na Feira Internacional do Livro do Zimbábue em 1998 e acabou se concretizando em um cerimônia de gala em 22 de julho de 2002 na Cidade do Cabo, África do Sul. De uma lista inicial de 1521 títulos propostos por indivíduos e organizações, uma seleção prévia escolheu 500 títulos de onde saíram as 100 obras finais. Na lista estão nomes incontestáveis da vida literária, política e acadêmica africana do século XX, como o senegalês Léopold Sédar Senghor, os ganeses Anthony Appiah e Kwame Nkrumah, o moçambicano Eduardo Mondlane e o guineense Almicar Cabral. A lista pode ser acessada aqui (em inglês).

Boa Leitura!