Por Carolina Moura/Le Monde Diplomatique

Reinventando suas próprias esperanças, seis detentos unem-se para formar um grupo de teatro dentro da prisão de Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro: o Kriadaki

Era por volta das 14h quando chegamos a casa de Adriano Xerife, na entrada da favela do Jacarezinho, Zona Norte do Rio. Paredes verdes e descascadas davam para a escada íngreme que levava até sua laje, com a vista da comunidade atrás. “Querem uma cervejinha?”, ofereceu o Xerife. Sua esposa preparava o almoço para a turma que ia se reunir para um sarau mais tarde na quadra do Pica-Pau.

Presidiário por 15 anos, hoje em condicional, ele, junto com mais seis amigos detentos, começaram um grupo de teatro dentro da prisão de Bangu chamado Kriadaki.

Adriano (Xerife) Rodrigues de Oliveira, de 46 anos, conheceu o teatro através de Sodré, dentro de Bangu 2. Foi preso em um assalto, em Angra dos Reis, em 1993. Já tentou fugir várias vezes e onde chegava era chamado de “caôzeiro”.

“Nasci aqui no Jacarezinho. O que eu posso dizer? Eu vi, eu cresci, eu me envolvi. Virei marginal. Fui condenado, mas não fui ressocializado. Isso a sociedade esqueceu”, disse. “São muitos problemas no sistema penitenciário. A rotina lá dentro é uma luta para sobreviver porque o crime continua. O crime não parou, só mudou de lugar. A cultura dentro da cadeia é: os mais fortes vencem. Eu, no sistema, tive o desprazer de conhecer mais a violência do que aqui fora”, completou ele. “Chegou um dia que eu estava cansado de tentar fugir. Não dava mais para continuar com aquela vida. Perdi pai e mãe dentro da prisão. Meu filho começou a me visitar e me contou que estava entrando no mundo do rap. Pediu dicas de uns lugares para cantar. Comecei a ajudá-lo nisso. Fiquei mais calmo e virei ligação. Para quem não sabe, quem é ligação é aquele que pode ir na cantina, comprar lanche para os outros presos, pode ficar circulando. Foi quando conheci o Sodré”, explicou o Xerife.

Edson Sodré Teixeira, de 57 anos, tem que pedir autorização na justiça com algumas semanas de antecedência para comparecer as reuniões e as apresentações do grupo.  Ele está preso há 25 anos e chegou a pegar uma pena de 109 anos. Desde 2014 seu regime é semi-aberto.

Nascido em Vitória, no Espírito Santo, chegou ao Complexo Penitenciário Frei Caneca, no Centro do Rio, em 1993. Começou no mundo do crime furtando um carro. Depois, passou a praticar assaltos e entrou para uma quadrilha de sequestros no Rio de Janeiro.

Planejou sua primeira fuga dentro da cadeia, mas não teve sucesso. Seus comparsas conseguiram, mas ele não por problemas técnicos. Sua entrada no teatro tinha um único objetivo: fugir. Segundo Sodré, havia uma manilha que passava por baixo do auditório de teatro e poderia ser uma alternativa para a fuga. “Comecei a frequentar as aulas para estudar meu plano de fuga. Não deu certo, mais uma vez. Um colega meu foi visto com as ferramentas e aí perceberam. Fui pego. No entanto, não deixei de frequentar as aulas. Eu peguei gosto pela coisa e continuei”, comentou.

Edson Sodré Teixeira. Foto: Yago Gonçalves

A prisão Frei Caneca foi desativada e Sodré foi transferido para o Complexo Penitenciário de Bangu. “O sistema antigo de cadeia é diferente do atual. Na Frei Caneca o preso tinha aula de capoeira, teatro, tinha biblioteca. Nesses presídios novos somos tratados como lixo. Lá é comparado a um grande lixão, só que, olha a ironia, o lixo as pessoas até reciclam. E os presos?”, acrescentou. “Bangu é muito violento. Toda hora alguém é morto. Lá a morte se aproxima devagarinho. Quando tem dois ou três conversando com um é certo que o cara vai morrer. De repente o corpo está no chão cheio de facadas”, comentou. “Depois do meu contato com o palco eu não fui mais o mesmo. Passei a ler muito. Shakespeare, Kant, Rousseau. Percebi que estar preso é na mente. A sabedoria liberta. Decidi prestar vestibular e passei para Letras, na UniRio. Cursei seis períodos, fiz Enem de novo e comecei a estudar teatro. Atualmente sou aluno e frequento a faculdade”, finalizou.

 

Encenação do grupo Kriadaki (Foto Facebook)

Adriano e Sodré foram até o diretor do presídio de Bangu 2 para pedir a criação de um grupo de teatro. “Sodré costuma dizer que a cultura tem muita força. Chegamos lá e o diretor estranhou nosso pedido. Mas contestamos, falamos que dentro da cadeia só tem morte e rebelião. Uma senhora ouviu nosso papo e falou de um texto que a gente já poderia começar ensaiando chamado ‘Os Saltimbancos’”, lembra Adriano. “Eu adorei a ideia. Fazer uma peça assaltando um banco? Que maravilha! Falei para o Sodré que ela era das nossas. Chegou no dia seguinte, distribuíram os textos e eu não li nada sobre o assalto. Fui para grade avisar ao Sodré que não era possível. Cadê a peça assaltando um banco?”, completou. “Sodré me acalmou dizendo que era texto do Chico Buarque de Holanda. E eu lá sabia quem era Chico Buarque? Perguntei logo se esse cara era dono de alguma boca. Edson tentou explicar que ele passou por umas poucas e boas também, que sofreu na ditadura. Foi quando eu gritei: que ditadura? Isso aqui é Bangu 2 parceiro! No fim, a peça foi um sucesso. Apresentamos no dia das crianças e para nossos familiares. Depois até comecei a gostar do Chico Buarque também”, comentou.

“O teatro transformou minha vida. Aquele Adriano caôzeiro, que vivia querendo fugir e era o valentão, acabou. Hoje sou uma nova pessoa. Não quero ficar rico. Nossa promessa é levar para os jovens, através das nossas peças, que o crime não compensa. Agora eu tenho autoridade para falar com algum desses meninos que ficam armados e explicar que eu já estive do lado deles. Eu vi e vivi a violência. E aí? Estamos em um país que a cultura não tem valor e os moradores de comunidade também não. O que a gente quer é cultura na periferia. Foi no teatro que eu percebi que tinha que saber falar direito. Que eu tinha que respeitar para ser respeitado. Porque na cadeia é tudo na neurose, é no miolo, é na faca, na bala, na violência”.

O mormaço daquele sábado e o barulho do latido das duas cachorras que estavam no quintal deu espaço para os tiros ensurdecedores que começaram por volta das 15h. “Não preocupa não, aqui é sempre assim. Relaxa “, disse a esposa do Xerife.

Sentado no sofá assistindo televisão, um pouco tímido, o outro integrante do grupo almoçava.

Edson de Souza. Foto: Yago Gonçalves

Edson de Souza, de 58 anos, conheceu Adriano muito antes da história do teatro acontecer. Eles se encontraram na delegacia de Angra dos Reis, em 1993. Edson estava sendo preso por latrocínio, roubo seguido de morte. “Passei um tempo no presídio de Água Santa, depois fui para o Frei Caneca. Lá decidi ocupar minha mente. É aquele ditado né? cabeça vazia oficina do diabo. Depois apareceram uns professores da UniRio falando da oficina de teatro. Passei um tempo pensando e depois decidi entrar nas aulas. Disse que me encaixava. Eu já fui palhaço, iria conseguir ser ator”, disse ele, condenado a 28 anos de prisão, ficou preso 12 e hoje está em liberdade total. Sua pena diminuiu graças a ajuda de uma advogada que observou seu desempenho artístico e o ajudou. “Foi frequentando as oficinas que conheci Sodré. Tocamos para frente a ideia do grupo de teatro. Hoje sou outra pessoa. Aquele Edson de Souza que mexeu com crime não existe mais. Quando sai da prisão, em 2004, fui morar com a minha irmã em Belford Roxo. Mas meu cunhado batia muito nela e para não voltar onde eu estava decidi sair de lá. Fui morar na rua. Comi muita comida do lixo, até que um colega de presídio foi solto, me viu naquela condição e me chamou para morar com ele em troca de trabalho. Passou uns anos, tive meu emprego de carteira assinada em uma fábrica de papel higiênico. Hoje, estou casado, tenho meus filhos e não devo nada a justiça. Queremos colocar na cabeça das pessoas, através da nossa arte, que não é com roubo que a vida vai mudar. É preciso ser humilde e querer vencer com muita luta”, finalizou.

No fim, a chuva torrencial que caía sobre a favela na tentativa de acalmar o tiroteio impossibilitou o sarau de acontecer. Adriano, Edson e Sodré foram para o bar mais próximo e passaram a noite recitando poemas. Já dizia Manoel de Barros, liberdade caça jeito.

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