Por Rodolfo Ribeiro C. Marques

Ao fechar a fronteira, o Brasil estaria infringindo o princípio da não-devolução ao repelir potenciais refugiados, entre outros motivos

No dia 13 de abril, o governo de Roraima ajuizou no STF uma Ação Cível Originária (ACO), em face da União, requisitando, enquanto tutela antecipada, o fechamento da fronteira com a Venezuela e a limitação do ingresso de solicitantes de refúgio venezuelanos. Segundo os autores da ação, os pedidos tinham o objetivo de aliviar a crise migratória que acomete aquele estado, impelindo a União a cumprir “o seu papel administrativo na consecução da proteção, controle e fiscalização das fronteiras de maneira efetiva.” No dia 6 do mês passado, após o tumultuado fechamento da fronteira por determinação do juiz da 1ª Vara Federal de Roraima, a ministra Rosa Weber, relatora da ACO, indeferiu os pedidos formulados pelos autores, alegando, entre outras coisas, que, mesmo em face das dificuldades que o acolhimento a refugiados naturalmente impõe, não se pode partir para a solução mais fácil de “fechar as portas”, equiparável a fechar os olhos, cruzar os braços.

Afinal, poderia o Brasil, à luz de suas obrigações internacionais, simplesmente fechar as suas fronteiras àqueles que buscam refúgio? Essa é a pergunta que vem sendo feita nos últimos dias, em razão da escalada da tensão na fronteira com a Venezuela e do recente conflito em Pacaraima.

O Brasil é signatário de diversos tratados que tutelam os direitos das pessoas migrantes, entre eles a Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, a qual prevê, em seu artigo 33(1), o principal limite jurídico ao fechamento das fronteiras: o princípio da não-devolução (também conhecido como princípio do non-refoulement), que proíbe o envio de uma pessoa refugiada a territórios em que sua vida e/ou a sua liberdade possam estar ameaçadas. Este é o seu propósito: não retornar, de maneira alguma, um indivíduo perseguido aos seus algozes.

Para a Convenção, no entanto, refugiada será a pessoa que, temendo ser perseguida por sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou pertencimento a determinado grupo social, seja obrigada a deixar seu país de origem ou de residência habitual em busca de proteção. Além de incorporar essa definição, a legislação brasileira amplia o conceito de refugiado, reconhecendo como tal o indivíduo que, em razão de grave e generalizada violação de direitos humanos, tenha deixado seu país para buscar refúgio alhures (artigo 1º, III, da Lei 9.474/97). Para o governo brasileiro, contudo, os venezuelanos, via de regra, não satisfazem nenhuma das duas definições. Aos olhos do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), a quem cabe decidir sobre os pedidos de refúgio no Brasil, a crise humanitária na Venezuela não se equipara, em sua gravidade, a um conflito armado, não sendo, portanto, hipótese apta a ensejar a aplicação da definição expandida de refugiado.

Acontece que, em razão de sua essencialidade, a aplicação do princípio da não-devolução independe do reconhecimento formal da condição de refugiado, devendo ser observado tão logo o indivíduo manifeste o interesse em solicitar refúgio. Assim, ao solicitante será garantido acesso ao território e o direito de nele permanecer até a decisão final sobre sua demanda (sendo-lhe assegurado o devido processo legal), já que sobre ele recai uma presunção de que seja refugiado e, consequentemente, de que sua vida e/ou sua liberdade possam estar ameaçadas. Caso assim não fosse, bastaria ao Estado expulsar ou repelir solicitantes de refúgio na fronteira para que se visse livre de suas obrigações internacionais. Ademais, a discussão sobre a aplicação – ou não – dessa norma nos postos de fronteira é irrelevante, já que ao se apresentar às autoridades fronteiriças, o indivíduo estará no território do Estado e sob sua jurisdição.

Ainda, o efeito prático da observância do princípio do non-refoulement em situações de fluxos em massa – a exemplo do que acomete Roraima – é o instituto da proteção/refúgio temporário, o qual, por definição, impõe aos Estados um dever de admitir, mesmo que temporariamente, solicitantes de refúgio que fogem em massa de conflitos armados, violência generalizada ou graves violações de direitos humanos.

Portanto, ao fechar a fronteira, o Brasil estaria infringindo o princípio da não-devolução ao repelir potenciais refugiados, uma vez que, em se tratando de um fluxo migratório misto, não é possível assumir que determinados migrantes não possuem fundado temor de perseguição sem antes analisar, de forma individualizada, suas solicitações de refúgio. Ora, mesmo que o governo brasileiro não tenha reconhecido o pleito de boa parte dos venezuelanos, isso não cria, por si só, uma presunção de que todo o indivíduo que deixa a Venezuela será incapaz de se beneficiar da condição de refugiado e que, por isso, não possa requerer refúgio. Também do ponto de vista prático, a medida não traria resultados desejáveis, apenas aumentando o número de entradas clandestinas e agravando, ainda mais, o delicado estado de vulnerabilidade desses migrantes, que buscariam outras rotas.

No contexto atual, uma das soluções mais viáveis seria a intensificação do processo de interiorização dos venezuelanos em outros estados da federação, aliviando a pressão demográfica e econômica enfrentada pelos municípios fronteiriços. O governo brasileiro poderia, ainda, reconhecer àqueles solicitantes de refúgio a condição de refugiado à luz da definição expandida insculpida no artigo 1º, III, da Lei 9.474/97. A sugestão não é absurda, bastando reconhecer, no plano jurídico-administrativo, o que já se reconhece à exaustão no plano político: na Venezuela há uma grave e generalizada violação de direitos humanos. A medida robusteceria a proteção a esses indivíduos, porquanto lhes garantiria o gozo de todos aqueles direitos encartados no Estatuto dos Refugiados, além de permitir a ampliação da assistência institucional do ACNUR e do CONARE.

Qualquer solução, contudo, deverá estar em harmonia com a proteção dos direitos das pessoas migrantes, incluindo-se o princípio da não-devolução e o direito de ser admitido para solicitar refúgio, pois, como bem lembrou a ministra Rosa Weber: “no marco do Estado democrático de direito, as soluções disponíveis à solução de crises restringem-se àquelas compatíveis com os padrões constitucionais e internacionais de garantia da prevalência dos direitos humanos fundamentais”. Ora, não nos esqueçamos que a dignidade da pessoa humana – seja a pessoa humana nacional, seja a pessoa humana migrante – ainda é um dos fundamentos desta República.


Rodolfo Ribeiro C. Marques é advogado especializado em direito dos refugiados, mestrando em direito internacional no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais e de Desenvolvimento (IHEID), em Genebra, e autor do livro “O Princípio do Non-Refoulement no Direito Internacional Contemporâneo: Escopo, Conteúdo e Natureza Jurídica” (Editora Lumen Juris, 2018).

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