O artigo original pode ser visto no site da Warmis

A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais do que eu;

e ela não perde o que merece ser salvo.

Eduardo Galeano.

Este é um texto de memórias. Memórias de quem eu sou e do quanto conhecer a América Latina me mobilizou rumo a constituição dessa identidade. Por muitas vezes fui questionada sobre essa ligação tão forte com a cultura latino-americana, “mesmo sendo brasileira”. Foi sempre uma pergunta difícil de responder e a proposta de escrever esse relato está me ajudando a reformular algumas respostas. Nasci em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais e cresci em uma região ao norte desse estado, quase divisa com a Bahia. O local onde fui criada pelos meus avós se chama Várzea de Santo Antônio, um vilarejo de poucas casas, de gente muito velha e crianças (os jovens e adultos vão para a capital trabalhar). Meu avô trabalhava na roça e minha vó cuidava da horta, das galinhas e de mim. Vivi ali até os meus sete anos e a minha constituição de ‘gente’ se deu nesse lugar encantado.

O que significa reivindicar, então, a identidade latino-americana, para alguém que cresceu na roça? Qual vínculo me prende a pessoas e paisagens tão diferentes daquelas a que fui habituada?

Se sentir como parte da América Latina começa a fazer sentido quando, no interior do México, participando de uma procissão na cidade de Cuetzalan, vem a mente a lembrança das festas do Divino Espírito Santo na casa dos meus avós, assim como todo o calendário religioso que ainda organiza a vida social no campo. Olhando para o rosto das pessoas que equilibravam o andor, reconheci o semblante dos meus avós, tão indígenas quanto aqueles nahuatl – Nossa Senhora Aparecida, Virgem de Guadalupe: ambas achirupitas e de pele escura. Significa também comer humitas em Osorno, sul do Chile, e lembrar das broas e pamonhas servidas ainda quentes pela minha vó, em cima do fogão a lenha. Andar nos ônibus precários que partem de Puerto Quijarro, Bolívia, e recordar das mesmas estradas de terra que conduzem ao povoado onde fui criada até a cidade, onde minha vó ia comprar produtos industrializados.

Por onde andei, me senti latino-americana porque as terras que partilhamos não reconhecem fronteiras. As águas cristalinas dos lagos de Entre Lagos, Chile, me fazem recordar o rio em que minha vó lavava roupas e cantava suas ladainhas enquanto eu brincava e, com os pés sobre as pedras escorregadias, senti que aquelas águas também eram minhas – pouco importando se não surgiam do rio Jequitinhonha. A nossa espinha dorsal é a cordilheira e o sangue que nos energiza são as nossas águas que emergem dela e do subterrâneo. Ser adulta e conhecer, e se reconhecer, nessas paisagens, me explica porque sou latino-americana e é meu direito reivindicar uma história em comum – eu sou de todos esses lugares.

E porque os brasileiros, em geral, não se reconhecem latino-americanos?

Para essa questão, as Universidades já produziram algumas explicações. Mas compreendo que a América Latina começa a fazer sentido quando a sentimos pulsando dentro de nós. A explicação mais rasa, e costumeiramente utilizada, é a língua: o vínculo foi rompido por conta da colonização ibérica – portuguesa e espanhola – sendo que o fato de Brasil e Paraguai, por exemplo, por serem colonizados por países de línguas distintas, não estejam irmanados culturalmente. Nesse aspecto, é relevante pensar nas populações indígenas da etnia Guarani, que se deslocam historicamente por essas terras ancestrais, vivendo sua língua e cultura independentemente do Estado Nacional. Se a explicação é a fronteira oriunda da colonização, as populações originárias do nosso continente rompem com essa lógica, e demonstram que a ancestralidade e o reconhecimento dos graus de parentesco suprimem a organização colonial e pós colonial do espaço. De todo modo, no interior dos países existem distinções de termos e vocabulário, pois a língua e viva e atende a necessidade da população que a utiliza e aporta novos significados e valores a ela. Nesse sentido o ‘portunhol’ representa, a meu ver, um significativo esforço de comunicação utilizado pelas populações, especialmente as de fronteira. Longe de ser um equívoco, o portunhol é uma forma criativa de diálogo.

Ademais da língua, outras explicações se pautam no sistema colonial e na configuração dos Estados Nacionais. Atribui-se a esses elementos o distanciamento entre nossas histórias. E os livros de História contribuem para afirmar essa perspectiva, ao não aprendermos sobre os nossos processos, estudando de forma muito superficial a ‘História da América’ – sendo grande parte do conteúdo destinado a explicar a história dos E.U.A. Um estudante brasileiro não tem o conhecimento necessário para compreender a história e a cultura latino-americanas na escola, que é a instituição responsável por sistematizar o mundo e apresentá-lo sob a forma de conteúdos escolares, o que ocasiona numa lacuna na formação. Os assuntos mais recorrentes – ainda assim, ensinados de forma superficial- são o tripé ‘Incas-Maias-Astecas’, numa tentativa de produzir uma ‘ante-sala’ para a colonização. Em decorrência dessa deficiência na formação escolar básica, o brasileiro não tem condições de estabelecer parâmetros mínimos entre a sua cultura e a dos ‘hermanos’, quem dirá se reconhecer como latino-americano. As informações sobre o continente são obtidas através dos veículos de imprensa, sempre mediados por interesses que não são os relacionados a integração dos nossos povos.  Atribui-se a essa mediação, por exemplo, a persistência de estereótipos sendo que ser ‘latino’ é o mais arraigado deles. O ‘latino’ é o outro, o que fala espanhol, o que interpreta o vilão nos filmes estadunidenses, é aquele que não se parece comigo, estrangeiro, o que deve ser combatido (é interessante verificar que nos E.U.A. e Europa, brasileiros também são assim classificados: latinos). As referências do Audiovisual massificado também não contribuem para o estabelecimento de vínculos afetivos e culturais com a nossa América Latina. Recordemos do exemplo do seriado“Narcos”, assistido em milhares de lares brasileiros e que trazia o personagem Pablo Escobar e suas desventuras, interpretado por um ator brasileiro de grande visibilidade midiática. Há muitos anos, esse enredo é o que está fixado no imaginário brasileiro quando se remete a Colômbia, contudo, é justamente esse enredo da história que os colombianos estão lutando para superar. Ao pensar na Colômbia – a esquina mais privilegiada da América Latina –  poderíamos, por exemplo, refletir sobre as comunidades originárias, a presença africana e a luta antiescravista, a produção literária que busca traduzir os conflitos contemporâneos, ou até mesmo a necessidade de refundação do Estado após os intensos anos de guerra civil. Mas persistir no paradigma do narcotráfico dá mais audiência.

A escola cumpre importante papel na percepção de nossa identidade, que também é latino-americana, e pensar nessa responsabilidade social de educadora me estimulou a buscar, na formação acadêmica, o suporte para ancorar a busca pelos caminhos. Acredito que é através das Ciências Humanas – especialmente a História, que é a minha área de atuação-  que poderemos articular as nossas trajetórias latino-americanas, precisamos nos estudar, trocar saberes, conhecimentos, dialogar. Guiada por essa utopia, aceitei o desafio de atuar na equipe do Núcleo de Educação Étnico-racial da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, na gestão do prefeito Fernando Haddad onde, juntamente com uma equipe brilhante e muito comprometida, tivemos a tarefa de estruturar e consolidar uma área de trabalho intitulada “Educação para Imigrantes”. Nos quase três anos de trabalho tive o privilégio de conhecer educadores que partilhavam as mesmas inquietudes, contudo, o que os movia era a necessidade de acolher bem os estudantes Imigrantes, o que proporcionou o desenvolvimento de parcerias que levaremos por toda a vida.

No trabalho desenvolvido no Núcleo de Educação Étnico-racial puder doar toda a paixão que a História e a Cultura latino-americana me despertam e contagiar um grande número de educadores. Um tema que era invisível até então – dos estudantes latino-americanos nas escolas paulistanas e as suas culturas de origem – ganhou destaque e relevância através de cursos de formação para educadores, seminários, oficinas, mostras culturais, apresentações teatrais, espetáculos de música e dança, degustação de culinária, mostras fotográficas, cineclubes, feiras de difusão de artesanato, contação de histórias, fórum de discussão curricular… uma infinidade de atividades que teve como foco o compartilhamento de cultura, da nossa cultura, da cultura latino-americana. Cerca de 80% dos estudantes imigrantes na Rede Municipal de Ensino de São Paulo são latino-americanos e caribenhos, o que configura um desafio quando se pensa na discussão curricular nos moldes como colocou Paulo Freire: crítico, popular e emancipador. Que espaço há na escola para o compartilhamento desses saberes? Qual currículo escolar pode ser construído a partir da diversidade cultural vivenciada na escola? Algumas das respostas para essas perguntas pretendo encontrar através da pesquisa de Doutorado que se inicia em 2017. Mas, como o que nos movem são as perguntas, retomo o parágrafo inicial dessas Memórias: mesmo sendo brasileira, porque a América Latina pulsa dentro de mim? A essa questão a pesquisa acadêmica não poderá dar respostas. Essas são questões que me conduzirão para toda a vida.

Nossa comida, nossa religiosidade, nossas canções, nossas perdas e conquistas, nossas estradas de terra, tudo nos remete ao que somos enquanto povo – é o nosso espaço compartilhado.

Em tempo: certa vez, em horário de pico, no metrô da cidade do México eu conversava em português com uma amiga de viagem e algumas pessoas nos olhavam com estranhamento. Se pudesse voltar no tempo, não ignoraria os olhares. Eu diria que um metrô parecido circulava São Paulo naquele exato momento, haviam tantos trabalhadores cansados, super-explorados, preocupados com as dívidas e o desemprego, porque o nosso povo partilha as mesmas angústias, mas a traduzimos em línguas diferentes. Se me pedissem para conceituar “Interculturalidade”, exemplo melhor eu não poderia encontrar.