fidelA morte de Fidel Castro marca praticamente um século da experiência prática do socialismo, iniciada em 1917 na Rússia. Se lá foi dado o pontapé inicial da revolução que transformaria a história, mas foi em Cuba que ela surpreendeu o mundo e popularizou-se, conquistando coração dos jovens por meio da figura de Ernesto “Che” Guevara; e depois resistiu à queda do muro até os dias de hoje.

Sim, o comandante cubano, sem dúvida, foi o último líder vivo da etapa áurea do socialismo. Seu falecimento coincide, ainda, com o retrocesso da esquerda na América, que assiste com perplexidade o retorno dos governos de direita ao poder com a anuência da população. E os argumentos de manipulação da opinião pública, embora tenham um fundo de verdade, já não são convincentes para explicar cabalmente o rumo dos acontecimentos.

Se não é o fim do socialismo é pelo menos o fim de uma etapa histórica que obriga a uma revisão profunda dos fundamentos que deram sustentação às melhores aspirações e conquistas de militantes sociais de todo o mundo que,  em maior ou menor medida, sem dúvida inspiraram-se nas propostas inicialmente formatadas por Marx e Engels. Para contribuir ao aprofundamento desta compreensão, quisera propor algumas considerações a partir da minha leitura do novo humanismo proposto pelo pensador argentino Mário Luis Rodrigues Cobos, mais conhecido como Silo.

Já de início, é preciso esclarecer que a divisão do mundo entre opressores e oprimidos são duas rodas de uma mesma carroça chamada “Controle dos outros”. Independentemente da legitimidade de quem controla – maioria ou minoria – é preciso compreender que no centro da questão está a crença de que o controle de intenções alheias é a forma mais eficaz de solucionar os conflitos. Em suma, parte do ponto de vista de que a procura pelo poder – sobre outros – é inerente ao ser humano. Mas isso não é uma verdade ontológica, senão que responde a um estágio de desenvolvimento do ser humano, que coletivamente ainda carece de uma experiência diferenciada de convivência e solução de conflitos em sua raiz.

De forma muito resumida, Silo nos propõe uma nova ontologia: o ser humano tem um sistema psicofísico que busca o equilíbrio entre o meio interno e externo – a esse equilíbrio corresponde o registro (sensação) de distensão. Ou seja, o que nós seres humanos necessitamos realmente é relaxar as nossas tensões – geradas tanto por situações tão básicas como a fome, passando pelos temores, até questões complexas como a falta de sentido na vida que sentimos diante do paradoxo de manter o corpo vivo quando estamos fadados a perdê-lo. Sentimos essas situações como desagradáveis e, tanto individual como coletivamente, elaboramos respostas a esse “impulso” de distensão.

Nesse caminho psicofísico, em algum momento remoto de seu desenvolvimento a humanidade “descobriu” o “controle sobre os outros” como forma de distender e isso ficou “gravado” social e culturalmente – talvez pela sua eficácia imediata, e ao longo da história foi evoluindo das formas mais grosseiras das matanças às mais sofisticadas, como a da manipulação, embora hoje convivamos com todas elas simultaneamente, mesmo no nível das relações interpessoais. E tudo vai se orientando a dar resposta a essa pergunta, que é como se faz para controlar os outros?

O “erro” nesta resposta é que o grupo “controlado” também está pensando o mesmo, ou seja, após a vitória aparece uma nova tensão que é a manutenção do controle. Até hoje adotamos esse paradigma de modo que parece que é inerente ao humano, mas o atual descontrole dos acontecimentos tem levado muitas pessoas a questionar-se. Se os militantes socialistas têm dificuldade para compreender o retrocesso na América Latina, ou do socialismo em nível mundial, também os poderosos de hoje estão perplexos diante do crescimento do poder dos ataques terroristas: não compreendem como pequenos grupos podem ter tanto poder de destruição, e mesmo aqueles poderosos que se beneficiam de ações criminosas já não sabem se seus seres queridos estarão na lista de vítimas. Atendendo ao exemplo do socialismo, parece ser que seus ideais fundamentaram-se na concepção matemática de Justiça baseada no controle da maioria. Embora a inversão da balança pareça ter sido um avanço, hoje se vê que o retornar do pêndulo.

Uma mudança de paradigma faz-se necessária: a substituição do controle pelo afeto, parece demasiado ingênua justamente porque estamos imersos na ilusão do paradigma atual, mas que é a única alternativa sustentável a longo prazo. Alguns irão perguntar-se como derivar concepções revolucionárias de algo que se parece mais com um conselho de livros de autoajuda ou algo do gênero?

Nestes últimos 100 anos, enquanto o comunismo se desenvolvia, alguns líderes sociais conseguiram derivar ideologias e práticas sociais deste novo paradigma, mas seus respectivos aportes ainda estão subavaliados, justamente porque todo nosso pensamento está determinado pelo controle. Quem sabe neste momento de crise possam merecer maior consideração. Estamos falando de Gandhi e Luther King e suas ações diretas não-violentas, com o objetivo de transformar o “inimigo” por meio da força moral da regra de ouro, de “tratar aos outros como queres ser tratado”.

Recentemente, vi um documentário sobre o Movimento Negro nos Estados Unidos no qual representantes da geração posterior a Luther King desiludiu-se com a não-violência porque ele foi assassinado, ou seja, supostamente não obteve resultado. Não lhes ocorreu que talvez o caminho das novas gerações teria sido muito pior ou ineficaz não fosse a não-violência que criou uma sensibilidade positiva ao movimento. Já Nelson Mandela pôde ir mais além ao instaurar uma política de estado baseada em acreditar na reabilitação futura daqueles que cometeram atos criminosos. As comissões de Verdade e Reconciliação, que anistiavam a quem confessasse publicamente o crime, foram um passo importante na compreensão individual e coletiva da cadeia de violência alimentada por brancos e negros na África do Sul. Durante as confissões de assassinato muitas pessoas percebiam, pela primeira vez, o que haviam feito de fato e sentiam-se arrependidas e predispostas a não cometer o mesmo erro como também servir de exemplo para outros.

Estas respostas diferidas só foram possíveis porque estes líderes estavam conectados com um sentido transcendente para suas vidas. Só uma forte experiência deste tipo é capaz de revolucionar a atual mecanicidade do nosso sistema psicofísico, já que a nossa tensão mais profunda é dada pelo temor à morte – própria e de seres queridos – e isso nos limita ao imediatismo do nosso tempo e espaço. Neste caso – de experimentarmos o sentido –  encontramos uma distensão profunda. Por que haveria eu de compreender o meu inimigo e apostar na sua reabilitação futura ao invés de apostar nos mecanismos de controle de suas más intenções?

Os profetas de distintas religiões falaram deste caminho, mas na verdade o tema do sentido da vida sempre foi central na história da humanidade, estando presente nos mitos e mesmo na filosofia. Com o advento do racionalismo, foi sendo cada vez mais limitado, ao campo da metafísica, da teologia, para depois ficar mesmo restrito ao religioso. Não que o passado seja melhor que o presente, mas a razão tampouco produziu uma revolução profunda no paradigma do controle. E, se a levarmos ao limite, somos obrigados a admitir que algo existe e sempre existiu e, novamente lançados a solucionar a tensão do paradoxo da vida e da morte.

Quem somos e para onde vamos são perguntas que estão longe do monopólio religioso; ao contrário, permeiam profundamente todas as nossas ações, sentimentos e pensamentos; quer percebamos ou não, estão sempre no centro da nossa existência, enviando seus impulsos.

Uma resposta à crise social precisa dar novo fôlego às reflexões e experiências sobre o sentido da vida nos distintos campos da atividade humana, dentro e fora das religiões, sem censuras e acima de todo dogma, combinado a um novo Evangelho Social que assuma essas características transcendentais. Já é possível ver no mundo atual sinais do surgimento de uma nova espiritualidade, que responde a essas necessidades existenciais. Nela incluem-se os grupos da Mensagem de Silo, que aspiram a reconciliar e persuadir e a consagrar a igualdade e a liberdade, o bem estar próprio e dos demais como signo do Sagrado.

O próprio Fidel Castro foi um dos pioneiros em reconhecer a importância da espiritualidade no processo revolucionário, segundo nos lembra Silo em um de seus magistrais discursos, neste caso sobre “a religiosidade no mundo atual”, proferido em 1986. Foi o primeiro chefe de estado de um país socialista a dar uma entrevista exclusiva sobre religião, ao brasileiro Frei Betto, em Havana, em 23 de maio de 1985, às 21 horas, que deu origem ao livro Fidel e a Religião, no qual reconhece o papel das Comunidades Eclesiais de Base na luta socialista na América Latina, que contrariaram a orientação central da Igreja em defesa dos povos. Mais adiante, Silo continua, contando que “por sua vez, Armando Hard, ministro da Cultura de Cuba, em sua nota à edição do livro diz, celebrando o diálogo cristão-marxista: ‘E isto é, por si só, um acontecimento transcendental na história do pensamento humano. A nota ético-moral aparece nestas linhas carregadas de todo o sentido humano que agrupa aos lutadores pela liberdade e em defesa dos humildes e dos explorados. Como é possível tal milagre? Teóricos sociais, filósofos e teóricos de diferentes países devem fazer-se esta pergunta’.”

Para ti, comandante, uma boa viagem de volta para casa. Envia saudações a todos e conta-lhes uma nova revolução está a caminho!!!