Em encontro para debater truculência em protestos sociais, entidades reivindicam revisão do papel da polícia, desmilitarização, investigação de abusos e fim da utilização de armas menos letais

por Rodrigo Gomes, da RBA

 

São Paulo – O secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, Fernando Grella Vieira, e o comandante-geral da Polícia Militar (PM) paulista, Benedito Roberto Meira, não compareceram a audiência pública sobre a atuação da polícia em manifestações promovida na tarde de hoje (18) pelo Ministério Público Federal da 3ª Região (TRF-3), a pedido da organização não governamental Conectas Direitos Humanos. O evento reuniu  dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, juristas, ativistas, movimentos sociais e entidades da sociedade civil se reuniram na sede do TRF-3, na região central de capital paulista.

O procurador federal dos Direitos do Cidadão substituto, Jeferson Aparecido Dias, classificou a ausência de porta-vozes da gestão Alckmin de “lamentável”: “Passa a imagem de que não estão dispostos ao diálogo. Até porque não foi dada nenhuma justificativa para as ausências”, afirmou.

Dias disse não compreender a postura dos dois, já que o MPF é um órgão do Judiciário, sem implicações partidárias. “Se fosse uma atividade no Legislativo estadual, poderia até se justificar certos interesses (políticos). Mas o Ministério Público é uma instituição da República”, ponderou.

No debate, Grella foi representado por um assessor técnico da secretaria, Já Meira chegou a enviar um comunicado informando que não poderia participar. Depois enviou um outro, afirmando que estaria a caminho. Mas, meia hora depois, desmarcou novamente.

A proposta do evento era discutir a atuação da polícia em manifestações, iniciando um processo para elaborar um protocolo de atuação em protestos que regulamente o uso de armas menos letais, a proporcionalidade da força, as intervenções em casos de violência.

A Defensoria Pública paulista já apresentou um documento com sugestões para este protocolo, mas até hoje não obteve resposta da Secretaria da Segurança Pública (SSP). “Passamos dois anos acompanhando manifestações e chegamos à conclusão de que os abusos não eram casos isolados. Apresentamos o documento, mas só recebemos o silêncio como resposta”, afirmou o coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria, Rafael Galati Sábio.

O órgão entrou na Justiça para assegurar a medida – que também solicitava a proibição do uso de armas de bala de borracha em protestos –, mas, após provisão liminar em primeira instância, a medida foi cassada no Tribunal de Justiça, na instância seguinte. “Esperávamos que essa parte não fosse suspensa, mas infelizmente os desembargadores derrubaram todo o pedido liminar”, lamentou Sábio.

O representante da SSP, Eduardo Dias, tentou minimizar a questão. “Nós respondemos inúmeros ofícios e em alguns casos avisamos entidades que a solicitação já estava respondida a outro órgão. Nós integramos as orientações em um documento para ordenar a atuação em protestos”, disse Dias. No entanto, a elaboração desse documento foi suspensa sem conclusão.

O fotógrafo Sérgio Andrade Silva, que perdeu a visão do olho esquerdo ao ser atingido por uma bala de borracha disparada por um policial militar durante a repressão contra a manifestação de 13 de junho de 2013 – que reivindicava a redução do preço das passagens do transporte público na capital paulista – levou para o evento pouco mais de 45 mil assinaturas em um abaixo-assinado pela proibição do uso de armas de balas de borracha pela PM em São Paulo.

“Eu fui atingido enquanto trabalhava e até hoje não fui procurado pelo governo paulista para fins de reparação ou mesmo de apuração do caso. Espero que este seja o início de um processo para mudar a atuação da polícia e acabar com o uso dessa arma que arrancou meu olho”, afirmou Silva.

O fotógrafo entregou o documento para o representante da SSP, pedindo que seja tomada alguma providência pelo secretário Grella e que ele dê uma resposta sobre o caso. “Esse documento já foi entregue em fevereiro, mas nunca obtive resposta sobre o encaminhamento”, concluiu Silva.

Más condutas

Casos de abuso policial sem o resultado da investigação são comuns, conforme demonstrado nas dezenas de falas de movimentos sociais, ativistas e representantes de instituições, durante a audiência. Outra questão recorrente é a sonegação de informação e o desrespeito a normas básicas, como a identificação dos policiais durante a atuação em manifestações.

O advogado ativista Luiz Guilherme Ferreira criticou a atuação da secretaria ao encobrir os abusos da polícia. “A SSP recebeu pelo menos dez protocolos dos Advogados Ativistas (entidade que acompanha manifestações e defende ativistas em caso de prisão ou processo decorrentes dos protestos) questionando sobre falta de identificação policial e sobre o roteiro para identificar as pessoas que são presas, que questiona por exemplo sobre ligação com partidos, como foram informadas sobre a realização dos atos públicos etc. Nunca fomos respondidos”, afirmou.

Até mesmo o Ouvidor das Polícias do Estado de São Paulo, Julio Cesar Fernandes Neves, revelou se sentir impotente em relação à falta de resultado nas apurações realizadas sobre abusos praticados por policiais. “A bem da verdade, até agora, em todas as denúncias que nós recebemos e repassamos para a Corregedoria das polícias, nós não temos conclusões. Temos os inquéritos, mas não temos solução para os casos”, afirmou.

Em frente

A falta dos representantes do governador Geraldo Alckmin (PSDB) prejudicou o encaminhamento de propostas, mas não que fossem apresentadas. Para o diretor da Conectas Direitos Humanos, Marcos Fuchs, a polícia precisa de reformas urgentes, incluindo a desmilitarização e a unificação, além da determinação de protocolos de atuação.

“Precisamos colocar em pauta urgentemente a reforma das polícias. Mais que a desmilitarização é preciso mudar todo o modelo, para desenvolvermos uma polícia cidadã. O projeto do senador Lindbergh Faria (PT-RJ) é muito bom. O texto prevê uma polícia mais humana, uma corregedoria mais efetiva, clareza de hierarquia”, explicou Fuchs. Porém, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51, de 2014, do senador petista pode ser arquivada pelo Congresso Nacional no fim deste ano sem ser votada.

O professor de direito da Faculdade Getúlio Vargas (FGV) Oscar Vilhena Vieira ressaltou que é preciso combater tentativas de impedir a livre manifestação, inclusive sob a alegação de perturbação da ordem. “O direito de manifestação impõe o dever de ser incomodado, porque isso está dado pela própria utilidade da manifestação. E o principal alvo de ser incomodado é o poder público. Não se pode fazer controle do discurso da manifestação e nem do transtorno causado. Se causar problemas para a cidade, isso será cobrado socialmente dos grupos, que perderão apoio a sua causa”, afirmou.

Fuchs complementa que a situação só muda em casos de uso da violência e depredação, que devem ser coibidas pelos agentes públicos, com garantia de proporcionalidade no uso da força e dentro dos parâmetros legais.

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