Duas traves horizontais balizam este Fórum na Tunísia. Uma delas é uma velha conhecida. Estava em Porto Alegre, em 2001, em Mumbai, em 2004, em Nairobi (2007), em Belém (2009) e no Senegal, em 2011. Consiste na maciça presença de pessoas que, em qualquer das milhares de mesas e pequenas ou grandes discussões, pedem a palavra e dizem: “É a primeira vez que eu falo diante de tanta gente do mundo inteiro”… e por aí vai. Em Porto Alegre, em 2001, este sentimento de descoberta vinha acompanhado de outro, o de que também descobríamos, pela primeira vez desde a queda do muro de Berlim e da consolidação da vitória neo-liberal dentro do próprio capitalismo triunfante, que nem tão poucos éramos, nem tão sós. Nós os das esquerdas e dos pensamentos alternativos de todos os matizes. O mundo falava também por nossa boca e para nossos ouvidos, então abalados e algo descrentes.

Talvez o extremo deste sentimento, até agora, tenha se dado aqui mesmo no continente africano, em Nairobi, onde ficou evidente que muitos dos africanos de diferentes países estavam se vendo e se ouvindo pela primeira vez frente a frente. Alguns estavam até acostumados a esse diálogo – mas via Europa, e não poucas vezes dentro do cercado de suas línguas coloniais/nacionais, e de suas ex-metrópoles. Mas fora assim também na Índia, país de 17 línguas oficiais e centenas de dialetos, milhares de subdialetos, e assim por diante.

Aqui vê-se este sentimento de descoberta no mundo e na língua árabes. Para muitas e muitos, vê-se, é a primeira vez que se confrontam uns com os outros, dos diferentes quadrantes de dois continentes (pelo menos), na mesma língua e sem a mediação dos ex-colonizadores, de sua língua, de sua presença geográfica, ainda que distante no espaço, mas ainda tão presente na forma dos modernos e pós-modernos imperialismos de toda a sorte.

A segunda baliza tem a ver com esta região norte-africana e o Oriente Médio como um todo. Ela atravessa todas as discussões, todas as tendas de militância, todas as conversas locais, e pode ser traduzida mais ou menos assim: “o que fazer com e dentro do Islã”? Os tunisianos, em particular, mais veementemente as tunisianas presentes ao Fórum manifestam todas e todos, invariavelmente, o desejo de que a sua religião seja uma porta aberta para o mundo, não a porteira fechada de um aprisco.

Ao mesmo tempo, manifestam um temor moderado diante do Ennahda, o partido muçulmano que encabeça o governo oriundo do movimento que levou o ex-ditador Ben Ali à fuga para a Arábia Saudita. O temor é que a nova Constituição a ser proposta e votada emane de uma visão restritiva do Corão e do Islã, comprometendo inclusive a possibilidade da construção de um Estado laico. E que apresente restrições inaceitáveis à vida das mulheres e de seus direitos.

Este temor passa de moderado a intenso quando se refere aos grupos salafistas que constituem uma espécie de para-milícia militante em apoio à “islamização” das instituições do país e da região. Temem a violência mal contida, por vezes desatadas em ameaças e agressões destes militantes de um fundamentalismo retrógrado e redutor da Jihad a uma guerra pseudo santa contra tudo e contra todos que não sejam seus correligionários, sobretudo os mais frágeis, como soe acontecer, ou a uma visão judicial punitiva de quem transgrida a visão que têm do Islã como Carta Magna da vida cívica e jurídica de um país, como denunciava Edward Saïd, um dos cidadãos palestinos mais acirradamente aintiimperialistas.

Ao lado das tradicionais bandeiras aintiimperialistas, pró-meio ambiente, sustentabilidade, economia familiar, anticapitalistas, entre outras, aquelas balizas vieram se juntar aos desafios marcantes apontados dentro e desde o Fórum Social Mundial.

P. S. – Por duas vezes hoje assisti a mesma cena deplorável no terreno do Fórum, dentro do campus da Universidade El Manar. Militantes de alguma coisa estenderam uma bandeira de Israel – uma na entrada de um dos espaços e outra numa estrada interna – e convidavam os passantes a limpar os pés nelas, e os carros e motos, no segundo caso, a passar-lhes por cima. Dá para entender e apoiar a crítica ao governo discricionário de Israel, até o ressentimento dentro do mundo árabe em relação a este país. Mas decididamente não é por aí,

Matéria de Flávio Aguiar publicada na Rede Brasil Atual