Novos modos de pensar o mundo, novas relações entre os seres humanos e novas formas de produção material para a existência humana são potencialidades para um novo padrão civilizatório mais livre, justo e fraterno.

Neste cenário a hegemonia econômica e cultural do norte pode e deve ser questionada e a sua lógica reelaborada com a participação da força emergente, e ainda pouco visível, do pensamento do Sul. Não se trata apenas de uma disputa e substituição da hegemonia territorial, mas uma síntese que considera a cultura e a compreensão dos povos do sul historicamente explorados, que de alguma forma sustentaram o desenvolvimento material dos países “ricos” do norte, na elaboração de uma compreensão universal para todos os povos e uma nova civilização.

O agravamento das condições naturais da existência humana coloca em xeque o ethos o qual se constitui o pensamento hegemônico na civilização atual. Urge um consenso mínimo e postura ética que questione o nosso modo de estar e atuar no mundo para o enfrentamento da crise planetária. A novidade da participação e contribuição dos povos do Sul, com as singularidades e situação cultural especifica, passa a ser imperativo para superação da degradação ambiental e exclusão social ainda predominante no mundo. Emergem do Sul, em uma situação adversa e subalterna, uma cultura e forma de viver emancipadora ligada a uma nova consciência ecológica, da mistura étnica/racial configurada na tradição da solidariedade e da criatividade para solução e formas de vida constituída na adversidade.

O sentido do paradigma dominante é a conquista. O conhecimento é assumido como forma de intervenção e dominação da natureza, o que corresponde à imagem de mundo no qual o ser humano com a função do domínio sobre o meio ambiente e os demais seres. O ethos vivenciado é pouco sensível a alteridade. A homogeneização e a padronização ameaçam as originalidades e as singularidades culturais. Dessa forma, a natureza não passa de um deposito de recursos, algo a ser manipulado, e o diferente, aquilo que foge a razão instrumental-analítica e a unificação tecno-econômica, algo a ser destruído. A crise ecológica mostra a insustentabilidade dessas crenças. O progresso, entendido como crescimento ilimitado e linear, produziu degradação ambiental e subdesenvolvimento. A Terra não suportaria a universalização do patamar de consumo e modo de vida dos países ricos.

Erigir pilares para uma nova civilização exige um novo pensar, sentir e uma vontade de transformação com novos referenciais éticos e uma nova forma de compreender a humanidade. A experiência dos povos do Sul tem elementos fundamentais para esta nova civilização. Enfrentar a complexidade da realidade humana com uma compreensão ampla do ser humano e do universo a partir da vivência das contradições do modelo civilizatório até então desenvolvido preservando uma sabedoria nativa de valorização da relação homem-natureza e entre os seres humanos. De um paradigma redutor, pautado pela dominação e exploração, precisamos passar a um paradigma capaz de religar conhecimentos, de valorizar outras formas de relacionamento com a natureza e com outro ser humano e de apresentar um novo ethos e sentido. “Esta mudança precisa ser dialética, vale dizer, assumir tudo que é assimilável e benéfico do paradigma da modernidade e inseri-lo dentro de outro diferente mais globalizante e benfazelo” (Leonardo Boff). Ética assim compreendida descobre o mundo como valor e não como a concepção utilitarista em que o mundo só possuía valor na sua funcionalidade a serviço dos interesses de pequenos grupos e como objeto de posse.

Uma iniciativa contra hegemônica é o Fórum Social Mundial (FSM), evento altermundialista organizado por movimentos sociais de diversos continentes, mas com centralidade organizativa no Brasil, com objetivo de elaborar alternativas para uma transformação social global. Seu slogan *“Um outro mundo é possível”* representa seu significado para uma nova ordem social. O Fórum se realizou várias vezes (em 2001, 2002, 2003 e 2005), no Brasil, na cidade de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul; em 2004, na Índia; de forma descentralizada em 2006, e em Nairobi, Quênia, em 2007. A nona edição do Forum novamente teve lugar no Brasil, em Belém, capital do Estado do Pará.

Outra iniciativa organizada no governo brasileiro se refere a Economia Solidária como uma forma de produção, consumo e distribuição de riqueza (economia) centrada na valorização do ser humano e não do capital. Tem base associativista e cooperativista, e é voltada para a produção, consumo e comercialização de bens e serviços de modo autogerido, tendo como finalidade a reprodução ampliada da vida. Preconiza o entendimento do trabalho como um meio de libertação humana dentro de um processo de democratização econômica, criando uma alternativa à dimensão alienante e assalariada das relações do trabalho capitalista.

Além disso, a Economia Solidária possui uma finalidade multidimensional, isto é, envolve a dimensão social, econômica, política, ecológica e cultural. Isto porque, além da visão econômica de geração de trabalho e renda, as experiências de Economia Solidária se projetam no espaço público, no qual estão inseridas, tendo como perspectiva a construção de um ambiente socialmente justo e sustentável. A Economia Solidária reafirma, assim, a emergência de atores sociais, ou seja, a emancipação de trabalhadoras e trabalhadores como sujeitos históricos.

Neste cenário de mudanças culturais e elaboração de uma pensamento do Sul como desenvolvimento de possibilidades de novo projeto civilizatório vale a pena conhecer a concepções da *“Trimembração do organismo social”* apresentado pelo filósofo austriaco Rudolf Steiner no inicio do século XX. A Trimembração não é uma idéia interna de nenhuma corrente ou grupo, mas pertence à humanidade toda.

Assim como os corpos vivos tem atividade nervosa, digestiva, circulatória etc., cada uma com seu funcionamento próprio, porém interdependentes e partes do mesmo corpo, assim todas as atividades e fatos da sociedade humana se distribuem em três grandes áreas: vida econômica, vida cultural, vida normativa. Vida econômica é tudo o que produz bens, recursos, riquezas, para o uso da sociedade inteira.Vida cultural não é apenas arte, mas tudo o que tem a ver com conhecimento, idéias, valores – e capacidades humanas, seja em nível de pesquisa, de educação, de criação, e outras formas de cultivo. Vida normativa são as instâncias em que os diferentes atores da vida social decidem as regras do jogo, fazem acordos, e cuidam de que esses acordos sejam executados. São os espaços de discussão e representação, órgãos de administração, agências reguladoras, instâncias jurídicas etc. Cada uma dessas esferas de atividades tem por sua própria natureza um atributo ou lei de funcionamento: Vida cultural: LIBERDADE; Vida normativa: IGUALDADE; Vida econômica: FRATERNIDADE.

A lei saudável numa esfera torna-se nociva na outra: A vida cultural é responsável pela criatividade da sociedade, através da livre criatividade dos indivíduos. Neste campo, igualdade significaria totalitarismo, massificação, estagnação. Na vida normativa, isto é, na decisão e execução dos acordos sociais, cada ser humano tem valor igual ao de qualquer outro. Aqui o indivíduo não tem liberdade de impor nada. A vida econômica é responsável por suprir os seres humanos daquilo de que necessitam. Aqui, liberdade de fazer o que se bem entender sem levar em conta as necessidades sociais (como quer o neo-liberalismo), produz concentração e exclusão.