“É um momento histórico para o Brasil: tivemos duas candidatas a presidente (Dilma Roussef e Marina Silva) que juntas receberam a maioria dos votos na eleição. Agora temos a perspectiva de eleger a primeira mulher presidente, isso é uma conquista”, diz Clara Charf, uma das principais referências do movimento feminista no Brasil. No mês em que se comemora os 10 anos da Resolução 1325 da Organização Nações Unidas (ONU), que trouxe uma série de propostas para combater a violência contra as mulheres e dar a elas maior participação política, ela concede entrevista exclusiva em que fala sobre sua história de luta e os avanços da aplicação da norma no Brasil.

Atual presidente do conselho da ONG Mulheres pela Paz, aos 85 anos de idade, Clara Charf também é conhecida como viúva do ex-combatente de esquerda Carlos Marighela, assassinado por agentes da ditadura na década de 70. Sua história de militância no movimento feminista e pacifista começa bem antes de conhecer o emblemático personagem da resistência armada no Brasil. Já em 1945, Clara se engajava nos protestos contra a participação do exército brasileiro no final da Segunda Guerra Mundial. Ainda no final da década de 50, participou da fundação da Liga Feminina do Estado da Guanabara, iniciando sua militância nos primórdios do movimento feminista no país.

Teve que se exilar em Cuba na época da ditadura, retornando ao Brasil apenas com a anistia no final da década de 70. Teve participação na gestão da prefeita de São Paulo, Luiza Erundina (1988 a 1991). Mas foi com a iniciativa da indicação de 1000 mulheres para o prêmio nobel da paz de 2005 que Clara Charf consolidou seu papel como umas das principais lideranças do movimento feminista no país, com projeção mundial. “Ela é uma das poucas pessoas que se tornou uma referência para diversas correntes dos movimento de mulheres no Brasil, pois consegue trazer para o diálogo as várias tendências do feminismo”, explica Vera Vieira, diretora executiva da ONG Mulheres pela Paz.

Em 2003, Clara Charf foi escolhida para coordenar o processo de seleção das brasileiras que fariam parte do grupo de 1000 mulheres que concorreram ao Nobel da Paz de 2005. Ela foi contatada pela ONG suiça Peace Women Across the Globe (PWAG) para levar adiante o processo no Brasil que culminou com a escolha de 52 brasileiras que concorreram ao nobel. Elas não levaram o prêmio, que foi para a Agência Internacional de Energia Atômica, mas isso não foi motivo para que a rede formada pelas mulheres se desarticulasse. Pelo menos não no Brasil, onde Clara Charf e um grupo de mulheres ampliaram sua atuação com o objetivo de combater a violência contra as mulheres.

A principal inspiração do grupo veio justamente da Resolução 1325, mas com um conceito mais amplo que o de atuar apenas nos conflitos bélicos. “Começamos a compreender que a luta não se restringia às situações de guerra. Por isso, passamos a falar em defesa da segurança humana e da justiça”, diz Clara Charf. Logo após a iniciativa do nobel, o grupo começou a percorrer o país com uma exposição que contava e difundia a história das brasileiras indicadas ao prêmio.

Daí foi surgindo o embrião de uma associação que foi fundada juridicamente em 2008, a ONG Mulheres pela Paz, da qual Clara Charf é fundadora e mantém o cargo de presidente do conselho. “Em 2005, já com 80 anos de idade, ela mantinha um dinamismo impressionante, viajava para todos os cantos do país e também para o exterior, foi para a Suiça e para outros países, para representar a rede das mulheres brasileiras”, lembra Vera Vieira.

Apenas no início de 2010, Clara Charf diminuiu um pouco o ritmo de atividades, por conta de um problema de saúde (quebrou o fêmur), mas não vê a hora de voltar à ativa. Já no final de agosto passado, ela participou de um seminário em São Paulo para reunir os ativistas da mais recente campanha realizada por sua ONG. A campanha “Mulheres pela Paz”, realizada desde 2008, é um dos exemplos de como a Resolução 1325 vem sendo aplicada no Brasil. Diversas lideranças femininas, indicadas ao nobel da paz, “adotaram” três jovens cada uma. As jovens passaram por um processo de capacitação e receberam um apoio para desenvolver projetos.

É o caso da comunicadora Mara Régia di Perna, que “adotou” as três jovens para desenvolver oficinas e spots para rádio com o tema “paz é um combate à violência contra as mulheres”. O grupo atua nos nove estados da Amazônia Legal e veiculam os spots na Rádio Nacional da Amazônia e em rádios locais. Outro exemplo é o de Raimunda Gomes da Silva, do estados do Tocantins, que recrutou jovens da região para realizar um trabalho de defesa da floresta e desenvolvimento do extrativismo como renda familiar.

A ONG Mulheres pela Paz agora se prepara para lançar uma nova campanha que pretende atuar na questão da violência doméstica. “É a primeira vez que vamos fazer ações envolvendo tanto com mulheres quanto homens, para realizar ações no combate à violência dentro das casas. É um problema cultural grave que envolve os dois gêneros. Em média a cada 15 segundos uma mulher é espancada no Brasil”, diz Vera Vieira.

Enquanto a aplicação da Resolução 1325 ainda produz resultados abaixo das expectativas em diversos países e no âmbito mesmo da ONU, alguns exemplos como o de Clara Charf e da rede de mulheres brasileiras, são exceções que podem apontar um caminho. Depois de 10 anos de existência, ainda não se verificou um aumento significativo da participação das mulheres na instâncias decisórias e nas missões de paz da ONU, mas em alguns países como o Brasil, a norma segue inspirando uma série de projetos sociais. Leia a seguir a entrevista exclusiva concedida em 9 de outubro de 2010 por Clara Charf:

Pergunta – O que representa o aniversário de 10 anos da Resolução 1325 da ONU?

Clara Charf – A Resolução 1325 representa uma nova etapa na história da humanidade. Eu sou de um tempo que não existia nem a ONU. Antes as teses giravam em torno da luta entre Guerra e Paz. A partir do ano 2000, surgem novas teses. A partir da resolução a luta pela paz incorporou outros elementos. A luta se ampliou, passamos a compreender que a luta não era apenas no combate à violência contra as mulheres. A luta era contra todos os tipos de violência e desigualdade. É um conceito mais amplo, passamos a falar em segurança humana e justiça.

P – O que representou a articulação das 1000 mulheres para o nobel da paz de 2005?

CC – Mesmo não ganhando o nobel naquele ano, articulamos uma forte rede de mulheres pela paz no Brasil e em diversos países. Cada uma das histórias das brasileiras está retratada em livros, depois levamos a exposição para diversas regiões do país. Com isso, ajudamos a mostrar a evolução da consciência da mulher, da consciência humana. Cada uma delas tem uma contribuição importante na incorporação da luta pela paz no dia-a-dia. E tudo isso foi fortalecido a partir da Resolução 1325.

P- Como a senhora consegue aglutinar diversas correntes do movimento de mulheres?

CC – Dizem que sou uma figura que aglutina as correntes do movimento de mulheres e de outros movimentos. Acredito que isso acontece porque tenho uma longa história de militância. Comecei a atuar em 1945, desde o final da Segunda Guerra Mundial. Lutei contra a participação do Brasil na guerra. É uma luta muito antiga, nem havia o movimento de mulheres. Naquela época era difícil que os outros me entendessem, perguntavam, o que eu tinha a ver, por exemplo, com os povos da América Latina. Hoje é mais fácil explicar para as pessoas a questão da solidariedade aos povos.

P – Como a senhora analisa a opção da resistência armada na época da ditadura militar?

CC – Naquela época ou você era a favor ou era contra o regime. Algumas pessoas tentavam atuar pela conscientização, e outras pegaram em armas, com o mesmo objetivo. A ditadura matou muita gente, perdi meu companheiro (Carlos Marighela). Tive que me exilar, vieram muitas experiências positivas também. Fui para Cuba, conheci o povo cubano. Depois veio a anistia, voltou a democracia. Em cada momento fomos nos posicionando perante os problemas de cada época.

P – Como vê a possibilidade de eleger a primeira presidente mulher no Brasil?

CC – É um momento histórico importante. Estou torcendo para que seja eleita a primeira mulher para a presidência do país. É uma experiência muito forte, ainda mais para um país com dimensões continentais como o Brasil. Coloca as mulheres em outro patamar em nossa nação. É um salto muito grande que vem se acumulando desde a redemocratização, com a história da participação das mulheres nos movimentos, nas associações e nos partidos.

P – Quais outros exemplos de avanço na participação política das mulheres?

CC – A indicação de representantes como Marina Silva e também de Luiza Erundina (ex-prefeita de São Paulo) no grupo das 1000 mulheres para o nobel tem a ver com essa evolução. Elas representam a maior participação feminina nas decisões políticas do país. Erundina foi a primeira prefeita de uma grande cidade depois da ditadura. A Marina tem uma origem simples, assim como a Erundina, e representa a politização da mulher na região amazônica. São verdadeiras guerreiras da paz, assim como tantas outras.

“Este artigo faz parte do projeto de cooperação da Peace Women Across the Globe (PWAG), a German Women’s Security Council, o OWEN-Mobile Academy for Gender Democracy e Peace Promotion assim como o Global Corporation Council, organização guarda-chuva da IPS Deutschland”