Nos últimos tempos, temos visto um avanço das direitas e ultradireitas no mundo, ganhando terreno eleitoral em muitos países e chegando ao poder em vários deles. Do ponto de vista econômico, já estávamos acostumados, há décadas, ao avanço do neoliberalismo, sempre representando os interesses do poder econômico concentrado, mas que costumava atuar pressionando tanto governos de direita quanto progressistas a aplicar políticas econômicas que favorecessem os bancos e o capital concentrado em geral, embora mantendo certo nível de “correção política” para se adaptar aos novos tempos. Assim, vimos governos que aplicaram políticas neoliberais, mas que foram um pouco mais atualizados em outras áreas, como os direitos das minorias, o cuidado com o meio ambiente e certas políticas públicas de contenção social. Mais recentemente, porém, surgiram os chamados “populismos de direita” que, além de reivindicarem o mais cru capitalismo selvagem e predatório, atacam sem filtro nem autocensura todas as conquistas sociais, fazendo disso sua bandeira política. Com isso, através da manipulação da narrativa midiática e das redes sociais, conseguem que uma boa parte da população passe a duvidar da validade ou conveniência dessas conquistas, chegando inclusive a mobilizar considerável quantidade de militantes que promovem o ódio contra imigrantes, a comunidade LGBT, os ecologistas, o feminismo e, obviamente, aquilo que chamam de populismo de esquerda e suas políticas redistributivas. O termo “wokismo”, que originalmente era usado para expressar a necessidade de “estar desperto e atento” diante da discriminação contra afro-americanos, e que depois se estendeu a outras reivindicações, passou a ser utilizado pela direita de forma pejorativa para se referir ao que definem como uma “ditadura cultural do progressismo”, enfatizando exageros, dogmatismos e cancelamentos para conquistar a adesão de parte da população. Nesse confronto contra o wokismo, a direita ergue a bandeira de uma nova “Batalha Cultural”, obviamente no sentido oposto ao formulado pelo gramscismo, promovendo a hegemonia da direita.
Como em toda batalha, devem existir dois lados bem definidos, e através de seus meios de comunicação e da manipulação das redes sociais, ocupam-se de demonizar e estigmatizar todo aquele que defenda os direitos humanos, a justiça social e o cuidado com o meio ambiente, chamando-os de “seres miseráveis”, “escória comunista” e outros epítetos que buscam desumanizar quem pensa diferente, chegando até a justificar o uso da violência contra eles. Muitos jovens, talvez cansados do discurso de um progressismo “politicamente correto” (e muitas vezes hipócrita), sentem que a rebeldia juvenil agora passa por ser de direita, e aderem a esses novos fascismos. Essa estratégia extremamente maniqueísta não difere muito da usada pelo fascismo que surgiu há um século e terminou nas piores atrocidades; e, assim como antes, consegue também o apoio do poder econômico, que se sente duplamente beneficiado, já que pode contar com a cumplicidade dos governantes para explorar e depredar, e ao mesmo tempo fazê-lo sem escrúpulos, respaldado pelo apoio popular daqueles que, paradoxalmente, sustentam seus próprios algozes.
Diante dessa situação, alguns, de ambos os lados, se perguntam como ganhar a batalha cultural para ter a hegemonia que permita governar. Mas o que aconteceria se nos perguntássemos se realmente a solução passa por travar essa batalha nesse mesmo terreno? Ou ainda: para que exatamente se quer ganhar uma batalha cultural e alcançar a hegemonia?
Quando Antonio Gramsci escreveu seus cadernos na prisão do fascismo italiano, para os comunistas da época não havia dúvida de que o comunismo era a solução política e econômica; o desafio era como chegar ao poder para aplicá-lo. Seria por meio de golpes palacianos? Por revoluções e levantes populares? Ou por processos democráticos respaldados por massas proletárias organizadas em sindicatos? A questão era como conquistar e manter o poder, como obter o respaldo da sociedade. Poucos, porém, se perguntavam o que fazer com esse poder uma vez conquistado, pois se supunha óbvio que o comunismo era a solução. Um século depois, após a queda do socialismo real e o fracasso retumbante das economias centralizadas, essa resposta ficou obsoleta. Hoje, se alguém se perguntasse como obter hegemonia para governar com apoio social, deveria antes se perguntar o que fará com esse poder, já que não parece claro, considerando as reiteradas frustrações com governos de diferentes matizes. Talvez seja preciso compreender que os lados que hoje disputam a hegemonia não são mais que diferentes avatares de um mesmo poder que perdura incólume, regendo os destinos da humanidade com diferentes disfarces. Há muito tempo, independente de quem governe, a riqueza continua cada vez mais concentrada em poucas mãos, o poder financeiro domina o mundo, o planeta segue sendo destruído, a violência permanece e cresce, e cada vez mais seres humanos são marginalizados do sistema. Governando quem governar, todos aceitam essa marcha rumo ao abismo da civilização: alguns o fazem por convicção, outros por resignação; uns aceleram, outros tentam inutilmente frear, mas todos mantêm o volante na mesma direção. Por isso, é um erro pensar que, diante do avanço das ultradireitas, o caminho seja redobrar esforços progressistas para vencer a batalha cultural e recuperar a hegemonia. Toda batalha implica divisão em bandos, quando o que é necessário é compreender que 99% da população compartilha problemas semelhantes, sofre angústias e incertezas parecidas quanto ao futuro, e que a responsabilidade por isso não está nesse 99%, mas no 1% restante, o mais interessado em nos dividir em bandos para que nos responsabilizemos mutuamente. Para isso, manipulam a informação e a subjetividade das pessoas. Sentimentos como ódio, inveja, revanchismo e discriminação são explorados pelos manipuladores para formar os bandos e mantê-los lutando entre si. Já vimos na história o que acontece quando os piores sentimentos são exacerbados para fomentar lutas entre facções: vários genocídios começaram assim, com governos de diferentes ideologias; desumanizou-se pessoas por raça, classe social, religião, nível educacional ou nacionalidade, até chegar à cosificação que justificava massacres. Isso ocorreu na Europa nazista, na União Soviética, na China, no Camboja, em Ruanda, na África do Sul, na Índia, nos Bálcãs, entre outros. Ainda que hoje possamos supor que não se chegue a tanto, já basta a polarização existente para impedir que as maiorias se reconciliem e abracem um projeto comum. A polarização faz com que se demonize o outro lado, de modo que nenhum raciocínio, argumento ou mesmo dado concreto seja considerado válido se vier do lado oposto.
Giuliano da Empoli, em seu livro Os Engenheiros do Caos, analisa como as redes sociais foram usadas para manipular as pessoas a apoiar certos candidatos ou políticas; e quem mais proveito tirou disso foi a ultradireita, que não teve pudores em difundir notícias falsas ou apelar aos piores sentimentos humanos. Como bem aponta o autor, a propaganda nas redes sociais se alimenta de emoções negativas, que garantem maior engajamento. As fake news que apelam a tais emoções viralizam rapidamente, enquanto suas desmentidas quase não circulam. Se antes dissemos que o crescimento atual da ultradireita tem semelhanças com os fascismos de um século atrás, aqui está outra coincidência: a tática de Goebbels, “minta, minta, algo sempre ficará”. Esse tipo de propaganda manipuladora não enfatiza as supostas virtudes de quem a produz, mas sim os defeitos imperdoáveis do adversário, desumanizando-o por completo, a ponto de boa parte da população aceitar apoiar seu pior algoz, contanto que o outro lado — aquele que ensinaram que devia odiar — não vença.
É por isso que, se se busca uma transformação profunda da sociedade e uma mudança substancial na direção da civilização, não podemos fazê-lo em termos de batalha cultural ou disputa entre bandos, mas sim como a necessidade de um salto evolutivo. Isso implica muitas coisas, mas sobretudo uma épica de uma ética que supere a mediocridade atual.
E quando falamos em mediocridade, não nos referimos apenas ao individualismo, ódio, discriminação e crueldade da ultradireita, mas também às palavras vazias e à hipocrisia do progressismo.
Talvez seja necessário redefinir alguns conceitos e palavras que representem melhor a profundidade de uma nova ética social. Talvez devêssemos falar mais de reciprocidade, e não tanto de solidariedade, já que esta última está muito associada ao humanitarismo caritativo, enquanto a reciprocidade remete a um sistema de relações no qual os membros de uma comunidade se comprometem a se ajudar mutuamente. Talvez devêssemos falar em humanizar o olhar sobre os demais, o que implica aplicar a velha regra de ouro: tratar os outros como queremos ser tratados — e disso decorrem inúmeras ações que ajudariam a superar a armadilha dos bandos e a compreender melhor as ideias e sentimentos dos outros. Talvez devêssemos falar mais em libertação do que em liberdade, pois a libertação é um processo permanente, e numa sociedade complexa e mutável, a diferença entre a liberdade teórica e a concreta frequentemente nos obriga a reconsiderar seus termos. Quanto à igualdade, não há dúvida de que todos devem ter os mesmos direitos e oportunidades; mas é a falta de oportunidades práticas que motiva propostas compensatórias vistas como igualitaristas, alvo das críticas dos defensores da meritocracia — que, obviamente, nada dizem sobre a falta de igualdade de oportunidades. Por isso, a igualdade de oportunidades deve ser requisito sine qua non para sustentar um regime de propriedade privada, já que o direito de propriedade deve estar condicionado pelo direito à igualdade de oportunidades, e não o contrário. Na medida em que a concentração de riqueza for um obstáculo a essa igualdade, será preciso repensar o direito ao uso da propriedade do capital concentrado. Mas, acima de tudo, é preciso também perguntar pelo verdadeiro sentido da vida humana em contraste com o materialismo consumista e alienante, hoje aceito como organizador da sociedade e da realização individual.
Em suma, se dos labirintos se sai por cima, será preciso começar a voar em direção a novas utopias que ressoem nos sentimentos mais profundos do ser humano; porque não bastará propor mudanças nas práticas democráticas, nas técnicas econômicas ou na legislação: tudo isso deverá ser consequência de um verdadeiro salto evolutivo.







