SAÚDE

Por Joyce Enzler

Para colocar na pauta do cotidiano brasileiro a importância do diálogo entre comunicação e saúde, é essencial conversar com jornalistas que prezam o estudo, a produção do conhecimento e a escrita que esmerilha palavras em tempos velozes, efêmeros e fúteis. O objetivo dessa conversa é conhecer os processos de escrita do jornalista, suas ideias, rotina e subverter a ordem,  colocar em primeiro plano quem geralmente está nos bastidores de uma grande reportagem, de uma investigação que pode mudar os rumos políticos do país.

Neste 7 de abril, Dia Mundial da Saúde e Dia Nacional do Jornalista, Pressenza traz para esse espaço, em que letras ainda são buriladas e afagadas, a entrevista com Bruno Dias, pesquisador e jornalista do Observatório de Gestão Estadual do Sistema Único de Saúde (OGE-SUS) que atua junto à Secretaria do Estado da Saúde Pública do Rio Grande do Norte (Sesap/RN) para a qualificação da gestão, incluindo sua Assessoria de Comunicação Social (Ascom/Sesap).

Conte um pouco da sua trajetória.

Sou carioca do subúrbio, do Méier, tenho 43 anos, estudei no Colégio Pedro II e a escolha do jornalismo foi muito por muitos políticos, do ideal do jornalismo, e da comunicação, como uma profissão que faz a história cotidiana e também para ampliar a participação política da organização em que militava na época, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nesse mês, faço 25 anos de entrada na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), um amigo me lembrou isso essa semana.

Entrei inicialmente em Rádio e TV, colei grau e mantive o vínculo para cursar Jornalismo, concluído em 2006. Assim que me formei, fui para São Paulo trabalhar e lá morei e trabalhei durante sete anos, no mercado. Fui assessor de imprensa e repórter de trade, na área do varejo e, depois, fui para a área da cultura, escrevendo sobre gastronomia e programação cultural da cidade de São Paulo.

Em 2013, fui convidado para compor a comunicação da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). A Associação havia realizado seu décimo congresso, em Porto Alegre, e houve muitos problemas de comunicação. Então, quiseram apostar num novo formato de equipe, e lá fiquei por 10 anos, chegando nos últimos três anos na função de coordenador de comunicação.

Pensar comunicação e saúde na dimensão da política pública e na articulação da participação social”

Digo que o primeiro ano na saúde pública e coletiva foi um terror porque eu não entendia nada. Não entendia nem a linguagem nem a história e também não conseguia ver muitos objetivos, pois eu tinha a visão muito geral, de leitura de jornal e audiência de TV, e de usuário de plano de saúde. Eu nunca tinha pensado em atuar na saúde na minha formação, e não conhecia a dimensão política da saúde.

Só entendi 100%, o que eu estava fazendo na Abrasco, e na Saúde Coletiva, no Abrascão de 2015, quando fechei o ciclo de congressos da área – o de Ciências Sociais e humanas em saúde; o de políticas planejamento e gestão em saúde, o de epidemiologia e, ainda o simpósio de vigilância sanitária e o simpósio de saúde e ambiente. Então, compreendi o que era a saúde coletiva, o papel, a atuação e o valor do jornalista de saúde: sua responsabilidade técnica de traduzir o conhecimento e estar atento aos debates centrais, que vão influir na vida das pessoas das mais diversas formas, como a liberação do uso de telhas de amianto, o valor dos planos de saúde e os debates da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Nesses 10 anos, tive oportunidade de conhecer grandes dirigentes da saúde pública nacional e internacional. A Abrasco foi a minha primeira escola de Saúde, e uma das minhas formadoras políticas e de cidadania. Decidi me aperfeiçoar e ingressar na área pelo caminho da pós-graduação. Em 2016, cursei Especialização em Comunicação e Saúde no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). Passei para o Mestrado Acadêmico em Saúde pública na Ensp/Fiocruz em 2018. E ano passado, em 2023, ingressei no doutorado também no Programa de Saúde Pública da Ensp. Nessas três formações, a temática é a comunicação e saúde, sempre, ganhando aprofundamento e agora com a perspectiva de trazer novos aportes teóricos autorais ao campo.

Nessa caminhada acadêmica, minha inserção tem sido pensar a comunicação e saúde na dimensão da política pública, na articulação da participação social, democracia e, agora, da gestão. Estou investigando como o Ministério da Saúde executa e operacionaliza o que chamamos de “plano nacional de comunicação do SUS” e os atores e interesses que atravessam essa produção comunicativa.

Acervo pessoal Bruno Dias.

Como tem sido a caminhada no doutorado, com os trabalhos no jornalismo, a escrita no blog e a vida cabendo no Lattes?

A frase “Viver não cabe no Lattes” é muito emblemática, né? Porque ela circula um tempo, como uma imagem de uma pichação, simbolicamente um ato de anarquia, de revolta, de quebra da ordem. Acredito que a vida é para além do Lattes, mas o Lattes tem de caber na vida.

Quem abraça o caminho da formação pós-graduada, principalmente na formação doutoral acadêmica, tem de entender isso como um projeto para a vida, que exige dedicação. É um salto rumo a um aprofundamento teórico que precisa derrubar verdades do senso comum e científicas, uma reflexão sobre os objetos como se olhássemos pela primeira vez, mas querendo ver através do espelho que eles são, a partir de uma maturidade científica que você já traz da sua formação anterior e da sua prática profissional.

Tem sido um processo muito rico. Inicio agora o segundo ano e tive a chance de fazer cadeiras que realmente trouxeram novos aportes. Além disso, a possibilidade de fazer matérias em outros programas de pós-graduação, como o PPGIC e o Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro  (PPGSC-IMS/UERJ). Nesse ano, vou poder refletir sobre a docência, uma nova prática que tive a oportunidade de fazer algumas experiências. Dei uma aula de Comunicação e Saúde para o curso de Mestrado Profissional com ênfase em Atenção Primária à Saúde (APS) e, agora em abril, vou dar uma aula na Especialização de Vigilância. Serei também estagiário na disciplina de Políticas Públicas, neste semestre, acompanhado por meus orientadores. A docência ganhou mais espaço nos meus interesses assim como a pesquisa.

Também componho o Observatório da Gestão Estadual do SUS no Estado do Rio Grande do Norte (OGE-SUS/RN). No Observatório, vou começar uma pesquisa sobre a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado da Saúde e rede de comunicação institucional potiguar. Veja nossa última publicação: https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/55053.

Acervo pessoal Bruno Dias.

Como é o seu processo de escrita jornalística e acadêmica?

O meu processo da escrita não tem um horário preferido e acontece muitas vezes na madrugada, por causa do excesso de coisa que faço. Por estar nessa dupla vida, há sete anos, meu chaveamento jornalista-autor acadêmico é ágil e sem sofrimento, até porque meu jornalismo sempre foi mais analítico. Atualmente, tenho uma musculatura intelectual bem azeitada, mas inicialmente foi sofrido, porque são escritas com objetivos sociais e práticos bem distintos.

O primeiro aspecto é a obrigatoriedade do prazo. Quando não estamos na prática profissional remunerada, não temos aquela obrigação de entregar alguma escrita diária ou regularmente. A acadêmica também não tem essa exigência, ainda que haja artigos, pareceres, resumos de congressos, capítulos de livros, enfim, muito texto também. Mas, comumente, nesse nível de produção acadêmica, você já está muito acostumado, domando sua linguagem e temporalidade analítica, que, para mim é a maior diferença.

A escrita jornalística está preocupada em informar algo que ocorre dentro de uma temporalidade noticiosa, ou seja, que esteja na atualidade e traga o novo, um novo evento, uma nova declaração, um novo fato. Contudo, ela exige uma lente mais curta. Mesmo as matérias de análise, que articulem temas com mais profundidade, estão presas no cânone da notícia, do novo, do factual. Não se faz matéria sobre apoio matricial e institucional na Atenção Primária no confronto das visões gerencialistas e comunicativas no Rio de Janeiro entre 1996 e 2022. Porém pode-se fazer uma matéria sobre o ganho em produtividade e atendimento nas unidades de saúde cariocas, para dar um exemplo.

A acadêmica é uma escrita com um outro objetivo, pois visa a construção do conhecimento, exige não só uma lente de maior alcance como o uso de diferentes filtros e, ao final, a redação de um texto multifractal no tempo, no espaço e na autoria – são comumente largos tempos investigativos e/ou comparativos em diferentes realidades, e sempre dando vazão a muitos autores, seja em consonância, seja como crítica. A lente de um bom pesquisador precisa ser de longo alcance e estar ancorada e suportada por teorias, pela compreensão histórica das teorias e dos métodos de pesquisa e em diálogo com as pessoas que já escreveram sobre isso, você concordando ou não com elas.

Isso é necessário para se poder ver um objeto por diferentes ângulos, camadas, escolas de pensamento e, então, trazer um avanço ao conhecimento, não somente por ser um fato novo. Esse conjunto de dimensões faz com que além de serem tempos e motivos de textos diferentes seja também processos de redação diferentes. Tomemos o atletismo como metáfora. O texto jornalístico é uma corrida de 50 metros, precisa ser rápido e estar atento ao instante. O mestrado é uma corrida de 200 metros com barreiras, pois tem um percurso maior e exige saltos curtos durante a sua trajetória diante do objeto. O doutorado é uma corrida de fundo de 800 metros com um salto à distância: é uma longa trajetória e exige um salto que ultrapasse marcas já estabelecidas. Além disso, é um texto que tem normas e parâmetros acadêmicos e exige normas metodológicas.

Na academia, o que se disserta e propõe como autoria precisa ter bases “reproduzíveis” para a sua possível replicação. Até na academia esse debate tem sido bombardeado, mas se estamos produzindo conhecimento, ele tem de ser passível de ser aferido e trilhado por outras pessoas que venham depois, isso é importante. Não escrevemos para nós ou para um consumo diletante e imediato, é fruto de um investimento social muito caro e deve trazer contribuições à sociedade. Logo, dominar os códigos, a ABNT, a linguagem, tudo isso é necessário, porque são eles que permitem que sejamos lidos em todo o planeta (o por que não somos lidos é outra questão). Além do mais, é fundamental saber o que faz sentido para o sistema hegemônico para poder criticar e fazer diferente.

 

Acervo pessoal Bruno Dias.

Qual a importância de unir dois campos tão importantes para a sociedade, comunicação e saúde?

Escolhi unir na minha prática acadêmica e militante os campos da política, da comunicação e da saúde pelo entendimento que são os elos – com a educação – , os pilares da prática social, ainda que dependentes e sensíveis ao mundo da economia e do trabalho. Mas eles conformam a vida na superfície, a vida que está em embate aberto. O que entendemos por sociedade civil foi instaurada pelo discurso da liberdade – de posse e de expressão contra as autoridades, uma ideia burguesa que na época era revolucionária.

A nossa noção de direito à saúde e à comunicação são e serão revolucionárias, porque tratam da expressão social, política e da vida das coletividades. Não estamos falando apenas do acesso a serviços médicos, de poder ler um jornal ou falar besteira na internet. Falo de um direito à saúde, que garanta as formas de viver, e se manter vivo e com saúde, comprometidas com a ciência, mas também com as ritualidades, comprometidas com a assistência tecnológica, porém também com a conversa afetuosa na consulta; comprometidas com o corpo, não só como máquinas, contudo com a qualidade e natureza dos alimentos e produtos que utilizamos, comprometida com o saber acadêmico, formal, mas também com a loucura e outras formas de estar no mundo.

Falo de um direito à comunicação que possa expressar essa diversidade de coletividades, que não concentre poderes e permita unicamente as mesmas vozes, ou que coloque as mesmas vozes numa altura tal que as demais ficam abafadas. Por isso o estudo do mestrado pensou nas capacidades que as entidades dos movimentos sociais da saúde têm acumuladas para produzir comunicação e, assim, exercer minimamente o que entendemos como democracia liberal.

No doutorado, o desafio é, a partir dessas distintas visões de comunicação e saúde, entender o que opera a produção das políticas públicas. Como o direito à comunicação e direito à saúde são capturados pelo mercado e pelos operadores políticos do mercado. A importância de ambos não é tão bem compreendida pela sociedade. Estudar esses mecanismos de regulação, regulamentação e captura é o que motiva a pesquisa doutoral.

Leia também a entrevista com a jornalista da EPSJV/Fiocruz, Cátia Guimarães.

https://www.pressenza.com/pt-pt/2023/04/entrevista-jornalista-catia-guimaraes-reflete-sobre-o-dialogo-entre-comunicacao-e-saude/