A eleição do filósofo, ativista e escritor indígena Ailton Krenak para ocupar a cadeira de número 5 da Academia Brasileira de Letras (ABL) foi recebida com grande entusiasmo pelas comunidades literária, acadêmica e artística brasileira e latino-americana porque simbólica em muitos sentidos. Especialmente, por reforçar um anseio de mudança de paradigma no horizonte de expressão intelectual do Brasil e do mundo. Afinal, Krenak é o primeiro representante dos povos originários do país sul-americano a ocupar o posto de “imortal” da ABL, instituição fundada em 1897.

O pleito realizado também no último dia (5) – os números sempre nos dizem algo – buscou ocupar a cadeira anteriormente deixada pelo historiador José Murilo de Carvalho, falecido em agosto do corrente ano. Nele, concorreram a também historiadora Mary del Priore e o escritor indígena Daniel Munduruku, candidatos que junto a Krenak são portadores de sensibilidades outras de pensar o mundo, ordenar o mundo e interagir no mundo. Ela, do universo do feminino. Os outros dois, herdeiros e embaixadores da resistência histórica dos povos originários das Américas.

Para o jornalista, escritor e presidente da ABL, Merval Pereira, a produção literária de Krenak expressa “uma visão de mundo muito própria e apropriada para este momento, em que o mundo está preocupado com o meio ambiente, em que os povos originários lutam por seus direitos […] é um indígena que trabalha com a cultura indígena, com a valorização da oralidade.¨ – declarou.[i] É também representante de uma miríade de expressão intelectual – o do pensamento ancestral – que nas últimas décadas vem buscando conquistar espaços por meio de seus porta-vozes. Nessa lista, ademais das etnias brasileiras Krenak e Munduruku, também figuram importantes nomes como os dos escritores americanos Russell Means e Joy Harjo, respectivamente das etnias Lakota e Creek, além dos mexicanos Macario Matus, Briceida Cuevas Cob e Jorge Cocom Pech. O primeiro pertencente à cultura Zapoteca; os dois últimos, da Maya.

A conquista cada vez maior de espaço por esses autores não é fortuita, tampouco foi simplesmente dada. É resultado de muito suor e sangue derramados. É fruto de mais de cinco séculos de aprendizagens e de ressignificações de estratégias de resistência. Sobretudo, culturais. É igualmente produto da qualidade, da potência e da relevância de suas obras para o momento histórico que a grande aldeia humana atravessa.

A nomeação de Krenak ao posto de “Imortal” por uma instituição como ABL é um impulso nesse sentido. Ela comunica que em alguns nichos institucionais mais tradicionais há um lugar de acolhida para aquelas outras diversidades que não importam ao projeto globalizador. Ou seja, àquele projeto colocado a todo vapor em marcha nos anos noventa e que ainda está em curso. O projeto de uma globalização “perversa”, como denunciava o geógrafo Milton Santos.[ii] Ou então, irracional – como recentemente denominou o filósofo Byung-Chul Han evocando o pensamento de Immanuel Kant.[iii] Um suposto projeto de aldeia global que em verdade é ordenado verticalmente de cima para baixo. Uma idealização de mundo que busca organizar comunidades e territórios de maneira a homogeneizá-los a fim de torná-los mais receptivos ao mercado, facilitando a fluidez global de negócios. Nesse projeto a preservação de identidades, e, logo, da diversidade humana, é meramente seletiva. Portanto, sumariamente eugênica.

A globalização como projeto é uma força que defende, preserva e investe pesado na diversidade que a ela interessa – identidades que também são importantes –, mas que com esmagador impulso contrário oblitera, silencia e condena à extinção a diversidade dissonante. Nunca em outro momento da História tantas línguas e identidades culturais foram extinguidas em velocidade e força telúrica tão avassaladoras, assim como também a biodiversidade do planeta. Quase uma década atrás os professores e linguistas Robert Phillipson e Tove Skutnabb-Kangas alertavam que em menos de um século mais de 90% das línguas faladas no mundo estarão extintas.[iv] A maioria pertencente aos povos originários, guardiões da biodiversidade. Língua é diversidade; é sensibilidade única de ver o mundo. Morre uma língua, morre um povo. Sepulta-se sua existência, seus conhecimentos, e, condena-se o ecossistema do qual é guardiã.

A conquista de posições e o reconhecimento da importância desse pensamento ancestral por instituições como a ABL, da qual a nomeação de Krenak é representativa, emerge nos atuais espaço de experiência e horizonte de expectativas da História como indicativos de uma abertura das instituições de conhecimento à transição para maneiras outras de pensar e imaginar o mundo. A emergência fabricada por nós e colocada frente a nós pelo aquecimento global, pelo uso irracional de recursos naturais e pela perda de biodiversidade – e, de diversidade – exige urgente mudança de consciência. O início do Antropoceno com o advento da Primeira Revolução Industrial demarcou o enraizamento paulatino de formas, estruturas, processos e conteúdos sistêmicos que tristemente concebem o mundo do natural como um mero servidor.[v] Em grande medida, essas estruturas de pensamento foram imperativas a partir das e nas sociedades ocidentais, europeizadas. As mesmas que no passado engendraram, coordenaram e colocaram em marcha processos imperialistas e civilizatórios, assim como atualmente o modelo globalizador em marcha.

Essas estruturas de pensamento ainda não são imperativas nas chamadas sociedades tradicionais. Entre as quais, os povos originários das Américas. À diferença das sociedades ocidentalizadas, que levaram o pensamento antropocênico à sua máxima realização, os povos originários americanos são guardiões de saberes e conhecimentos amigáveis com o planeta. Esse pensamento ancestral que outrora visto de maneira pejorativa como primitivo é agora nossa chave para um futuro possível. Daí sua importância e a relevância do reconhecimento da contribuição para toda a humanidade de livros como “Futuro Ancestral” e “Ideias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak.

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[i] Fonte: Agência Brasil, extraído de <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-10/escritor-e-ativista-indigena-ailton-krenak-e-novo-imortal-da-abl>

[ii] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2017.

[iii] HAN, Byung-Chul. Capitalismo y pulsión de muerte: artículos y conversaciones. Barcelona: Herder Editorial, 2022.

[iv] BENEYTO, J. V.. Derechos humanos y diversidad cultural: globalización de las culturas y derechos humanos. Barcelona: Icaria editorial, 2006.

[v] O conceito Antropoceno foi popularizado a partir dos anos 2000 pelos cientistas Paul Crutzen (Nobel de Química) e Eugene Stoermer para designar a época histórica em que as atividades humanas passaram a impactar consideravelmente a natureza. O artigo que possibilitou visibilidade ao termo foi: CRUTZEN, Paul; STOERMER, Eugene. The Anthropocene. In: GLOBAL CHANGE Newslatter. The International Geosphere–Biosphere Programme (IGBP): A Study of Global Change of the International Council for Science (ICSU), n° 41, May 2000, pp. 1-18.