Jeffrey Sachs, intelectual influente dos EUA reconhece: o Ocidente não quis nem quer lutar pela paz. Duas provocações prévias foram o estopim do conflito. Mas admiti-las obrigaria Biden a ir para a mesa de negociações e frearia o push industrial-militar que lucra com o sangue ucraniano

Por Jeffrey Sachs, traduzido por Rubens Turkienicz para o Brasil 247

George Orwell escreveu no seu livro 1984 que “quem controla o passado, controla o futuro; e quem controla o presente, controla o passado”. Os governos trabalham implacavelmente para distorcer as percepções sobre o passado. Sobre a Guerra na Ucrânia, o governo Biden tem alegado repetida e falsamente que ela foi iniciada por um ataque não-provocado da Rússia à Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022. Na verdade, a guerra foi provocada pelos EUA de maneiras que importantes diplomatas estadunidenses anteciparam durante as décadas anteriores à guerra, significando que a guerra poderia ter sido evitada e agora deve ser parada através de negociações.

Reconhecer que a guerra foi provocada ajuda-nos a compreender como pará-la. Isso não justifica a invasão russa. Uma abordagem muito melhor para a Rússia poderia ter sido intensificar a diplomacia com a Europa e o mundo não-Ocidental para explicar e se opôr ao militarismo e unilateralismo dos EUA. Na verdade, o implacável ‘push’ dos EUA para expandir a OTAN é amplamente desaprovado em todo o mundo, portanto se a diplomacia russa tivesse sido mais intensa antes da guerra, isso teria sido provavelmente muito eficaz.

A equipe de Biden usa incessantemente para a guerra o adjetivo de “não-provocada”, mais recentemente no importante discurso de Biden aquando do aniversário do primeiro ano da guerra, assim como numa recente declaração na OTAN e na última declaração do G7. A imprensa institucional, que é favorável a Biden, simplesmente papagueia a Casa Branca. O New York Times (NYT), que é o principal culpado, descreveu a invasão como “não-provocada” não menos do que 26 vezes, em cinco editoriais, 14 colunas de opinião de escritores do NYT e sete editoriais de pessoas convidadas.

Na verdade, houve duas provocações maiores dos EUA. A primeira, foi a intenção dos EUA de expandir a OTAN para a Ucrânia e para a Geórgia a fim de cercar a Rússia na região do Mar Negro com vários países da OTAN (Ucrânia, Romênia, Bulgária, Turquia e Geórgia, em ordem contrária ao relógio). A segunda, foi o papel dos EUA na instalação de um regime russofóbico na Ucrânia através da violenta derrubada do presidente ucraniano pró-russo Viktor Yanukovych, em Fevereiro de 2014. A guerra quente na Ucrânia começou em verdade com a derrubada de Yanukovych há nove anos e não em Fevereiro de 2022 – como os governo dos EUA, a OTAN e os líderes do G7 gostariam que acreditássemos.

Biden e a sua equipe de política externa recusam-se a discutir estas raízes da guerra. Reconhecê-las minaria o governo norte-americano de três maneiras. Primeiro, isso revelaria que a guerra poderia ter sido evitada, ou parada no início, poupando a Ucrânia à sua atual devastação e os EUA a mais de US$ 100 milhares de milhões de despesas até hoje. Em segundo lugar, isso exporia o papel pessoal do presidente Biden na guerra, como um participante na derrubada de Yanukovych e, antes disso, como um convicto apoiador do complexo militar-industrial e um dos primeiros defensores da expansão da OTAN para o leste da Europa. Em terceiro lugar, isso empurraria Biden para a mesa de negociações, minando o continuado ‘push’ do governo pela expansão da OTAN.

Os arquivos registram irrefutavelmente que os governos dos EUA e da Alemanha prometeram repetidamente ao presidente soviético Mikhail Gorbachev que a OTAN não me moveria “sequer uma polegada para o leste” quando a União Soviética dissolveu a aliança militar do Pacto de Varsóvia. Em 1997, o especialista estadunidense de segurança nacional Zbigniew Brzezinski descreveu o calendário de expansão da OTAN com notável precisão.

Os diplomatas estadunidenses e os próprios líderes ucranianos sabiam muito bem que a expansão da OTAN poderia levar à guerra. O grande estudioso-estadista George Kennan chamou a expansão da OTAN um “erro fatídico”, escrevendo no New York Times que “pode-se prever que uma decisão dessas inflame as tendências nacionalistas, anti-ocidentais e militaristas da opinião pública russa; pode ter um efeito adverso no desenvolvimento da democracia russa; pode restaurar o clima da guerra fria nas relações Oriente-Ocidente e impelir a política externa russa em direções que não serão do nosso gosto”.

O secretário de defesa do presidente Bill Clinton, William Perry, considerou demitir-se em protesto contra a expansão da OTAN. Nas suas reminiscências sobre aquele momento crucial em meados dos anos de 1990, Perry afirmou o seguinte em 2016: “A nossa primeira ação, que nos fez partir na direção ruim, foi quando a OTAN começou a se expandir, trazendo para dentro nações da Europa oriental, algumas delas tendo fronteiras com a Rússia. Naquela época, nós estávamos trabalhando intimamente com a Rússia e eles estavam começando a se acostumar à ideia de que a OTAN poderia ser uma amiga, ao invés de uma inimiga … mas eles estavam muito desconfortáveis sobre ter a OTAN bem em cima da sua fronteira e fizeram um forte apelo para que nós não seguíssemos adiante com aquilo”.

Em 1998, o então embaixador dos EUA na Rússia, e agora diretor da CIA, William Burns, enviou um telegrama para Washington advertindo extensivamente sobre os graves riscos da expansão da OTAN: “As aspirações da Ucrânia e da Geórgia sobre a OTAN não só tocam num nervo exposto da Rússia, elas engendram sérias preocupações sobre as suas consequências para a estabilidade na região. A Rússia não só percebe este cerco e os esforços para minar a influência russa na região, mas também teme as consequências imprevisíveis e descontroladas que afetariam seriamente os seus interesses de segurança. Os especialistas nos dizem que a Rússia está especialmente preocupada que as fortes divisões na Ucrânia sobre tornar-se membro da OTAN, havendo muitos da comunidade etnicamente russa sendo contra, poderia levar a uma importante cisão, envolvendo violência ou, no pior dos casos, uma guerra civil. Numa eventualidade destas, a Rússia teria que decidir se interviria; esta é uma decisão que a Rússia não quer ter que enfrentar”.

Os líderes da Ucrânia sabiam claramente que pressionar pela expansão da OTAN à Ucrânia significaria a guerra. O ex-assessor de Zelensky Oleksiy Arestovych declarou numa entrevista de 2019 “que o nosso preço para entrarmos na OTAN é uma grande guerra com a Rússia”.

Durante o período de 2010-2013, Yanukovych defendeu a neutralidade, em sintonia com a opinião pública ucraniana. Os EUA trabalharam clandestinamente para derrubar Yanukovych, como foi registrado vivamente na gravação de uma conversa telefônica da então secretária-assistente de Estado dos EUA, Victoria Nuland, com o embaixador dos EUA Geoffrey Pyatt, que planejavam o governo pós-Yanukovych semanas antes da sua derrubada. Nuland deixa claro na conversa que ela estava coordenando essa ação diretamente com o então-vice-presidente Biden e o seu assessor de segurança nacional, Jake Sullivan: a mesma equipe Biden-Nuland-Sullivan que está agora no centro da política dos EUA em relação à Ucrânia.

Após a derrubada de Yanukovych, a guerra irrompeu no Donbass, enquanto a Rússia reivindicou a Criméia. O novo governo ucraniano fez um apelo para tornar-se membro da OTAN e os EUA armaram e ajudaram a reestruturar o exército ucraniano para torná-lo interoperável com a OTAN. Em 2021, a OTAN e o governo Biden renovaram fortemente o seu compromisso com um futuro para a Ucrânia na OTAN.

Na véspera da invasão russa, a expansão da OTAN estava no centro do palco. A proposta de Putin para um tratado EUA-Rússia (de 17 de dezembro de 2021) estabelecia uma moratória na expansão da OTAN. Os líderes da Rússia colocavam a expansão da Rússia como a causa de uma guerra na reunião de 21 de fevereiro de 2022 do seu Conselho Nacional de Segurança. No seu discurso à nação naquele dia, Putin declarou a expansão da OTAN como sendo a razão central para a invasão.

O historiador Geoffrey Roberts escreveu recentemente: “Será que a guerra poderia ter sido evitada por um acordo Rússia-Ocidente que impedisse a expansão da OTAN e neutralisasse a Ucrânia em troca de sólidas garantias para a independência e soberania ucranianas? Muito possivelmente”. Em março de 2022, a Rússia e a Ucrânia reportaram um progresso na direção de um final rapidamente negociado para a guerra, baseado na neutralidade da Ucrânia. Segundo Naftali Bennett, o ex-primeiro-ministro de Israel, que foi um dos mediadores, estava-se próximo de conseguir um acordo antes que os EUA, o Reino Unido e a França o bloqueassem.

Enquanto o governo Biden declara que a invasão russa não foi provocada, a Rússia seguiu as opções diplomáticas em 2021 para evitar a guerra, enquanto Biden rejeitava a diplomacia, insistindo que a Rússia não tinha coisa alguma a dizer sobre a questão da expansão da OTAN. E a Rússia impulsionou a diplomacia em março de 2022, enquanto a equipe de Biden bloqueou um final diplomático para a guerra.

Ao reconhecer que a questão da expansão da OTAN está no centro desta guerra, nós compreendemos porque os armamentos dos EUA não acabarão com ammesma. A Rússia escalará o quanto for necessário para evitar o alargamento da OTAN à Ucrânia. A chave para a paz na Ucrânia é através de negociações baseadas na neutralidade da Ucrânia e na não-expansão da OTAN. A insistência do governo Biden na expansão da OTAN fez da Ucrânia uma vítima das aspirações militares mal-interpretadas e não alcançáveis dos EUA. Está na hora de parar com as provocações e de ter negociações para restaurar a paz na Ucrânia.

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