Ao contrário do que muitas e muitos ainda acreditam, a independência do Brasil em relação a Portugal ocorreu depois de muito sangue derramado. E muito desse sangue tem origem de gente baiana, preta e feminina, fato sempre omitido pelas narrativas hegemônicas. E mesmo hoje, quando se busca dar a conhecer o protagonismo dessa gente lutadora, a lacuna ainda é enorme. E é por isso que aproveito o 2 de Julho para ressaltar a figura de Maria Felipa de Oliveira, uma entre tantas mulheres pretas que protagonizaram um momento histórico importantíssimo.

Para a historiografia hegemônica, o Brasil deixou de ser colônia de Portugal a partir de um “ato heroico” do príncipe herdeiro português, como se muito sangue não tivesse sido derramado para que o país europeu perdesse seu domínio sobre as terras brasileiras. É neste sentido que, no calendário oficial, o 7 de Setembro de 1822 – quando Dom Pedro teria “gritado” o fim da dominação colonial portuguesa sobre o Brasil – é considerada a data da emancipação política, em detrimento do 2 de Julho de 1823, ocasião quando as tropas portuguesas foram definitivamente expulsas do território brasileiro, após muito derramamento de sangue popular, preto e indígena.

Símbolo maior da emancipação brasileira

Como vemos, está impregnada na cultura política brasileira a tendência ao desprezo pelas lutas populares. E não seria diferente quando consideramos que a formação do Estado Nacional brasileiro deu-se a partir de um pacto entre as elites, que pretendiam – e conseguiram – manter excluída a maioria da população, sobretudo indígena e preta  do seu projeto de nação, cuja característica principal seria o estabelecimento de uma Monarquia que mantivesse a ordem social escravocrata, suporte fundamental do latifúndio e da produção de commoditties agrícolas.

Com essas características, não seria lógico que o Estado brasileiro atual, que mantém quase que em essência essa mesma lógica funcional, buscasse remediar tal situação, conduzindo o dia 2 de Julho ao seu verdadeiro lugar, qual seja, o de símbolo maior da emancipação brasileira do jugo de português. Por isso, a data em questão é comemorada unicamente na Bahia. Inclusive, parte da própria elite baiana a despreza, e a prova disso é que o Aeroporto Internacional da capital Salvador, anteriormente denominado Aeroporto 2 de Julho, em 1998 passou a ser chamado Aeroporto Internacional de Salvador Deputado Luis Eduardo Magalhães – ex-presidente da Câmara dos Deputados, um dos filhos do grande representante dessa elite, latifundiário, proprietário de conglomerado de mídia, ex-governador, ex-senador Antonio Carlos Magalhẽs, que durante muito tempo controlou a política no estado – que morreu naquele ano, vítima de um ataque cardíaco.

Construindo outra historiografia

Esse panorama ilustra o porquê de nomes populares não figurarem no “panteão” das heroínas e heróis brasileiros  – ou o fato de apenas muito recentemente alguns desses nomes terem conquistado o lugar que merecem, como foi o caso de Maria Felipa de Oliveira, uma das heroínas da Independência do Brasil.

Maria Felipa de Oliveira nasceu em 1861, na Ilha de Itaparica, a oitava maior ilha brasileira, situada na Baía de Todos os Santos, a pouco menos de 240 kilômetros da capital Salvador. O último censo (IBGE, 2010) registrou 55 mil habitantes no local. Ela era descendente de africanos sudaneses e ganhava a vida vendendo mariscos. Conforme pesquisadoras e pesquisadores diversos, à época da Guerra de Independência, ela tinha entre 22 e 23 anos de idade.

Essa mulher negra do Brasil oitocentista e escravocrata, foi responsável por liderar 40 outras mulheres, de origem popular, em uma missão crucial para a debilitação das tropas portuguesas em território baiano, mais precisamente embarcações dos invasores, que segundo as narrativas históricas registradas acerca de suas missões, formaram um total de 42, a primeira delas capturada no dia 1º de outubro de 1822.

É interessante ressaltar que as vitórias de Maria Felipa e demais mulheres por ela lideradas – e posteriormente também homens – não se deram através do manejo de armas convencionais da época, mas, pela utilização de “armas não convencionais”. Por exemplo, no dia 1º de outubro de 1822, o grupo de mulheres liderado por Felipa usou, primeiramente, a sedução para distrair os homens, e, em seguida, os atacou com galhos de uma planta chamada cansanção – cheia de espinhos e que causa urticária –, ademais tochas confecionadas com palhas de coco para provocar incência na embarcação.

Foram a  sabedoria popular e o espírito de luta do povo pobre – principalmente mulheres pobres – que serviram como principais instrumentos de batalha, numa guerra desigual contra as tropas europeias. Mas, a atuação dessa heroína não termina aí. Conforme os registros históricos, a atuação de Maria Felipa de Oliveira não restringiu-se à liderança de batalhas contra os invasores. Ela também encarregava-se de distribuir em cidades vizinhas – a exmeplo de Cachoeira, Cruz das Almas, Nazaré – mantimentos arrebatados dos inimigos.

Apesar desses grandes feitos, cruciais para a independência da Bahia (e do Brasil), Maria Felipa de Oliveira veio a ser conhecida após o trabalho de pesquisadoras/pesquisadores  que, muito recentemente, começaram a pesquisar sobre a vida desta personagem e  reconstruir a sua bela história. Antes disso, as referências sobre esta mulher lutadora só eram feitas a partir de narrativas populares, o que corrobora a nossa reflexão incial sobre o desprezo pelas lutas populares por parte das elites brasileiras. Mas, felizmente,  estamos virando essas páginas e produzindo uma outra historiografia.