Para melhor ilustrar este texto, vou contar uma história rápida que aconteceu comigo. Um dia, recebi um amigo em casa. Papo vai, papo vem, o telefone tocou na sala. Ignorei o irritante som e continuei a conversar como se fosse a coisa mais natural do mundo. A certa altura, o meu amigo se incomoda – não sei se com o telefone ou com a minha indiferença – e questionou: “não vai atender?”. E eu, com a cara mais lavada do mundo, limitei-me a responder: “não. Não é pra mim. É pra um tal de Jefferson”.

Houve uma época em que nem todos podiam ter um aparelho telefônico em casa. Ter um telefone era um sonho para muitos, um símbolo de status. O processo de aquisição de uma linha telefônica era burocrático e caro. Sim. Não era como comprar um chip na esquina. O valor para ter esse “luxo” era compatível com um bem como uma casa ou um carro. E não é exagero: há trinta anos, uma linha custaria algo em torno de US$ 5 mil. Se hoje a cifra parece alta, imagine naqueles tempos.

O telefone celular, então, nem se fala. Esse veio anos depois e era destinado inicialmente a uma parcela mais rica e específica da sociedade. Até a popularização desses aparelhos, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o uso mais comum de telefone fora de casa ou do ambiente de trabalho ainda era o bom e velho “orelhão”. Então, dado o esforço de se encontrar um, comprar fichas, esperar na fila pela sua vez, as ligações precisavam valer a pena.

Nessa época, anterior ao advento da internet e explosão da telefonia móvel, observamos, então, que ter um telefone era quase uma ostentação e, naturalmente, as pessoas tinham mais prazer em falar ao telefone. Era glamuroso e prático, em comparação com os meios de comunicação tradicionais existentes. Namorados passavam horas a fio ocupando a linha da casa, com aquelas melosas frases como “desliga você” e “não, desliga você…”. Quando o telefone tocava, um alvoroço dentro de casa era criado. Todos corriam para atender a ligação. Se você é mais jovem e não passou por essa sensação, tente imaginar a correria do “Big Phone”. Deve ser algo semelhante.

Porém, algo mudou. Alguma coisa fez com que um desprazer em atender o telefone imperasse no cotidiano das pessoas. A despeito das mudanças sociais, tecnológicas, comportamentais e até geracionais, que seriam muito amplas para serem discutidas neste espaço, um evento em especial pode estar relacionado às mudanças em questão: o telemarketing.

Não é de hoje que os números associados aos trabalhos de call center aumentam no Brasil, mesmo com a precarização dos trabalhadores de teleatendimento. Isso estimula o crescimento de investimentos nesse mercado (sem ter a devida aplicação de recursos, infelizmente, para os seus trabalhadores). A impressão que nos passam é que existem mais empresas de telemarketing do que produtos disponíveis. Para nós, às vezes, é difícil crer que há tanto para ser ofertado! Acredite: até o Moacyr Franco já tentou algumas vezes – sem sucesso, devo deixar claro – vender ômega 3 para mim. E o mais curioso: ele afirma que até para si mesmo já “tentou vender”. O artista alegou que chegava a receber mais de 50 ligações em um único dia com o seu próprio comercial, o que o levou a procurar a empresa de marketing envolvida, por se preocupar com os danos à sua imagem. Acho que o Moacyr deve ter incomodado até o Jefferson.

Com situações como essas, muitas pessoas foram realmente perdendo o prazer de atender ligações. Num primeiro momento, o incômodo se dava pela oferta de produtos e serviços que não tínhamos o menor interesse em receber. Com o passar dos anos, os problemas passaram a ser outros: além da oferta desses produtos indesejados, passamos a conviver com um sem número de ligações destinadas a outras pessoas em nossas linhas. Eu continuo sendo abordado por pessoas que procuram “o meu já velho conhecido Jefferson” para ofertar ou cobrar algo. E não importa o quanto insistisse em informar que eu não era o dito cujo: as ligações nunca cessavam.

Isso muito me incomodava. Porém, eu não era uma andorinha sozinha tentando fazer um verão. Assim como eu, milhões de outros brasileiros se viam nesta mesma situação. E, naturalmente, a sociedade promoveu a pressão necessária junto a órgãos competentes, como a ANATEL e os Procons, para que esses transtornos não existissem mais. Daí, então, nasceram algumas propostas, como o projeto “Não me perturbe”, que atualmente atingiu a marca de mais de 10 milhões de números cadastrados.

Esse projeto visava à elaboração de um sistema que estaria disponível para diversos call centers em todo o Brasil, informando que você não gostaria de ser incomodado com esse tipo de ligação. A ideia, é claro, é maravilhosa, porém parece que não houve o efeito desejado, pelo contrário. Para alguns, houve a impressão de aumento nas chamadas. É como se algumas empresas mais inescrupulosas aproveitassem a oferta de um banco de dados novinho e atualizado para realizarem justamente o inverso: ligar para você, ao invés de deixá-lo em paz. Infelizmente, segundo os envolvidos no projeto, muitas empresas que se comprometeram com a solução, com o passar do tempo, passaram a não cumprir com o acordado.

Atualmente, novas iniciativas começaram a ser adotadas, na expectativa de trazer uma solução para a questão. Em março deste ano, por exemplo, estabeleceu-se o prefixo 0303 para ligações telefônicas oriundas de serviços de telemarketing. A primeira fase contemplará ligações provenientes de telefones móveis e a partir de julho, ligações fixas. Em teoria, a criação de um prefixo exclusivo para o uso dessas chamadas funcionaria como um identificador prévio do assunto que motivou o contato. O usuário, ao reconhecer o “tipo de número”, poderá optar por atender ou não e, inclusive, certamente, haverá num futuro próximo, aplicativos para smartphones que poderão ser configurados para bloquear automaticamente ligações 0303.

Contudo, há ainda, algumas lacunas que aparentemente foram deixadas de lado pela ANATEL, responsável por essa iniciativa. A primeira é que empresas que solicitam doações ou fazem cobranças estão dispensadas da obrigatoriedade de usar o prefixo em questão. E esse último tipo de ligação é uma das mais comuns e estão entre as maiores reclamações dos usuários.

A segunda questão é a ineficiência da Agência Nacional em combater as empresas de telemarketing “piratas” no Brasil. Atuando no limiar da idoneidade, essas empresas fazem uso, muitas vezes, de técnicas semelhantes às de golpistas para entrar em contato com clientes em potencial. Uma dessas técnicas, por exemplo, é o spoofing, isto é, quando o emissor utiliza programas de computador para esconder, camuflar o seu número real, de forma que o receptor não identifique a ligação corretamente e, tampouco, os filtros de spam de programas de proteção o detectem. É como se a empresa pudesse trocar de número indefinidamente a cada chamada, dificultando tanto a ação humana quanto a informatizada.

Infelizmente, as punições aplicadas pela ANATEL costumam estimular o desrespeito aos regulamentos impostos. Segundo a mesma agência, caso uma empresa não utilize corretamente o prefixo 0303 para telemarketing ativo, após denúncias, passará por processos administrativos e até uma eventual aplicação de multa. Então, é possível que você continue sendo incomodado, pois o terreno para algumas empresas é bastante profícuo para continuar com o desrespeito, diante da impunidade esperada.

É uma pena. E sabe o que é pior? Não adianta se livrar da sua linha telefônica, pois os contatos indesejados continuarão chegando por e-mail, SMS, Whatsapp, sinais de fumaça… Enquanto houver uma forma de comunicação possível para disseminar propaganda, ela será usada. É quase uma máxima. Por isso, clamo às empresas (ou canto, naquele já conhecido ritmo sertanejo): não pensem em mim, não liguem pra mim. Liguem para ele.

Eu, infelizmente, só não sei qual é o novo número do Jefferson.