Uma Carta Aberta endossada por importantes signatários foi entregue hoje aos líderes das cinco maiores potências nucleares — China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos (também conhecidos como “nuclear five” ou P5, por serem membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU) — e aos líderes dos outros 185 membros do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (Non-Proliferation Treaty ou NPT). O documento, que exorta os países detentores de armas nucleares a adotar medidas de “no first use” – não disparar primeiro, a política de usar armas nucleares somente como uma medida de retaliação –, tem como intuito impedir uma guerra nuclear.

Intitulada “É hora de cumprir o NPT: das ameaças nucleares à segurança da humanidade”, foi organizada pela NoFirstUse Global, uma rede global de organizações, acadêmicos, gestores e defensores da sociedade civil. Até agora, recebeu apoio de mais de 1000 signatários de 69 países, incluindo ex-ministros, embaixadores, parlamentares, dois ex-presidentes da Assembleia-Geral da ONU, ex-comandantes militares, ganhadores do Prêmio Nobel, cientistas, líderes religiosos, líderes empresariais e representantes de organizações da sociedade civil de todo o mundo.

A data de entrega do documento é significativa, pois o dia 24 de janeiro marca o aniversário da primeira resolução das Nações Unidas, em 1946, que foi aprovada por consenso e que adotou o objetivo universal de eliminar todas as armas nucleares.

A Carta apela aos países P5 que interrompam a produção de armas nucleares e a corrida armamentista, que adotem medidas de não disparar primeiro para, gradualmente, eliminar o papel das armas nucleares nas políticas de segurança, que se comprometam a se desfazer das armas nucleares até, no mais tardar, 2045 – o 75º aniversário do NPT — e que apoiem a saúde pública, a estabilização climática e o desenvolvimento sustentável com orçamentos e investimentos públicos que hoje estão voltados para a indústria das armas nucleares. Isso pode servir de lembrete aos Estados Partes do NPT de que eles têm uma obrigação legal e moral de prevenir uma guerra nuclear e que devem trabalhar de boa-fé para alcançar um mundo sem armas nucleares. E a Carta lembra também que não faltam oportunidades para alcançar esses objetivos.

“Seguir o critério de disparar primeiro é, literalmente, brincar com fogo em situações já muito voláteis e isso quase resultou em uma guerra nuclear por engano ou por erro de cálculo”, apresenta a Carta. “Declarações unilaterais de não disparar primeiro, acordos bilaterais e/ou acordos multilaterais de não disparar primeiro podem reduzir esses riscos, o que pode levar à reestruturação da força nuclear e dos controles operacionais para implementar políticas de não disparar primeiro e para gerar mais credibilidade e confiança, no intuito de reduzir ainda mais os riscos nucleares. E mais importante ainda, a adoção das políticas de não disparar primeiro, juntamente com as de ´sole purpose´ – ou ´propósito único´, cujos objetivos são a dissuasão nuclear ou a resposta a um ataque contra o país e seus aliados – poderia abrir caminho para os Estados detentores de armamentos nucleares e seus aliados se unirem às negociações em pauta para banir as armas nucleares”.

A Carta Aberta foi motivada pelas crescentes tensões entre os Estados detentores de armas nucleares, que as mantinham em prontidão especial para combate, e por uma nova corrida armamentista em que todos os países P5 estavam modernizando seus arsenais nucleares. Essas condições elevaram o risco de eclosão de uma guerra nuclear, seja por malícia (escalada intencional), erro de cálculo, desinformação, má-fé (utilização não autorizada) ou mau funcionamento (utilização acidental).

Na semana passada, o Boletim dos Cientistas Atômicos anunciou que o Relógio do Juízo Final permaneceria fixado em 100 segundos para a meia-noite pelo terceiro ano consecutivo – o mais próximo da meia-noite que já esteve — atestando um elevado nível de risco derivado dos arsenais e das políticas nucleares atuais.

Em 3 de janeiro de 2022, os países P5 lançaram uma declaração conjunta em preparação para a Décima Conferência de Exame do  NPT (agora adiada para agosto, devido à COVID-19), na qual afirmaram que “uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada.” Mas a declaração também reafirmou o papel das armas nucleares nas políticas de segurança. 

Hoje, apoiadores da Carta Aberta comentaram a respeito das condições atuais: 

“As armas nucleares ameaçam as gerações atuais e futuras,” observou Maria Fernanda Espinosa, ex-ministra das Relações Exteriores do Equador e presidente da 73ª Assembleia-Geral da ONU. “Elas não podem resolver os conflitos entre países e são contraproducentes nas questões de segurança humana de hoje e de amanhã: a pandemia da covid-19, a crise climática, a segurança alimentar, a segurança cibernética e a realização dos objetivos de desenvolvimento sustentável. É hora de cumprir o NPT e o objetivo estabelecido pela ONU, em 1946, para eliminar armas nucleares em todo o globo.”

“As tensões geradas pela situação do Irã, a questão norte-coreana, o rápido aumento das temperaturas devido às mudanças climáticas e outros problemas graves tornaram maior a possibilidade de uma guerra nuclear hoje do que há 10-15 anos”, observou o embaixador Thomas Graham Jr., presidente do Grupo de Segurança Não Partidário do Instituto Mundial de Segurança (Global Security Institute Nonpartisan Security Group) e chefe da Delegação dos Estados Unidos na Conferência de Exame e Extensão do TNP de 1995. “Uma maneira interessante de lidar com a questão é que os Estados Unidos declarem formalmente que nunca usarão primeiro as armas nucleares e que solicitem que outros Estados detentores de armas nucleares se comprometam com essa mesma promessa”.

“Chegou o momento de que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU tenham um debate sério sobre como reduzir os riscos de uma guerra nuclear, avaliando, por exemplo, conceitos como ´não disparar primeiro´ e ´propósito único´”, afirmou Lord David Hannay, co-presidente do Grupo Parlamentar Multipartidário sobre Segurança Global e Não Proliferação do Reino Unido (UK All Party Parliamentary Group on Global Security and Non-proliferation) e ex-embaixador do Reino Unido junto à ONU e à União Europeia. “Afinal, faz apenas dias desde que eles reafirmaram em conjunto a premissa de Reagan/Gorbachev de que uma guerra nuclear não pode ser vencida e não deve ser travada”.

“Adotar a medida de não disparar primeiro é a prova de fogo”, disse Gareth Evans, fundador da Asia-Pacific Leadership Network (Rede de Liderança da Ásia-Pacífico) e ex-ministro de Relações Exteriores da Austrália. “Sem isso, a declaração dos países P5 de que ‘uma guerra nuclear nunca pode ser vencida e nunca deve ser travada’, tão necessária e bem-vinda, é mera retórica”.

“O Tratado de Não Proliferação Nuclear foi respeitado pelos países que não possuem armamentos nucleares, mas aqueles que possuem tais armas não respeitaram as suas obrigações”, comentou o professor Giorgio Parisi, ganhador do Prêmio Nobel de Física de 2021. “Como cidadão de um país sem armas nucleares, sinto-me ofendido pela recusa dos países nucleares em iniciar as negociações para a eliminação global desse tipo de armamento.”

“Nosso crescente conhecimento das muitas vulnerabilidades mútuas das sociedades modernas é um novo impedimento para as guerras totais”, indica Frank von Hippel, professor de Assuntos Públicos e Internacionais na Universidade de Princeton e ex-diretor assistente de Segurança Nacional na Casa Branca. “Esse conhecimento deveria facilitar o compromisso com as medidas de não disparar primeiro como um passo inicial para alcançar o desarmamento nuclear”.

Ex-comandantes e veteranos militares apoiadores da Carta Aberta acreditam que as atuais políticas que deixam em aberto a opção de usar primeiro as armas nucleares aumentam o risco de uma catástrofe nuclear e deixam os comandantes militares em uma situação insustentável, ainda mais se forem ordenados a lançar armas nucleares. Por exemplo, o comandante aposentado da Marinha Real Britânica, Robert Forsyth, disse que “Quando em missão de patrulha, comandantes de submarinos estratégicos não têm como saber por que receberam a ordem para lançar um míssil, qual é o alvo da missão ou quais as consequências do disparo para a população civil. Nesse sentido, eu não me sentia preparado para lançar pela primeira vez um ataque com mísseis Polaris, a partir do submarino que eu comandava, na década de 1970”. Ele permanece contra a postura de usar primeiro qualquer arma nuclear.

“A guerra não é a resposta para os problemas que enfrentamos no século 21”, apontou Adrienne Kinne, atual presidente da associação Veterans for Peace“Isso também é válido para as armas e para os equipamentos nucleares que já tiveram impactos terríveis sobre as pessoas e o nosso meio ambiente, e que continuarão a ter por gerações vindouras. É tempo de redirecionar nosso dinheiro, recursos e inteligência para encontrar soluções que atendam às necessidades do mundo de hoje”.

Os signatários da Carta também afirmaram que a adoção de políticas de não disparar primeiro poderia transformar o atual impasse nas negociações de controle de armas nucleares e desarmamento, abrindo caminho para passos significativos em direção a um mundo livre de armas nucleares. Vladimir P. Kozin, por exemplo, membro da Academia Russa de Ciências Militares e da Academia Russa de Ciências Naturais, disse: “Os Estados detentores de armas nucleares estão aumentando a precisão de seus mísseis e de suas bombas, desenvolvendo sistemas de lançamento aéreos de uso dual, e investindo em novos tipos de armas nucleares, como sistemas de armas instalados em bases avançadas localizadas em outros países. Some-se tudo isso a mais justificativas para o uso de armas nucleares estratégicas e táticas nos planos nucleares nacionais. Trata-se de acontecimentos trágicos e perigosos, sendo agravados pelo fato de que, até o momento, os Estados detentores de armas nucleares nunca conduziram negociações oficiais sobre a redução do volume de armas em seus arsenais ou sobre a proibição do uso dos seus arsenais nucleares táticos e seus sistemas de lançamento. Por outro lado, se um compromisso de não ser o primeiro a empregar armas nucleares  fosse aceito por todos os Estados detentores de armas nucleares, isso poderia produzir uma virada revolucionária que levaria, em um primeiro momento, à redução drástica das armas nucleares e, por fim, à completa eliminação desse arsenal de destruição em massa do nosso planeta, para o benefício das populações e da segurança internacional em geral”.

A viabilidade militar e política e a pertinência de os Estados detentores de nucleares adotarem políticas de não disparar primeiro são avaliadas no documento de trabalho No-First Use of Nuclear Weapons: An Exploration of Unilateral, Bilateral and Plurilateral Approaches and their Security, Risk-reduction and Disarmament Implications. O documento foi enviado aos Estados Membros do NPT junto com a Carta Aberta.


Traduzido do inglês por Felipe Balduíno / Revisado por Graça Pinheiro