O pano de fundo para a atual “crise” na Ucrânia — real, imaginada ou exagerada — é o ameaçador confronto entre forças da OTAN e da Rússia em um extenso arco, que vai do Báltico ao Mar Negro. Esse impasse, por sua vez, é atribuído à expansão da OTAN até as fronteiras da Rússia, iniciada em 1999 com a inclusão dos países de Visegrado: Polônia, Hungria e República Tcheca.

Por: David C. Speedie

Além das preocupações militares e de segurança por ter as forças da OTAN batendo à sua porta, as razões para tamanha nevralgia russa, a respeito de uma aliança militar forjada numa Guerra Fria que já não existe mais, são bem conhecidas: o descumprimento, pelo Ocidente, do acordo que estabelecia que a OTAN não expandiria “nem um centímetro em direção ao Oriente” em troca do consentimento russo da unificação alemã; a recusa em levar a sério as propostas russas para uma nova arquitetura de segurança no pós-Guerra Fria, que incluiria a Rússia e seus antigos adversários; a recusa em considerar uma adesão da Rússia à OTAN; e, por trás de tudo isso, um triunfalismo mal disfarçado, por parte dos EUA, durante os anos 1990 – uma década em que a Rússia estava em situação muito difícil (uma atitude que, no ambiente atual, se provou limitada e imprudente).

Há, no entanto, pelo menos duas outras consequências inesperadas do crescimento da OTAN, ambas relacionadas com o ambiente interno da própria aliança. Em primeiro lugar, uma das razões oferecidas para a expansão foi que a OTAN traria para a “nova Europa” (como Dick Cheney a apelidou) não apenas uma sensação de segurança militar, mas a dádiva da governança democrática e do estado de direito desfrutado no Ocidente (alguns de nós argumentaram, na época, que, se essa era a recompensa dada aos estados do Pacto de Varsóvia pelo que haviam sofrido sob o jugo comunista, quem havia sofrido mais nos últimos oitenta anos do que o povo da Rússia?). No entanto, se olharmos para a Polônia, a Hungria ou a Eslovênia de hoje, veremos perturbadores ataques conjuntos a uma mídia e um judiciário independentes. Esta é, claro, uma questão da UE, não da OTAN: o partido Lei e Justiça, que está no poder na Polônia, desafiou aspectos fundamentais das leis e dos regulamentos da UE, os quais havia assinado voluntariamente. Mas, novamente, o suporte e a adesão à democracia de estilo ocidental foi inerente à justificativa da expansão da OTAN.

Em segundo lugar, (e talvez aqui chegamos à principal razão da existência da OTAN, há uma divisão significativa entre os 30 membros sobre a situação na Ucrânia e as relações com a Rússia. De um lado, temos os Estados Bálticos, a Polônia e a Romênia, todos considerados linha-dura, absorvendo voluntariamente mais equipamentos e provisões militares da OTAN e também tropas em terra (houve uma grande injeção de tropas dos EUA no sudeste da Polônia esta semana). Nos casos da Polônia e da Romênia, ainda há os locais dos sistemas de defesa antimísseis, motivos de maior preocupação para Moscou. Do outro lado, temos a Alemanha e a França, a primeira com um grande interesse econômico na disposição final do gasoduto Nord Stream 2. A França lidera a pressão para a diplomacia na Ucrânia, e o presidente Macron voltou das reuniões com o presidente Putin com garantias do anseio da Rússia por uma solução diplomática para a Ucrânia. Contudo, é questionável que tais garantias tenham sido recebidas favoravelmente em Varsóvia e Bucareste. Há também tensões dentro dos próprios “novos estados” europeus, com os flertes do primeiro-ministro da Hungria Viktor Orban com a Rússia e a China.

Finalmente, há o estranho caso do Reino Unido — o aliado dos Estados Unidos mais antagônico em relação à Rússia —, ainda membro da OTAN, mas desligado da UE. Se as feridas autoinfligidas pelo Brexit, principalmente nas relações entre Reino Unido e França, terão algum impacto direto sobre as relações entre países membros da OTAN, não sabemos. Mas o que sabemos é que a recente visita da Ministra das Relações Exteriores do Reino Unido, Liz Truss, para conversas com o ministro russo de mesmo cargo, Sergey Lavrov, foi desastrosa: as palavras mais gentis que o astuto e experiente Lavrov usou para descrever o encontro foram que “a delegação Britânica chegou despreparada” (nós também devemos observar que, se Boris Johnson for derrubado pelo escândalo Partygate, a pessoa mais cotada para substituí-lo como primeiro-ministro é Liz Truss).

Em suma, na Rússia em geral e na crise Rússia-Ucrânia em particular, a Europa está passando por um período de confusão. Meu colega Anatol Lieven sugeriu que Macron poderia resolver a questão da Ucrânia simplesmente dizendo que, para a França, a adesão da Ucrânia e da Geórgia pela OTAN não tem futuro. Isso oferece a perspectiva de uma Ucrânia neutra, sem dívidas com blocos militares de grande potência e em posição de desfrutar relações mutuamente benéficas com o Oriente e o Ocidente. E dizer que essa ação por parte da França dividiria a Europa é apenas reafirmar o que já é óbvio.

Este artigo foi produzido por Globetrotter em parceria com o American Commitee for U.S.-Russia Accord


David C. Speedie, membro do conselho da ACURA, foi anteriormente membro sênior e diretor do programa de U.S. Global Engagement, no Carnegie Council for Ethics in International Affairs. Antes disso, ele presidiu o Program on International Peace and Security na Carnegie Corporation.

 

Traduzido do inglês por Felipe Balduino/Revisado por Thaís R. Bueno