O Dia Mundial da AIDS foi celebrado em primeiro de dezembro, marcando quarenta anos desde os primeiros relatos dos sintomas. Mais de 36 milhões de pessoas morreram no mundo inteiro por doenças relacionadas à AIDS. A taxa de mortalidade está diminuindo à medida que tratamentos eficazes recebem uma distribuição mais ampla. Entretanto, a iniquidade que durante muito tempo contribuiu para a epidemia da AIDS ainda existe e apresenta graves consequências, especialmente para a população da África Meridional. A persistência e os impactos extremamente desiguais da atual epidemia de AIDS servem de alerta enquanto a nova variante do coronavírus, a Ômicron, percorre o mundo.

No momento, pouco se sabe sobre esta variante do SARS-CoV-2 recém identificada, sobretudo quanto à facilidade de disseminação ou às chances de um quadro de COVID-19 mais severo ser diagnosticado. O que se conhece é, em grande parte, graças à rápida identificação realizada pelos cientistas em Botsuana e na África do Sul. Fatima Hassan, fundadora da Health Justice Initiative, elogiou os profissionais responsáveis no noticiário Democracy Now!: “Acho que eles precisam ser elogiados pelo trabalho, por tratar-se de uma variante até então desconhecida”.

No entanto, ao invés de serem aclamadas, as nações da África Meridional estão sendo isoladas. Os Estados Unidos rapidamente implementaram uma restrição de viagens, impedindo que qualquer pessoa de oito países do sul da África entrasse no país. O Brasil, o Canadá, a União Européia, o Irã e o Reino Unido seguiram o exemplo.

“Uma restrição de viagens desigual foi imposta a muitos países da África Meridional”, disse Hassan. “Na verdade, trata-se de uma medida bastante racista”.

O presidente sul-africano Cyril Ramaphosa respondeu às restrições no domingo: “O surgimento da variante Ômicron deve ser um alerta para o mundo de que não se pode permitir que a iniquidade de vacinas continue. Até que todos sejam vacinados, todos continuarão em risco. Em vez de proibir viagens, os países ricos precisam apoiar os esforços das economias em desenvolvimento para que possam ter acesso e produzir doses de vacina suficientes para suas populações imediatamente”.

O secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, se referiu à restrição de viagens como “apartheid de viagens”, o que só serve para agravar a crescente divisão global causada pelo apartheid de vacinas. Em um artigo de opinião recente, o diretor geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, chamou o acúmulo de doses excedentes de vacinas por nações ricas com populações altamente vacinadas inclusive com doses de reforço – de “loucura moralmente repugnante e epidemiológica”.

Seria mais fácil vacinar todo o mundo do que tentar impedir – em vão – que as variantes da COVID-19 atravessem as fronteiras. A Ômicron é um exemplo disso. Como detalhado no New York Times semana passada, a variante já estava instalada na Holanda antes de sua existência ser anunciada na África. Os passageiros de aviões vindos da África do Sul levaram a variante para a Europa, onde o turbilhão de restrições nacionais divergentes já em vigor e os protocolos inadequados de quarentena levaram as autoridades holandesas a forçar muitos viajantes potencialmente portadores da Ômicron a partir para seus destinos finais, acelerando a propagação da nova variante. 

As empresas farmacêuticas que estão lucrando com a pandemia estão atrasando a vacinação em países pobres e emergentes. Com patentes sobre as vacinas, empresas como Pfizer, BioNTech e Moderna estão usando proteções de propriedade intelectual para bloquear o compartilhamento de suas fórmulas secretas de vacinas.

O professor de jornalismo Steven Thrasher vê um paralelo entre o papel da indústria farmacêutica global no cenário atual da COVID-19 e em como os países subdesenvolvidos, principalmente os da África Meridional, foram e continuam sendo afetados pela AIDS:

“Hoje não há nenhuma razão para que alguém morra em decorrência da AIDS. É um vírus lento e, portanto, a partir do momento em que sabemos que alguém está infectado, podemos prestar todo o apoio necessário. A ciência existe para isso. Dispomos de remédios para isso. Trata-se apenas de proteger o capitalismo e os lucros das empresas farmacêuticas”, disse Thrasher em Democracy Now!. “Estamos voltando a ver dinâmicas muito semelhantes durante a pandemia da COVID-19… temos vacinas e medicamentos muito eficazes, mas os países subdesenvolvidos estão novamente sendo privados de seus benefícios para que os lucros das corporações farmacêuticas permaneçam protegidos”. 

Há mais de um ano, a África do Sul e a Índia propuseram que a Organização Mundial do Comércio suspendesse temporariamente o TRIPS, ou Acordo sobre aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual, para acelerar a vacinação contra a COVID-19 em todo o mundo. O Presidente Joe Biden foi aplaudido em maio passado por apoiar a suspensão. A Anistia Internacional, juntamente com membros do Congresso dos EUA e muitos representantes do trabalho, da saúde e de outros grupos da sociedade civil entregaram uma petição assinada por mais de três milhões de pessoas à Casa Branca na semana passada, ressaltando que, “seis meses depois, na ausência da liderança dos EUA para entregar um acordo de renúncia, a União Européia, em nome da Alemanha, mais a Suíça e o Reino Unido, impediram o progresso”.

As pessoas que lucram com a crise devem ditar o rumo das coisas ao ingressarmos, em breve, no terceiro ano da pandemia da COVID-19. Sem que medidas imediatas sejam tomadas, poderemos muito bem ter que combater a COVID-19, assim como ainda fazemos contra a AIDS, durante os próximos quarenta anos.


Traduzido do inglês por Marcella Santiago / revisado por André Zambolli