Ser mulher negra é ser diariamente confrontada pela estética – que não se enquadra no padrão de beleza eurocêntrico branco –, é ter a inteligência questionada a todo momento e enfrentar as tentativas de destruição da autoestima, porque o racismo é sempre perverso. Após 133 anos de abolida a escravidão no Brasil, é este o sentimento de Ivonete da Silva Lopes, Professora Adjunta da Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais (UFV), graduada em Comunicação Social/Jornalismo, com mestrado e doutorado também em Comunicação, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela é autora do livro TV Brasil e a Construção da Rede Nacional de Televisão Pública e atualmente pesquisa políticas de comunicação e diversidade racial; mídia e racismo; comunicação, instituições e ruralidade. Nesta entrevista, Ivonete nos fala sobre questões que permeiam a realidade da população negra no Brasil, com destaque para as mulheres negras, em termos educacionais, socioeconômicos e políticos.

— Fale um pouco sobre a sua experiência enquanto mulher negra no Brasil.

— O racismo é sempre perverso e permeia as relações sociais no Brasil. A minha experiência é de uma mulher negra com 35 anos vividos na Região Sul, especificamente em Santa Catarina, onde 80% da população é branca (IBGE, 2019). Depois mudei para o Rio de Janeiro para cursar mestrado e doutorado. Há quase sete anos moro em Viçosa, no interior de Minas Gerais.
Em todos esses lugares me deparei com o racismo, seja no bairro operário onde cresci ou como docente na universidade pública. Hoje, olhando para o passado, consigo perceber que tentam nos fazer sentir diferentes, desvalorizadas em relação aos demais e destruir nossa auto-estima. Resumindo, ser mulher negra é ser diariamente confrontada pela sua estética que não se enquadra no padrão de beleza eurocêntrico branco, ter nossa inteligência questionada…

— A maioria das mazelas que acometem as mulheres, atingem mais fortemente as mulheres negras. Segundo a Fiocruz, por exemplo, as negras têm menos acesso a consultas ginecológicas e a exames de pré-natal do que as brancas, que recebem com menos frequência recursos para aliviar as dores na hora do parto (como anestesia) e são as que mais morrem em decorrência do parto. Você poderia comentar esses fatos?

— Este é um caso do racismo institucional, que não se restringe apenas à saúde, mas está presente em diversas instituições (educacionais, judiciário e outras) que incorporam o racismo nas suas práticas. Neste caso específico, no meu entender lidamos com o mito da força da mulher negra que precisa de menos anestesia na hora do parto, ou seja, é a face brutal do racismo que desumaniza as mulheres negras. Diante disso, é preciso destacar a relevância de políticas públicas focalizadas, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (2009), demandada pelos movimentos sociais negros. Esta política é o reconhecimento pelo Estado brasileiro do racismo institucional como determinantes das condições de saúde. A lei, sem dúvida, representa um avanço, mas muito precisa ser feito. Acho que a formação dos profissionais de saúde é uma questão central.

Infelizmente, estavamos vivendo um retrocesso significativo. Agora na pandemia, por exemplo, o governo federal não tem coordenado a coleta de informações sobre gênero e pertencimento racial, conforme orienta a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e Organização Mundial de Saúde. A ausência dessas informações impossibilita que se elaborem e desenvolvam políticas de atenção focadas nos grupos mais vulneráveis.

— Ser uma mulher negra e docente universitária faz muitas pessoas afirmarem que “quando a gente se esforça consegue um lugar ao sol”, e que portanto, se queixar de racismo é “mi mi mi.” O que você diria a alguém que pensa dessa forma?

— O discurso da meritocracia é muito arraigado no Brasil. Temos que tomar cuidado para não embarcarmos nele. No entanto, muitos que defendem o mérito, pertencem às famílias que se reproduzem na medicina, no judiciário e sobretudo na política. A pessoa já nasce com o percurso profissional praticamente construído. Então me pergunto: Qual o mérito do sobrenone? Acho que poderíamos começar a discussão da meritocracia pela elite brasileira.

Os racistas são tão cruéis que nos usam como “exemplos” na tentativa de descontruir a discriminação racial, com frases do tipo “você se esforçou e conseguiu”. No entanto, quando nós, negros e negras, chegamos à docência ou outra posição de destaque, geralmente estamos sozinhas nesses espaços. Quando entrei na universidade, há seis anos, eu era a única negra entre os 32 professores do meu Departamento. Se o racismo fosse menos brutal, talvez pudéssemos ter entre docentes, políticos, executivos, etc., uma representação mais próxima da realidade racial brasileira, que é formada por 56% de negros.

— Que papel deve/deveria desempenhar a Universidade na luta antirracista?

— Educar para a igualdade. Mas ainda estamos longe disso. Precisamos refletir nosso papel como educadores e o quanto a Universidade ainda contribui para a perpetuação do racismo. Quantos cursos/universidades implementaram em suas grades o ensino das relações étnico-raciais, conforme a Resolução 01/2004 do Conselho Nacional de Educação? Então, podemos pensar que uma instituição que tem dificultado esse tipo de política não esteja muito preocupada com a nossa luta. Apesar disso, tivemos algum avanço.

— As cotas colocaram mais negras e negros nas Universidades brasileiras. Mas, há muitos contrastes no mercado de trabalho. Por exemplo, dados do IBGE (2018) mostram que 47,3% dos negros estavam em empregos informais, enquanto entre os brancos o percentual era de 34,6% ; e que de 2012 a 2018 as mulheres negras ganhavam 2,2 vezes menos do que um homem branco. Que reflexão podemos fazer sobre esse panorama?

— Entrar na Universidade é muito importante. Porém, precisamos ter mecanismos para cobrar que as empresas tenham diversidade racial e de gênero. Quando estava em 2019 no pós-doutorado, nos Estados Unidos, observei que uma empresa multinacional asiática tinha campanhas de publicidade com mulheres negras, latinos, orientais, etc.. Fui observar o site e vi que tinham políticas para diversidade para a contratação de trabalhadores naquele país. A mesma empresa no Brasil não adota a mesma política.

— Como você enxerga o Feminismo Negro? Que papel podem desempenhar ou desempenham as feministas negras na luta antirracista?

— O feminismo negro ensina muito sobre nossa realidade para a sociedade brasileira e para o feminismo hegemônico (branco). As intelectuais negras têm uma contribuição significativa para pensar a sociedade brasileira.

— Ultimamente estamos vendo mais pessoas negras, inclusive mulheres negras, na mídia hegemônica. Podemos afirmar que a mídia brasileira deixou de ser racista?

— Tenho pensado muito sobre isso. Mudou um pouco por causa da pressão social, mas continua racista. Quando foi anunciado que Maju Coutinho iria para o Fantástico, fiquei na torcida para que um negro ou negra fosse para o Jornal Hoje. No entanto, isso não ocorreu. Na TV Globo, principal emissora aberta do país, temos uma única âncora negra. Isso é muito pouco para 56% de brasileiros negros. Embora o jornalismo seja um espaço importante, não podemos deixar de ver com acuidade as telenovelas e os programas de entretenimento. Já observei episódios dessa mesma emissora na cobertura jornalística criticar o racismo, mas no entretenimento reproduzir a discriminação racial. Qual o papel atribuído aos negros nas telenovelas e nos programas humorísticos?

— As/os marxistas afirmam que, sem acabar com o capitalismo, não se pode acabar com o racismo. Você concorda?

— Acho pouco provável que o fim do capitalismo acabaria com o racismo. Precisamos perguntar se nas sociedades socialistas há igualdade racial. A minha observação (não aprofundada) vê homens brancos na elite dirigente, como em Cuba, por exemplo. Entretanto, é perceptível que o capitalismo toma vantagem do racismo para nos oprimir e explorar mais enquanto trabalhadores. O racismo é complexo. Tentam nos fazer sentir desvalorizadas e destruir nossa auto-estima