OPINIÃO

Por Camila Borges Barreto

 

A última semana de outubro começou assim: Bolsonaro faz uma associação entre vacina da covid e a aids durante uma live em rede social e tem o vídeo derrubado pelo facebook e instagram.

Vivemos a era das fake news e elas são um fenômeno social e da linguagem. Quem aí já não esbarrou com alguma fake news em algum grupo de whatsapp: do trabalho, da família, da “pelada” ou da academia? Nesse mês de outubro me deparei com dois e gostaria de trazer aqui suas estruturas comuns, suas similaridades, sua lógica.

O primeiro deles compreende uma série de áudios de uma amiga da amiga, num deles uma mulher diz:

minha amiga “fulana”, repassa pra quem você puder. Eu tô morando no Rio de Janeiro, como você sabe, e já tá tendo muitos casos aqui (..) estão envenenando crianças, tá tendo uma seita satânica aí, um monte de bruxas espalhas pelo país, não é só no Rio de Janeiro, estão dando muitos doces envenenados para as crianças. Já tem um caso aqui próximo, a minha casa, de um menino, tá lá no Getúlio Vargas. Já tem quatro crianças de uma só família internados também. Já tem uma menina internada em São Paulo… Em São Paulo não, aqui em Bonsucesso, vai ser enterrada daqui a pouco. Comeu doce com chumbinho, tudo que as pessoas tão dando na rua. Então repasse pra quem você puder, meu amor, repasse pra quem você puder: para as crianças não aceitarem doces, balas, pirulito, refrigerante, pipoca… mesmo que esteja fechado. Não aceita por que é uma seita satânica (…). Nós já estamos nos últimos dias, a palavra de Deus tá se cumprindo que as crianças vão sofrer e já começou.

No segundo deles, uma matéria veiculava a notícia – atribuída a um suposto cardiologista – alertando sobre o risco de acordar e se levantar rapidamente. De acordo com a notícia, uma pessoa ao acordar para urinar sem respeitar a lei do um minuto e meio está sujeita a tonteira e também ao risco de um acidente vascular cerebral.

O que essas mensagens aparentemente inofensivas têm em comum? Em primeiro lugar, ambas servem de alerta, sinal amarelo. São mensagens que partem de um interlocutor que tem a motivação bondosa de evitar que o pior aconteça. Não deixem que as crianças comam doces de estranhos! Não deixem que seus velhinhos levantem rápido na madrugada! Que prejuízo estaria por trás, maculada, nesse ato benevolente de cuidado ao próximo?

Segundo Aristóteles em sua obra Retórica, a eficácia do empreendimento persuasivo depende de três provas discursivas: o logos, o pathos e o ethos e para o filósofo duas das qualidades associadas ao ethos são exatamente a phrónesis: a prudência, a sabedoria, ou seja, os argumentos e conselhos razoáveis; e a eunóia: a benevolência, o ato de ser solidário.

Sem querer me aprofundar na teoria aristotélica ou, numa perspectiva contemporânea, nas teorias da argumentação e do discurso gostaria de chamar atenção de como os elementos destacados já na retórica clássica ancoram os discursos elaborados pelas fake news. Não poderia existir ato mais legítimo de solidariedade do que a benevolência contida nesses conselhos; não há prudência ou sabedoria mais legítima do que a contida na máxima popular do “nunca aceite doces de estranhos”.

Em outra medida, não há como ignorar o fato conhecido tanto pela medicina quanto pela prática mais cotidiana de que quando levantamos bruscamente ficamos tontos. É uma consequência lógica que a vertigem aumenta o risco de quedas, principalmente, entre a população idosa que em geral já possui dificuldades de locomoção e equilíbrio. Novamente nada mais benevolente do que o conselho: espere um minuto e meio antes de levantar! No entanto, da sabedoria popular há um pulo não vigiado ao terreno do não científico e é nesse momento que o ato de levantar bruscamente passa a ser associado ao risco de acidente vascular cerebral.

Outra similaridade: ambas se baseiam no argumento de autoridade. A primeira se legitima enquanto alerta proveniente de uma profissional que trabalha em hospital público no Rio de Janeiro, um agente público. O segundo, legitima-se enquanto alerta de um médico cardiologista. É a partir da suposta fala de um interlocutor com credibilidade – ainda que isso seja um engodo – que a notícia ganha ares de verdade.

Outra característica que gostaria de chamar atenção é o tom de apelo, é o clamor à emoção do interlocutor, é a persuasão exatamente por meio do pathos aristotélico. Ambas as notícias viabilizam emoções, afetam, clamam aos sentimentos mais nobres ou mais abjetos da audiência. Coitadinhas, crianças mortas por envenenamento! Que ser mais repugnante para ser capaz disso? Oh, dóceis e indefesos velhinhos que podem ser salvos graças a um alerta capaz de salvar suas vidas! O pathos aristotélico está fundado exatamente na emotividade e na afetividade, está centrado no fazer-sentir.

Não menos importante quero chamar atenção para o componente político enredado na linguagem. Ela nunca é isenta, ela está impregnada de outros sentidos, outras intenções e esses sentidos sempre estão relacionados a um aspecto de dominação em última instância. Esse componente fica bastante explícito no primeiro caso. A mensagem, veiculada no início do mês de outubro, torna verossímil sua associação com a tradição de distribuição de doces em outubro (brincadeira doces e travessuras) e também com a própria tradição da distribuição de doces de São Cosme e Damião, comemorado em 27 de setembro. Essa é uma tentativa de satanizar religiões não cristãs e não ortodoxas que vem desde a Idade Média. A própria fala relacionada a “bruxas” evidencia esse aspecto. Não podemos esquecer que as bruxas foram mulheres perseguidas e mortas na fogueira na Idade Média.

O que essas notícias, aparentemente inofensivas, encaminhadas em nossas redes podem ter a ver com a notícia de live derrubada do presidente? Elas têm a mesma origem, vêm do mesmo limbo: o limbo da desinformação, a desinformação usada como estratégia política que conta com a falta de pensamento crítico e com a educação em farrapos como garantia de sobrevivência. Têm a mesma origem as fakes mais corriqueiras da internet e as notícias falsas que elegem e derrubam governos, que matam gente. É preciso ver com clareza a relação existente entre esses fenômenos para resistir. Como já dizia Gal Costa, é preciso estar atento e forte.

Camila Borges Barreto é cientista social, mestra em Educação Profissional e Tecnológica e mãe da Helena.