Por Kazi Jamshed 

O Banco Mundial (BM), credor global com sede em Washington, por meio dos braços da instituição que fornecem empréstimos em condições favoráveis, tem ajudado Bangladesh a estimular iniciativas de desenvolvimento desde 1972. O BM já investiu mais de U$ 30 bilhões em apoio às prioridades no desenvolvimento econômico, social e de infraestrutura do país. Órgão multilateral ligado à ONU, o BM representa a maior fonte de assistência financeira para as nações em desenvolvimento e, desde de 2018, já mobilizou um total de U$ 590 milhões em doações para ajudar  Bangladesh a enfrentar os desafios impostos pelo influxo dos refugiados rohingyas — minoria muçulmana perseguida, forçada a fugir de Mianmar. Contudo, recentemente, tanto os especialistas em estratégia quanto a população vêm proferindo duras críticas ao BM  devido à proposta de uma revisão sistemática das políticas para os refugiados, ou “Refugee Policy Review Framework” (RPRF, em inglês), direcionada à integração dos rohingyas em Bangladesh. A RPRF tem como base o Marco Integral de Resposta aos Refugiados (Comprehensive Refugee Response Framework, CRRF, em inglês), que é parte do Pacto Global sobre os Refugiados — acordo endossado na Assembleia da ONU de 2018.

Quão razoável é essa proposta do Banco Mundial? 

Quatro anos atrás, no fim de agosto de 2017, o influxo massivo dos rohingyas a Bangladesh dominou as “notícias de última hora” ao redor do mundo, e foi resultado de uma sangrenta “operação de limpeza étnica” apoiada pelos militares de Mianmar. Um relatório de 444 páginas da Missão Internacional de Inquérito da ONU sobre Mianmar (Fact-Finding Mission, FFM, em inglês) comprovou que mais de 725.000 rohingyas fugiram para Bangladesh depois das terríveis medidas repressivas. O grau de atrocidades dessa “campanha de terror” empreendida pelos militares foi tão intenso que o Alto Comissário dos Direitos Humanos das Nações Unidas referiu-se à crueldade como “um exemplo clássico de limpeza étnica”, enquanto outros investigadores a denominaram de “genocídio”. Apenas nas primeiras três semanas de agosto de 2017, Bangladesh recebeu mais refugiados do que toda a Europa em 2016 durante a “Crise da Síria”. Desde então, o país vem acolhendo com generosidade mais de 1,2 milhões de rohingyas por razões humanitárias. Hoje, o “megacampo” de Kutupalong — de 13km de extensão, localizado em Cox’s Bazar — é o maior campo de refugiados do mundo e também o lar dessa comunidade ameaçada. 

Os rohingyas vivem em Arakan (atual estado de Rhakine) há mil anos e participam ativamente na política de Mianmar, a antiga Birmânia, desde a independência. O reconhecimento dos rohingya como cidadãos de Mianmar pelo TIJ, o Tribunal Internacional de Justiça (International Court of Justice, ICJ, em inglês), resolveu a crise de identidade dessa minoria ao servir de base jurídica. Ademais, na audiência do TIJ, Aung San Suu Kyi — líder de Mianmar deposta durante o golpe militar de fevereiro de 2021 — definiu os rohingyas como os muçulmanos de Arakan. Mianmar assinou dois acordos de repatriação com Bangladesh em 2018 e 2019, respectivamente, em que consentiu receber de volta seus cidadãos. Embora esses acordos de repatriação tenham sido em vão, devido à relutância de Mianmar, ainda assim, são provas significativas da posição oficial de Mianmar a respeito da cidadania dos rohingyas. 

Embora não haja luz no fim do túnel, a Sociedade Arakan Rohingya para a Paz e os Direitos Humanos, em resposta à proposta do BM, afirmou de maneira categórica que os rohingyas não desejam receber a cidadania de Bangladesh, e que gostariam de voltar para Mianmar. 

O BM propôs avaliar a RPRF para os 14 Estados Membros que acolhem refugiados no momento, incluindo Bangladesh. O objetivo é avaliar a eficácia das doações aos refugiados e às comunidades anfitriãs, de acordo com sua “janela secundária de empréstimo acessível” feita pela Assistência Internacional ao Desenvolvimento (International Development Assistance, IDA), uma das instituições do BM. A RPRF, revisada trienalmente e empreendida em cooperação com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), sugere que os refugiados tenham o direito de adquirir terras e propriedades, de escolher seu lugar de residência, de ter liberdade de circulação, de ter acesso igualitário aos serviços públicos nacionais e ao mercado de trabalho etc., assim como os cidadãos do país anfitrião. O BM ofereceu U$ 2 bilhões para Bangladesh para que o país conceda aos refugiados rohingyas direitos sociais e econômicos. A proposta é conveniente para Bangladesh, uma vez que a mudança abrirá caminho para que os rohingyas se tornem cidadãos permanentes por meio da integração na população de Bangladesh. Entretanto, Bangladesh reiterou sua posição e rejeitou sem rodeios a proposta; afirmou que os rohingyas não são “refugiados”, mas sim “pessoas deslocadas à força” às quais Bangladesh ofereceu abrigo temporário. 

O estudo “Impactos do influxo dos refugiados rohingyas nas comunidades anfitriãs”, conduzido pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), expôs como a superlotação dos rohingya afetou as comunidades anfitriãs. Os principais impactos negativos incluem: o aumento de preços, o aumento da pobreza, o aumento do custo da moradia, a redução da taxa salarial, o desmatamento, os acidentes ou mortes relacionadas a danos ambientais e à poluição etc. Além disso, os crescentes conflitos intergrupais e intragrupos nos campos rohingyas reduziram o espaço de coexistência entre as comunidades anfitriãs e os refugiados, mediante a reformulação  da estrutura social. O mês de agosto de 2021 marcou o quarto aniversário do êxodo rohingya para Bangladesh, mas ainda falta encontrar uma solução sustentável para todos. 

A Convenção sobre os Refugiados de 1951 sugere três soluções para a crise dos refugiados: a integração; o estabelecimento em um terceiro país, ou a repatriação. Há aproximadamente 166,65 milhões de habitantes em Bangladesh, oitavo país mais populoso do mundo; além disso, é um dos países mais densamente povoados, com 1.125 pessoas por km². Este pequeno país, nonagésimo segundo em termos de área territorial, com um espaço total de 147.570 km², ligeiramente menor do que o Estado de Iowa nos Estados Unidos, está acolhendo 1,2 milhões de rohingyas, um número maior do que a população do Butão. Nenhum país no mundo está arcando com o ônus de receber tantos refugiados como o já superpovoado Bangladesh. Com uma taxa de desemprego de 5,3%, aproximadamente 60 mil trabalhadores abandonam Bangladesh e vão para o exterior todos os anos, o que indica a dificuldade que o país tem em gerar empregos para a quantidade gigantesca de jovens desempregados. Isso chama a atenção para a insuficiente demanda de mão-de-obra que há em Bangladesh. Assim, a possibilidade de integração dos rohingyas dentro da comunidade local está fora de cogitação. Como o número de refugiados rohingyas é enorme, mais de um milhão em Bangladesh e alguns mais que vivem em 19 outros países, e nenhum país mostrou interesse em recebê-los, a opção de estabelecê-los em um terceiro país parece impraticável em um futuro próximo. A única saída para a crise rohingya reside na repatriação segura a Mianmar.

 Como os rohingyas também querem retornar a Mianmar, a integração em Bangladesh, segundo as recomendações do BM, seria como uma negação dos seus direitos fundamentais e dos seus direitos humanos. Alguns especialistas locais acreditam que a integração pode levar a uma nova “crise da Palestina”, ao arriscar a soberania de Bangladesh e a estabilidade geopolítica do Sul da Ásia.  Este tipo de proposta dos líderes globais responsáveis, como o BM, motivará Mianmar a desacelerar o processo de repatriação e, com isso, aumentarão as complexidades desse dilema multifacetado. Em vez de sugerir uma proposta tão complicada, o BM poderia pressionar Mianmar para que cumpra a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 1948 pela ONU. Poderia também oferecer incentivos financeiros para que Mianmar acelere as repatriações a zonas seguras monitoradas internacionalmente. Algumas organizações internacionais estão planejando programas de longo prazo para resolver essa “crise de emergência a curto prazo”, solução que apenas atrasará o processo de repatriação. 

Bangladesh está esforçando-se para garantir acordos decentes para os rohingyas, mesmo com suas dificuldades financeiras. Apesar de não ser signatário da Convenção de Refugiados de 1951, Bangladesh respeita suas condições, ou seja, não força nenhum rohingya a voltar a Mianmar. Aceitar a proposta do BM vai pôr mais lenha na fogueira, na medida em que atuaria como um fator de atração para que outros rohingyas, um número estimado em mais 600 mil, saiam do turbilhão de Mianmar direto para Bangladesh. Bangladesh terá de fazer mudanças substanciais em suas políticas caso concorde em aceitar a proposta do BM, um processo complexo e demorado que intensificará a miséria. A repatriação segura e digna dos rohingyas para Mianmar é a única solução sustentável para o fim do flagelo. Bangladesh precisa de mais apoio das comunidades internacionais para resolver essa crise. O país pode estar esperando que as comunidades mundiais levem em conta todas as questões relevantes — incluindo a própria condição socioeconômica de Bangladesh —, antes de fazer quaisquer recomendações para resolver a prolongada crise de refugiados rohingyas e, assim, trazer a luz da esperança que encerre seu sofrimento. 


Sobre o escritor:

Kazi Mohammad Jamshed, analista de assuntos estratégicos e política externa, trabalha como professor no Departamento de Negócios Internacionais da Universidade de Dhaka. 

Contato: kazi.duib@gmail.com


Traduzido do inglês por Marcela APS Pedroso / Revisado por Graça Pinheiro