OLHARES

Por Clementino Jr.

 

“O maior erro que um homem pode cometer é sacrificar a sua saúde a qualquer outra vantagem.” Arthur Schopenhauer

Em meio à polarização política, onde vemos uma parcela das pessoas se orientando pela ciência e a outra, de alienados e genocidas, se utilizando da visibilidade da CPI para publicizar mentiras sobre as vacinas e medicamentos, minha esposa Valéria começou a ter sintomas de COVID-19.

Uma série de fatores estão presentes no conflito, que não deveria existir, entre saúde e economia. A segurança dos trabalhadores deveria ser prioridade dessa economia que o governo defende, mesmo não entendendo a contribuição dos “privilegiados do home office” — ou dome office, como já mencionei em outro texto — para diminuir aglomerações em ambientes institucionais e na circulação nas ruas.

Como leciono na rede particular, me deram a única opção de voltar a trabalhar em modo presencial, mesmo antes da primeira dose da vacina, que, agora, já tomei. Esta única opção vem da maioria dos pais de discentes sob o argumento de cuidar do psicológico de seus filhos, ignorando que uma hipotética “menor taxa de transmissão” entre os jovens não evita que eles sejam vetores. E o contágio não é possível apenas por estar junto aos estudantes em sala de aula, mas em todo o trajeto de ida e volta, desde a porta de casa até o interior dos espaços da escola. A partir deste tour de “única opção”, pelo bem da economia e da saúde mental não diagnosticada causada pela distância do colégio, a segurança de estar em casa após o trabalho deixa de existir.

Valéria teve 5 dias seguidos de febre, dores e cansaço. Eu fiquei com sintomas leves de gripe, mesmo após a primeira dose da vacina “das reações” (ou seria a “predileta dos reaças”?). Somos paranoicos com higienização de tudo o que vem da rua, dos sapatos, das roupas, de quantas máscaras usamos quando tivemos que sair… Enfim, nunca saberemos como esse vírus a atingiu. Diante dos quase meio milhão de mortos pela doença — quando escrevo –, fora o aumento de casos de infarto e depressão, resultado deste ano e meio de pandemia e que também vêm causando mortes, nos vemos agradecendo, ainda que em luto, por termos sido poupados, enquanto damos condolências diárias aos que não tiveram “só uma semana de febre”. Se ver como um número, um dado estatístico do noticiário que traz dor à população não é nada agradável. Desde março de 2020, quando em conversa com amigos, digo: os números agora têm nome e sobrenome e estão cada vez mais perto.

Falando em economia, vamos à segunda parte da saga. Para ter uma segunda opinião, no limite do período crítico de contágio para precisão do teste de COVID-19, agendamos exame em uma drogaria de rede, que teria data dentro deste período, já que a procura por estes exames aumentou e a clínica que nos atendeu muito bem só teria data para a semana seguinte, já quase no final de nossa licença médica. Saímos da quarentena para irmos até a tal loja e lá, ao contrário do que agendamos no site, o atendimento era feito por ordem de chegada e sem consulta ao sistema. Fizemos a coleta, no caso lá era o PCR Lamp, que nos obrigava a depositar 5ml de saliva da boca no tubo. O sistema nervoso me secou a boca, coisa rara, e tive que fazer duas coletas, pois, na primeira, saiu sangue da gengiva já na reta final, o que invalidou o exame.

No final, levamos 20 minutos “babando” no tubo. O procedimento nos daria o resultado em 24 horas, contando dias uteis, e, como fizemos em um sábado, aguardávamos no máximo terça-feira o resultado sair, como prometido, em nossos celulares ou e-mail. Eu paguei pelos exames, mas só ela recebeu a confirmação de pagamento no celular. Quarta-feira, passamos o dia ligando para a loja, para a sede da rede e para o laboratório parceiro. Pelo laboratório, soubemos que não existia nada referente as nossas babas corongadas. Pânico.

Após e-mails de reclamação com comprobatórios do gasto e do procedimento, no sábado seguinte, recebemos a ligação do gerente da loja se desculpando pelo equívoco do funcionário na hora de colocar os dados no sistema do laboratório. O material havia sido enviado sem identificação. Tentando resolver o problema, o gerente, cujo nome/sigla batiza esta crônica, nos ofereceu estornar com um PIX pessoal para não aguardarmos um tempo maior (e evitar um processo). Para não piorar o que estava ruim, aceitei. O dinheiro retornou na hora e continuamos sem a “segunda análise” sobre nossa saúde.

Tentando resolver um problema, que poderia ser evitado fazendo distanciamento social e trabalho remoto, gastamos em carro de aplicativo (a drogaria era em um bairro próximo, mas não tanto para ir a pé) e exames. Ao promover o “retorno do crescimento econômico que só o trabalho presencial proporciona”, comprometemos a nossa saúde e a de quem nos cerca. Ainda alimentamos a indústria farmacêutica que vem lucrando com os exames, que deveriam ser gratuitos na rede de saúde, e com todos os remédios milagrosos de combate aos sintomas, que não deveriam ser indicados para este vírus. Mas a economia vem sempre em primeiro lugar.

O gerente é homônimo de um famoso cantor do século passado que cantava, durante a ditadura, “pare de tomar a pílula”, e que causou polêmica, pois a pílula, em si, era a contraceptiva, em uma sociedade conservadora e com discurso antiaborto. Hoje, os conservadores preferem que se tome a pílula errada às vacinas, que são, até o momento, a única forma de evitar maiores danos à saúde ou até mesmo o óbito.

Nos meus ambientes de trabalho e nos demais, a média de 2 contaminados por dia é habitual. Mas falo de um público que tem plano de saúde e menor dificuldade de acesso aos disputados leitos hospitalares. São ambientes onde inúmeros profissionais, para além dos professores e estudantes, permanecem por algumas horas após viagens de ônibus, metrôs, trens e carros de aplicativo. Para quem pode andar de carro particular na zona sul, as vagas de garagem são fartas e caras, ao contrário dos leitos de UTIs em todo o Brasil, principalmente nos hospitais públicos, que são com o que eu e Valéria, por exemplo, podemos contar.

Segundo o serviço de gestão das condições do trabalhador, já estamos disponíveis para “ajudar a economia a crescer”. E penso no O.J., a quem só conheço por telefone, que foi o único, no meio de todo esse turbilhão, que tomou uma atitude, aliviando, ao mesmo tempo, a situação para ao menos quatro pessoas e para sua empresa, como bom funcionário que é.

As empresas desumanizam os personagens desta crônica, pois outra característica da economia pandêmica é um mercado inflado de gente hiper capacitada desempregada. E se expor ao risco é um critério de avaliação condizente com a postura dos governos em sua gestão da pandemia.

Texto com revisão crítica de Tayna Arruda