Por Luciane Soares da Silva

Uma das perguntas que refaço aos alunos e alunas a cada semestre após a discussão de teorias e da crítica aos comportamentos, é esta: em que lugares, situações ou formas de agir podemos colher a mudança social? Observar seu curso, mesmo sem a garantia de que uma vez alteradas as margens, não se possa voltar ao curso anterior de movimento? Tomei a decisão de escrever sobre minha própria educação, não como forma de terapia, engrandecimento ou registro biográfico. Ao contrário, peço que leiam esta descrição como um “documento de época” de uma mulher, negra, nascida na década de 70 no sul do país. Certamente estes são os elementos[1] que possibilitam a comparação sobre a vida de moças que morem na Bahia, em Ubá ou em Rosário, na Argentina.

Pois bem, se o patriarcado é presente nas sociedades, seus efeitos também podem ser experimentados com variações importantes, mas com um quantum de dominação quase sempre manifesto[2]. Mesmo não sendo um texto acadêmico, lembrar a questão de como o poder atravessa os corpos (com Foucault) e como estas formas de dominação não estão restritas ao sexo biológico (com Bourdieu) pode ser útil ao que descreverei.

Para começar esta descrição, serei forçada a descrever o ambiente da década de 70. Já não se permitia a traição aberta, embora minha avó não repudiasse o fato, caso acontecesse. As mulheres trabalhavam fora, mas eram responsáveis pela educação dos filhos e a grande maioria suportava surras regulares em níveis distintos de violência. Os tapas, surras com cintas ou objetos lançados dentro do espaço doméstico eram tão comuns quanto a reunião de domingo para assistir o Fantástico, após a realização de permanentes nos cabelos.

Nossas mães assistiam os programas de roupão azul de matelassê. E “bobs” nos cabelos. Filha de operários gaúchos e criada por uma avó alemã, minha educação seguiria certos padrões. Entre eles, reproduzir com precisão a maestria de minha mãe na condução da limpeza doméstica. Pratos, tapetes, o brilho das panelas, devo dizer que entre todos os problemas que se pode ter na infância (óculos, cabelos crespos, ausência materna pelas horas na fábrica) não saber arrumar uma casa, foi o principal.

A aparição dos contos, lendas e histórias aconteceu neste mesma época. A lentidão para dar conta destas tarefas era diretamente relacionada a imaginação ao ver uma formiga que passava sobre a espuma, uma abelha que entrasse pela sala. Insetos, em suma, eram meu foco de atenção.  Agradar ao pai, como uma jogadora de futebol e evitar os babados nas saias de aniversário foram parte desta socialização que incluía a criação de um cascudo batizado como “Aventureiro” (vivia em uma caixa de sapato e tinha uma almofada de cetim amarela, comia folhas mas sumiu em uma noite de sábado, não retornando mesmo após buscas intensas de toda família).

As bonecas eram destruídas com freqüência (não me agradava o fato de não comunicarem nada, palavra ou gesto). Detestava especialmente a Noivinha, uma boneca fantasmagórica vestida de noiva. Ela tinha uma espécie de corda (cujo nó cego, impossibilitou seu funcionamento para sempre). Devo observar que no meio destas experiências, havia uma mãe intensamente imaginativa, capaz de desenhar corujas, flores, lagos em papéis reciclados, cantora de coral e hippie da década de 60. Ela era a incorporação da mudança. Dona de casa exemplar e ao mesmo tempo, um espírito livre. Vivíamos os acertos e desacertos próprios deste paradoxo. E debatíamos esta questão cotidianamente. Creio que a discussão dos problemas salvou-nos da hipocrisia e da chatice que reinava naquele final de década.

A vida escolar, marcada pelos óculos e por uma escola de brancos, acirrou a elaboração de um perfil que se distanciava das construções de gênero. Na década de 80, passava Malu Mulher na TV, vivemos a Anistia e a Copa de 86. Eu andava de caminhão por toda a cidade de Porto Alegre, já se falava em violência doméstica e não se aceitava mais aqueles tabefes. Para uma menina atenta de quase 8 anos, era um mundo em mudança. Mas na casa de meu tio sambista a regra permanecia a mesmo da década de 70. Aparecer uma vez por semana, distribuir ordens, comer o que encontrasse na geladeira e deixar que todos criassem suas formas de economia doméstica para sobreviver.

Creio que foi neste momento que compreendi com intensidade que lugar do mundo as mulheres ocupavam. Mas esta compreensão aconteceu misturada com raiva e negação do casamento. Era como perceber que os gritos ao não encontrar um par de meias, que o mau humor sem razão alguma, que o descuido com os filhos, constituía uma regra de todos os casamentos de nosso círculo.

Um dia, presenciei, numa casa de praia, um pai desferir um tapa no rosto de sua filha adolescente. Vinha da cozinha, no meio de uma discussão com a esposa, virou-se e após praticar a agressão, o veraneio seguiu. Nunca houve comentário. Os casos se multiplicavam. Conectavam-se aos namoros da década de 90. Como se tapas e flores fossem roteiro de relações afetivas enquanto ouvíamos Madonna. Se a idéiaexpressa na frase anterior soa medíocre, não é pior do que a qualidade daquelas relações concretas, reproduzidas e celebradas por algumas tias e avós. Melhor levar a filha ao altar assim mesmo!

Farei um corte abrupto aqui para encaminhar o texto. E declarar como vejo a casa, suas pessoas, familiares, filhos e tudo aquilo que dizem ser do domínio do “feminino”. Considero que os pratos são objetos úteis e se herdados, não os usarei no dia a dia. Quanto aos demais, não tenho nenhuma relação de afeto. O mesmo vale para todas as louças da casa, inclusive as herdadas. Não coleciono álbuns de família. Porque herdei as fotos em uma caixa de papelão, soltas. Nelas, apareço sem dentes em minha festa de cinco anos, depois meu pai no quartel, corta para um Ano Novo aos 25… e segue. Acho mais divertido.

Não cultivo apreço por festas de debutantes, troquei a minha por um aparelho de som e chocolate. Creio que a cozinha pode ser um espaço místico de azeites, feijões e vinhos. E que todos, sem exceção podem permanecer neste espaço e comer ao mesmo tempo em que conversam. Não coloco as refeições em pratos especiais mas cultuo copos coloridos de antiquários. Principalmente se comprados após uma conversar com senhoras de 90 anos Sou contra o uso de tapetes altos. Havia um aparelho, uma espécie de escova que funcionava assim: de um lado recolhia os pêlos e pedrinhas e de outro os devolvia ao tapete como se multiplicasse a sujeira.

Era como uma tortura infinita as seis da tarde. Jogo cloro no banheiro e saio de casa, volto ao fim da tarde e jogo água. Tudo está em seu lugar, creiam. Inclusive o quadro do Antônio Cândido que me olha para lembrar o que devo fazer de minha biografia. Tudo em seu lugar. A guitarra, a biblioteca, a panela de barro, as fotos de meu bisavô na parede ao lado do Milton Nascimento e da Dra. Nise. E as fotos vão compondo outra casa, com o resto todo.

Não creio que se deva ter uma fórmula sobre felicidade conjugal ou maternidade, creio apenas no trabalho possível para a invenção destas possibilidades diárias. Sim, tenho todas as memórias dos casos de conflito familiar, envolvendo tias, primas, amigas… nenhuma delas foi justificada ou minimizada.

Toda escrita feminina que foge ao roteiro dos romances e novelas, me interessa. Porque conta uma parte da história não contada. Toda escrita feminina que problematiza angústia, o medo, a solidão, merece ser lida. Não é fundamental que tenha o domínio estilístico dos grandes escritores, não fizemos esta sociedade de medições e pompas.

Como construir a vida das meninas para além da casa-prisão, dos assédios dos tios e dos lugares comuns de gênero me parece nosso principal desafio neste século. Me pergunto com curiosidade científica genuína, o que seria mais importante do que desfazer as memórias de violência, as piadas, as barreiras profissionais… o que seria mais importante para este processo civilizatório em seu curso acidentado do que garantir uma vida mais plena para estas meninas? Dedico este texto à Amanda, movimento em forma de menina. Quando ela crescer, vai entender estas palavras. E à LeomiraKlagenberg, que nunca precisou de um papel para ser feliz.

[1] Devo dar crédito à Pierre Bourdieu e à Émile Durkheim pois com eles aprendi a pensar sociologia, especialmente em Poder Simbólico e O Suicídio.

Luciane Soares da Silva – professora da UENF e Coordenadora do Núcleo Cidade Cultura e Conflito.