OLHARES

 

 

Por Clementino Jr.

 

 

“A América realmente é grandiosa. Mas é um grandioso equívoco.”
Sigmund Freud

A pandemia mudou meus hábitos. Por 4 meses não encontrei minha família, foi o momento de maior desinformação sobre vacinas e de maior medo por não termos testes ou máscaras adequadas, houve falta de álcool, enfim, falta de respeito pela humanidade por conta da besta fera.

De agosto de 2020 para cá, em pelo menos três finais de semana por mês, tenho me deslocado, ou de carona ou de carro de aplicativo, para estar com a família. As perdas e o contágio em rede nos fazem temer algo acontecer com qualquer um de nós, em uma família preta, onde a diabetes e a hipertensão estão ali loucas para se “amostrar”. Mas o medo de estar distante, caso algo aconteça, por mais que sigamos as regras de prevenção, também se faz presente.

Os motoristas por aplicativos fazem parte de um público essencial entre todas as categorias de motoristas e motociclistas que se expõem com maior frequência aos riscos, levando pessoas e bens de consumo de um lugar para o outro. E, com eles, passei a cruzar a cidade da Zona Sul para a Zona Oeste, em especial Humaitá a Sepetiba, quase que semanalmente.

Os aplicativos, vindos do exterior, se adaptaram à realidade brasileira. Uma realidade que, talvez, não se veja como tal e identifico isso em uma curiosidade sobre os dois principais trajetos possíveis entre esses dois bairros da chamada “cidade partida”. Liguemos o GPSGlobal Positioning System, ou, em português, Sistema de Posicionamento Global, para nos situarmos no Rio de Janeiro.

Ao entrar no carro durante esse período, em especial em 2020, onde as ruas se viram mais vazias, os aplicativos via GPS sempre indicavam como o melhor caminho para Sepetiba ir pela Avenida Brasil ao invés da Barra da Tijuca. Apesar de não ser simpático à Barra — me julguem –, esse se tornou o caminho mais rápido para o bairro mais isolado do município do Rio de Janeiro, considerando tanto as longas viagens no 390 (Passeio — Sepetiba), nos anos 1980, quanto a longa baldeação do confortável “frescão” para Santa Cruz com o 888, “ônibus oral” (que só passava de “ora em ora”). Naquele tempo, eu não atentava tanto para metáforas da vida como hoje. Mas, hoje, ao perceber que meu caminho para o conforto familiar passa por duas opções, a partir de duas avenidas, Brasil e Américas, sou provocado a pensar nos dados coloniais que estão presentes aqui. Se vou pela Brasil, passo à margem de toda a história do Império, chegando a Santa Cruz e de lá seguindo, lentamente, até o destino. Pela Barra, sigo pela Avenida das Américas até Pedra de Guaratiba (e muitos não sabem que após a Grota Funda ainda é Avenida das Américas) e, então, sigo outra saga lenta até Sepetiba.

Avenida Brasil, para quem não sabe ou não lembra, corta uma área outrora farta em fazendas e engenhos, muitos da família real portuguesa e que, depois, passaram a ser das forças armadas. Já a Avenida das Américas, símbolo de uma cidade partida, representa a última etapa de um Rio que já quis ser Paris no início do século passado e, hoje, quer ser um misto de NY e Miami. São tantas informações em inglês, vias expressas, espaços verdes amplos — como, inclusive, os que vêm sendo subtraídos de áreas militares — que, comparando com a Avenida Brasil, você acha que está em outro país.

Nessa dinâmica, vale refletir que América não é um país, mas um espaço continental dividido, convenientemente, em três, separando o Norte, com perfil mais europeu, das Américas Central e do Sul, more brunette. As Américas, em paralelo, cortam a Zona Oeste de ponta-a-ponta, enquanto a Avenida Brasil começa na Zona Norte e, no último trecho, cruza a parte mais pobre da Zona Oeste. Sabendo essa geografia, lembramos que o país que nomeia a avenida da área mais pobre é um espaço diferenciado dentro do continente que ocupa, o da América do Sul.

Zona Oeste, onde o bairro “das Américas” se encontra, é cercado por bairros com o perfil semelhante aos “da Brasil”. Se fosse investir na metáfora, é como se a Barra e o Recreio fossem o continente norte-americano cercados da América Central e Caribe, mas próximos do restante da América Latina, onde “a” Brasil passa à margem, mas está lá. Não por acaso, a composição “das Américas” está repleta de “imigrantes” dos “outros países” que, em um momento de ascensão, se estabeleceram lá, compraram seu lote e colonizaram. Outros só passam em trânsito, amontoados, indo e voltando do trabalho, num novo ponto em comum entre Américas e Brasil, sabendo a forma como acomodam a mão de obra em seu deslocamento diário. Essas conduções lotadas, que também atendem por uma sigla, mas que nada tem a ver com a posição global e, sim, com a desumanização em massa que só piora em um quadro pandêmico: BRT.

Fugindo do veículo de desumanização em massa, viajo em um veículo por aplicativo onde o tempo passa e, enquanto o combustível fica mais caro, o valor da corrida fica incrivelmente menor. Esse motorista, assim como o professor que ele transporta, não são considerados prioritários para a vacinação — o segundo tem que lutar na justiça para tal –, mas ambos se expõem diariamente com públicos diversos, em uma cidade que é diversa, mas onde cidadãs e cidadãos não estão acostumados a respeitar o sinal amarelo, vermelho ou a fase roxa. E para quem decide nossos rumos sem nos ouvir, não há caminho melhor e nem solução por aplicativos. Nosso posicionamento global está em retrocesso no mapa, mas, se ficarmos “fora da área de cobertura”, podemos recuperar a autonomia de nossas rotas e seguir juntos em linha reta e segura.