CRÔNICA

 

 

Por Marco Dacosta

 

 

As águas verdes escuras se infiltraram entre as pedras no pequeno porto de City Island, no lado leste do Bronx. Olho para o movimento lento das ondas e para o voo solitário de alguns pássaros que sobrevoam os barcos pesqueiros. Estamos no começo da primavera, depois de um ano inteiro de pandemia. É a primeira vez que saio de casa e me aventuro para algum lugar mais distante. Não desejei ver as areias amarelas de Brighton Beach, onde vou nos verões ensolarados. Decidi ver partir um barco que carrega pessoas a um cemitério. Não é tristeza, nem ser mórbido. A morte não me causa desespero, nem angústia. Depois de uma certa fase na vida é melhor se acostumar com a ideia de que passamos por aqui e que tentamos fazer o melhor, sempre. Desse pequeno porto, semanalmente, sai uma balsa para uma outra ilha próxima, cercada de mistérios e dor.

A primeira vez que ouvi falar de Hart island foi em uma notícia sobre os efeitos da epidemia de AIDS em Nova Iorque. A cidade foi fortemente atingida pelo vírus e milhares de corpos não identificados foram levados para lá. Em um documentário, vi amigos das vítimas tentando acesso à ilha, na esperança de prestar homenagens, colocar flores e fazer uma despedida que não foi possível

O porto é saída para muitos amigos que não tiveram tempo de dizer adeus e que vão prestar suas homenagens a túmulos desconhecidos, simbólicos. A velha ideia da homenagem ao soldado desconhecido, que civis tiveram que incorporar em ocasiões de pandemias, como guerras, que sugam vidas aos montes. Observo tudo com respeito, mas também com muita curiosidade. Sem raízes e família na cidade esse poderia ser meu destino ? Meu desprezo por funerais e ritos provavelmente irão definir isso e Hart island pode ser a morada não só minha mas para milhares de vidas que conviveram comigo nessa geração de imigrantes, refugiados e desgarrados de rebanhos.

E ouço e registro histórias.

Eugene é enfermeiro e vai no próximo barco. Me contou que não pode dizer adeus ao seu melhor amigo. Thomas desapareceu sem deixar rastro e como não tinha parentes na cidade, o hospital enviou seu corpo para hart island. Milhares de histórias como essa, brotam nas conversas no metrô, nas praças e conversas pelo celular, em uma cidade repetidamente marcada por tragédias. Há um grande debate para tornar a ilha acessível, um monumento às epidemias que assolaram o mundo e a cidade. Um futuro jardim de saudades e memória. Torço para que isso aconteça e que o conceito de família seja ampliado por lei ao ponto de que todos possamos cuidar de nossos amigos queridos.

A ilha funciona há um século como um cemitério para os que não possuem nome, renda ou família. Usado desde a gripe espanhola possui registro de mais de um milhão de sepultamentos, tornando-se o maior lugar de sepultamentos em massa do país. .

No imaginário da cidade Hart é uma ilha assombrada, cercada de mistérios. Muitos acreditam que é lugar dos poucos amados, das pessoas sozinhas que não foram capazes de enquanto vivas criarem laços afetivos, para outros um retrato da desigualdade onde os mais pobres, sem acesso a funerais e crematórios, são depositados para a eternidade. Eu vejo de outra maneira. Hart é um cemitério onde os ricos não têm privilégios, não possuem monumentos, estátuas. Pobres, ricos, artistas, mendigos, todos indo para covas coletivas, algumas com centenas de caixas de madeira clara, idênticas. A emergência fez de Hart um enorme monumento à solidão humana, ao destino dos nômades, dos que em todas as cidades do mundo vagam e desaparecem.

O barco leva Eugene e um grupo, carregando flores e lágrimas. Seguimos para os últimos meses de pandemia, com a vacinação avançando e os índices reduzindo, mas as marcas ficarão. Nossa geração ficará marcada pela proximidade com o desaparecimento repentino, em massa. Sobrevivi a duas pandemias em meu curto tempo de vida e não há como esconder essas cicatrizes.

Todos nós somos agora uma espécie de Hart Island, abrigo e destino. Assim como a ilha, estarão sempre visíveis em todos os mapas, a todos que olharem para o infinito, para a linha do mar.