“Eu, pessoalmente, recebi mais doses da vacina contra COVID-19 do que 130 países”, escreveu o Dr. Craig Spencer sobre as duas doses da vacina que recebeu recentemente como médico atuante na emergência. Em 2014, contraiu o ebola enquanto combatia a epidemia na Guiné, África. O Dr. Spencer conhece o valor dos protocolos de saúde pública, equipamentos de proteção individual (EPI) e vacinas.

“Apenas algumas semanas atrás, um dos únicos países da África Subsaariana que recebeu vacinas foi a Guiné, que recebeu 25 doses – não 2.500, não 25.000, mas 25”, disse Spencer, diretor da Global Health in Emergency Medicine da Universidade de Columbia, ao programa estadunidense Democracy Now! Hora das Notícias. “Eu fui vacinado, felizmente, mas meus colegas que trabalham em uma clínica no sul do Burundi, na África Oriental, podem ter que esperar até 2022 ou 2023.”

O problema do qual o doutor fala com propriedade tem sido descrito como o apartheid da vacina, ou o nacionalismo da vacina. Nações ricas, como os Estados Unidos, o Reino Unido e os países da União Europeia fizeram acordos para comprar milhões de doses de vacinas enquanto elas ainda estavam em desenvolvimento. As nações mais pobres, onde 85% da população mundial vive, são forçadas a esperar pelo envio de vacinas da COVAX, a coalizão que busca o desenvolvimento e a distribuição de vacinas às nações mais pobres, coordenada pela Organização Mundial da Saúde.

Spencer pontua que alguns países ricos chegaram a comprar doses suficientes para vacinar toda a sua população várias vezes. “Podemos segurá-las e guardá-las, ou podemos pensar em como vacinar outras populações vulneráveis em todo o mundo. Existem 59 milhões de profissionais de saúde no mundo. Nós poderíamos usar uma pequena fração das doses que encomendamos, e com o excedente, poderíamos ajudar a coordenar um programa… Para vacinar as pessoas mais vulneráveis do mundo.”

O principal obstáculo na vacinação em massa da população global é a escassez de oferta motivada pela ganância. A maioria das vacinas disponíveis foram desenvolvidas por empresas farmacêuticas privadas e com fins lucrativos, que detêm as patentes sobre as vacinas e o controle monopolista sobre a produção desses medicamentos que salvam vidas. Isso garante-lhes lucros maciços, apesar de terem recebido bilhões de dólares em subsídios públicos para o desenvolvimento delas.

Essa exploração da pandemia pelo lucro só é possível com tratados globais estritamente aplicados, principalmente por aspectos relacionados com o comércio dos direitos de Propriedade Intelectual, da Organização Mundial do Comércio (OMC). A Índia e a África do Sul estão liderando esforços para uma renúncia temporária a essas proteções de patentes da OMC, o que permitiria que instalações privadas e públicas em todo o mundo produzissem massivamente vacinas e outros artigos relacionados, como seringas e EPIs (equipamentos de proteção individual), que atualmente são protegidos por patentes. Os Estados Unidos, antes sob a presidência de Donald Trump, e ainda agora com o presidente Joe Biden, têm bloqueado a renúncia juntamente com um punhado de países ricos. Um movimento crescente coordenado pelo grupo Cidadão Público está pressionando Biden para reverter essa política destrutiva.

“Faria toda a diferença no mundo”, disse o congressista democrata Jan Schakowsky, de Illinois, para o Democracy Now!, “Estamos gastando bilhões de dólares para ajudar a nossa economia. Tudo isso será em vão, já que não podemos nos proteger contra este vírus se não ajudarmos a comunidade internacional. Há centenas de organizações de saúde e direitos humanos em todo o mundo que estão implorando para que essa renúncia seja aprovada. Nancy Pelosi, a nossa presidente da Câmara, disse que é importante fazer isso, para nós mesmos. Também é do nosso próprio interesse.”

O ponto de vista de Schakowsky é vital: se uma só pessoa no mundo permanecer desprotegida, estamos todos desprotegidos. O vírus da COVID-19 sofre mutações rapidamente. Variantes altamente contagiosas estão se espalhando ao redor do globo, incluindo as variantes do Reino Unido, África do Sul e Brasil, agora acompanhadas da variante de Nova York. Se o vírus não for contido globalmente, continuará a sofrer mutações e a se propagar através de populações desprotegidas, potencialmente tornando a nossa safra atual de vacinas ineficaz— mergulhando todo planeta em uma pandemia catastrófica novamente.

“Uma forma perniciosa de apartheid das vacinas surgiu… amplamente baseada na riqueza e na geografia”, escreveu, na revista Foreign Policy, Fatima Hassan, uma ativista sul-africana dos direitos humanos que lutou pelo acesso dos países pobres aos medicamentos para AIDS. “A resposta à pandemia não deve depender de cooperação voluntária, mas de medidas urgentes, como em tempos de guerra, incluindo medidas obrigatórias.”

A OMC estará reunida no início de março para debater a renúncia. Uma vez que a tomada de decisões depende de consenso, qualquer país pode bloqueá-la. Trilhões de dólares em potenciais prejuízos econômicos e milhões de vidas estão em jogo. Os Estados Unidos, a nação mais rica do mundo, com o maior número de mortes por COVID-19 — agora mais de meio milhão — devem conduzir o compartilhamento das vacinas e dos tratamentos que salvam vidas em todo o mundo.


 

Traduzido do inglês por Magui Vallim / Revisado por Luma Garcia Camargo

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