Por Robert Muggah*

Já esteve na moda descrever o Brasil como o país do futuro. Após meia década, muita coisa mudou. Nos últimos anos, uma presidenta democraticamente eleita foi tirada do poder e, recentemente, substituída por um fortão autoritário. Hoje em dia, o maior país da América Latina sofre com uma “crise tripla”, uma pandemia feroz, turbulência econômica e agitação política. Não era para ser assim. O que explicaria então esse mal-estar brasileiro?

O Brasil possui um conjunto de ativos que deveria ter tornado o país um sucesso. Por um lado, é um gigante demográfico: existem pelo menos 210 milhões de brasileiros, tornando-o o quinto país mais populoso do planeta. O Brasil é também uma potência econômica. Com um PIB de 1,8 trilhões de dólares, é a décima maior economia do mundo. O país é também geograficamente imenso, abrangendo 8,5 milhões de quilômetros quadrados, a mesma da Europa ocidental, e abriga 40% das floretas tropicais do mundo, 20% do abastecimento de água doce e 10% da biodiversidade.

Por que, então, apesar dessa abundância de riquezas, o Brasil luta tanto para cumprir o potencial de seu lema, Ordem e Progresso, desde a sua independência, em 1822? Praticamente, todo acadêmico que estuda o país concorda que ele tem vivido sob a ode positivista do filósofo Auguste Comte: – l’amour pour principe e l’ordre pour base: le progres pour but (amor como princípio e ordem como base: o progresso como objetivo).

O mito da harmonia racial

A resposta é que o Brasil sofre de um caso de identidade equivocada. Por mais de meio século o país foi propagandeado como um tipo de paraíso sedutor, de natureza selvagem preservada, um lugar de despreocupada indolência e sensualidade, de cordialidade e harmonia racial. No entanto, essa imagem não condiz com os fatos. Os recursos da Amazônia brasileira têm sido saqueados. O país sofre de uma desigualdade incrível que coloca 90% da riqueza nas mãos de 10% da população, convive com um racismo extremo contra os mais de 50% da população brasileira afrodescendente, a corrupção corre solta, de tirar o fôlego, e a violência criminal e impunidade apresentam índices elevadíssimos.

Hoje em dia, a liderança política arruinada, a má administração econômica e a crise da COVID-19 estão, simplesmente, levando os mesmos desafios de longa data a uma situação de quem precisa de socorro em nível extremo.

Um dos mais perspicazes livros sobre o Brasil “Os Brasileiros”, do professor de Direito estadunidense, Joseph Page, afirma que a semente do insucesso brasileiro foi plantada há duzentos anos. De fato, o Brasil foi o único território do Novo Mundo que viveu os dois lados da moeda, tendo sido, a sede e a colônia do império, quase que ao mesmo tempo. O Brasil foi também o último país do Ocidente a abolir a escravidão (1888), o que, de alguma maneira, explica a sua estrutura de classes sociais profundamente arraigada.

A questão racial e o racismo no Brasil justificam uma análise mais cuidadosa. Durante o comércio de escravos no Atlântico, que se iniciou nos anos de 1500 e continuou até o final dos anos de 1800, entre 3 e 5 milhões de escravos foram trazidos da África para o Brasil. Cabe uma comparação com os 300 mil escravos, aproximadamente, em torno de 5%, enviados aos EUA. Ainda assim, para a maior parte da história do Brasil independente, a “questão racial” foi encoberta. Por muitos anos, estudiosos descreveram o Brasil como um tipo de “democracia racial” feita de cidadãos vivendo em harmonia.

Surgiu uma narrativa romantizada das relações raciais, apoiada pela elite política e econômica do país, que, de algum modo, fez com que o país escapasse de julgamentos e atribulações de racismo e discriminação. Essa ideia pode, na verdade, ser rastreada até Gilberto Freyre, um sociólogo brasileiro dos anos 1930. Ele sugere que o imperialismo benigno de Portugal, as relações próximas entre senhores e escravos, e a mistura ativa de raças levou, inevitavelmente, à uma meta-raça e à uma sociedade pós-racial.

A ideia de que o Brasil evitou uma animosidade e tensão racial que afligiu outros países era fonte de orgulho para muitos cidadãos, e, de fato, muitos brasiliófilos no mundo todo. Ao longo do século XX, o governo contrastou, com frequência, a sua falta de animosidade racial em favor do que estava acontecendo nos EUA, antes e durante o movimento pelos direitos civis. Isso não foi apenas para consumo interno. Colocou o Brasil na posição de campeão mundial dos marginalizados, uma voz para o chamado Global Southe, uma força anti-imperialista liderando o movimento não alinhado.

Sem surpresa alguma, muitas dessas ideias vieram sob escrutínio. A última leitura é que a democracia racial brasileira foi uma ficção. Foi defendida de maneira ruidosa por uma elite branca para esconder uma opressão racial muito verdadeira e violenta. De fato, a grande maioria dos desafios contemporâneos brasileiros, como a desigualdade, a exclusão, a violência e a impunidade, são fortemente conectados a esse legado de discriminação racial não examinado. E, apesar dos esforços ainda recentes para reduzir a discriminação, ela está profundamente arraigada na estrutura da política eleitoral do país, nos sistemas educacionais e nos mercados de trabalho. A população negra do Brasil ganha hoje, uma média de 44% menos que seus pares brancos.

O racismo estrutural é hoje sustentado pela elite poderosa do país, algumas delas memoravelmente descritas por Alex Cuadros em ‘Brazillionaires: Wealth, Power, Decadence and Hope in an American Country’. O elitismo e a patronagem brasileira são lendárias, e isso contribuiu para os níveis incompreensíveis de corrupção e de impunidade. Uma das mais amplamente relatadas instâncias de corrupção é a chamada operação Lava Jato, que começou em 2014 e envolveu dezenas de ex-presidentes, ministros, políticos, empresários e outros, no Brasil e em cerca de uma dezena de países da América Latina.

A Lava Jato foi excepcional até mesmo para os padrões brasileiros. O que começou como suspeita de lavagem de dinheiro reproduziu-se como metástase em um vasto escândalo de corrupção na Petrobras, a estatal do petróleo. Ao todo, foram desviados valores que podem chegar a 13 bilhões de dólares dos cofres públicos, tornando-se um dos maiores esquemas de corrupção, não apenas na história do Brasil, mas de vários outros países.

Corrupção sistêmica

O escândalo parece ser apenas o último episódio de série que retrata uma longa e sórdida saga. Antes da Lava Jato, houve o Mensalão, que envolveu compra de votos e foi descoberto em 2005. E antes dele, houve o Banestado, escândalo de lavagem de dinheiro, que aconteceu entre 1991 e 2002. Até agora, poucos pagaram o preço por seus crimes. Ao invés disso, a habilidade de enganar o sistema foi tolerada e, até mesmo, com tristeza, admirada.

Existem sinais de que os brasileiros estão acordando e desafiando um intolerável status quo. Assim como nos EUA e em parte da América Latina, pedidos de reparação de justiça racial, redução da desigualdade e erradicação da corrupção estão crescendo. Com o aumento dos escândalos de corrupção nos últimos anos, o clima mudou. Até recentemente, era inconcebível imaginar manifestantes do Black Lives Matter marchando pelos enormes boulevards de São Paulo, ou acreditar que executivos das maiores construtoras e membros do congresso poderiam ser presos e, mais que isso, permanecerem presos.

As convulsões dos últimos cinco anos, desde o impeachment de Dilma Roussef ao crescimento de Jair Bolsonaro, não são simplesmente resultado do colapso dos preços das commodities, má administração e antipatia pela esquerda, embora esses fatores sejam importantes. São também sintomas de um despertar mais amplo e reações à política progressista que ameaça o antigo regime e os direitos da nova classe média.

Concordando ou não, o mandato do Partido dos Trabalhadores, que durou entre 2003 e 2016, abalou as instituições. Programas de promoção social em massa, desde o Bolsa Família ao Minha Casa Minha Vida foram intensificados. Novos sistemas de cotas e projetos culturais foram criados, destinados a empoderar as classes marginalizadas. A elite tolerou essas atividades desde que seus interesses permanecessem intocados. Quando terminou o boom da commodities, em 2013, a velha guarda iniciou o processo de descarte do Partido dos Trabalhadores. Os brasileiros foram às ruas e de lá não saíram mais. Uma geração inteira imersa em um novo tipo de política.

Problemas à frente

Então, como está o Brasil hoje? O país está encarando uma crise tripla: a pandemia da COVID-19, que ainda está em sua primeira onda; a crise econômica com consequências de longo prazo e uma crise política e de segurança que ameaça a estabilidade nacional. Some-se a isto uma quarta crise com implicações mundiais: a devastação e a degradação da Amazônia. Mesmo antes da administração de Bolsonaro, as práticas de limpeza de terras com o uso de incêndios controlados estavam aumentando, sendo mais de 90% feitos de maneira ilegal. Desde a eleição de Bolsonaro, as taxas de desmatamento dispararam aos níveis mais altos em uma década. Se o desflorestamento continuar na taxa atual, logo poderemos testemunhar uma extinção em massa, o que converteria a maior floresta tropical do mundo em uma imensa savana.

Quanto à crise sanitária, o Brasil reportou seu primeiro caso relativamente tarde, em 26 de fevereiro de 2020. A primeira reação foi lenta, mas no caminho certo. Os governos locais fecharam aeroportos, impuseram quarentenas e encorajaram as pessoas a ficar em casa. Rapidamente, no entanto, a situação começou a se desfazer. Bolsonaro foi inflexivelmente contra os lockdowns, pois temia que afetassem a economia de maneira negativa, e, de quebra, sua popularidade. Ele minimizou e depois politizou as evidências, indicou medicamentos controversos, como a cloroquina, perdeu dois ministros da Saúde e, descaradamente, ignorou os conselhos do ministro que ele próprio colocou no cargo.

Os resultados são tragicamente previsíveis. O Brasil registra 11% de todas as mortes relacionadas à COVID-19 no mundo, com apenas 2,7% da população mundial. Em uma base per-capita, algumas cidades possuem a pior taxa de mortalidade relacionada à COVID-19 do planeta. Mais de 241 mil pessoas já morreram, e pesquisadores dizem que o número real pode ser dez vezes maior.

A doença não dá sinais de que vai acabar e epidemiologistas dizem que os números vão continuar aumentando, apesar da chegada das vacinas. Parte do problema é que o Brasil tem uma população bastante numerosa de idosos. A verdade é que a maioria das pessoas que está contraindo a doença é pobre, vulnerável e negra. O Centro Nacional de Operações e Inteligência na área da Saúde estima que 55% daqueles que morreram por COVID-19 são negros, comparando-se com os 38% de brancos.

A situação na área da saúde é precária e os hospitais estaduais por todo o país estão, de alguma maneira, sobrecarregados. A taxa de recuperação é de 50% maior nas instituições privadas, quando comparadas com as públicas. É importante notar que mais profissionais de enfermagem brasileiros morreram por complicações decorrentes de COVID-19 do que em qualquer outro país. A benção salvadora do Brasil é o seu sistema público de saúde, com mais de 55 mil centros de tratamento e mais de 3 mil médicos, enfermeiros e profissionais de saúde. Alguns deles estão reagindo: um grupo de sindicatos, organizações sociais e profissionais da área médica (que se autodenominam Rede União da Saúde) ingressaram no Tribunal Penal Internacional para indiciar o presidente por “desprezo, negligência e negação” que, dizem eles, leva ao crime contra a humanidade. As chances de isso acontecer são, claro, próximas a zero.

Os efeitos econômicos da pandemia são graves. O governo estima um índice em torno de 4,7% de retração no crescimento econômico (revisto para abaixo de 0%, agora, em março de 2020). A agência de classificação Fitch é ainda menos otimista e prevê uma queda de 6% ou mais. O Banco Mundial coloca ainda mais em baixa, alegando que a queda pode ser maior que 8%. De qualquer maneira, o país está a caminho da queda mais acentuada do PIB em décadas.

Como um paciente em estado grave, a economia brasileira já vinha padecendo, mesmo antes da COVID-19, incluindo a brutal recessão que terminou em 2016. Desde que a COVID-19 começou a se espalhar, o Brasil experimentou uma saída maciça de divisas estrangeiras e uma significativa depreciação do real. O desemprego está na taxa de 13% e, mesmo alto, é apenas uma pequena porcentagem pior do que era antes da pandemia.

Sem surpresa alguma, o governo, especialmente Paulo Guedes, o ministro da Economia, graduado na Universidade de Chicago, está otimista em relação a 2021. Ele prevê uma recuperação em forma de “V” ainda em 2021, com uma recuperação no crescimento de 3,2%. Muitos estrangeiros duvidam. Enquanto ele reluta em adotar medidas mais Keynesianas durante a crise da COVID-19, como a transferência de renda, subsídios, reajuste na tabela do imposto de renda, demonstra impaciência para impor um regime de austeridade fiscal o quanto antes.

O apoio popular a Bolsonaro obteve sucesso com a COVID-19 e com a crise econômica, mas não tanto como era esperado. Nos últimos dois meses, ele perdeu seu ministro da Justiça, que lutava contra a corrupção, o juiz Sérgio Moro, antigos aliados viraram-se contra o presidente, o apoio que tinha da classe média caiu e os pedidos por sua renúncia ou impeachment cresceram mais ainda. O fato de que o presidente encara, pelo menos, 48 acusações isoladas de impeachment não o tem ajudado. Como no último mês, 55% dos brasileiros disseram que gostariam de vê-lo fora antes das próximas eleições.

Não sem briga

Em qualquer circunstância “normal”, isso serviria como uma sinalização para qualquer líder político. E, mesmo assim, Bolsonaro talvez possa sair incólume, apesar da maneira desastrosa como vem lutando tanto com a pandemia, quanto com as consequências econômicas. Na verdade, sua taxa de aprovação ganhou terreno, atingindo mais de 50%, em dezembro de 2020. Ainda assim, trata-se de um político com três décadas de experiência. Bolsonaro não vai cair sem lutar. Recentemente, ele reuniu o chamado Centrão, os parlamentares que trabalham na base a favor da patronagem.

Bolsonaro está jogando o jogo político brasileiro da maneira que sempre foi jogado: trocando cargos no governo por apoio político. O presidente ganhou parte da classe dos militares da mesma maneira: cerca de 6 mil militares foram nomeados para cargos no governo. Mais que durante a ditadura militar do país, entre 1964 e 1985. Importante é que Bolsonaro ainda é apoiado por linhas duras que lhe são leais, o que representa em torno de 15% dos eleitores, de acordo com as pesquisas. O presidente também tem o apoio constante de muitas polícias estaduais que têm se aproximado dele ao longo dos anos. São esses bolsonaristas que ele tem chamado para “defendê-lo” do impeachment, caso o Congresso tome essa improvável atitude.

Enquanto não necessariamente domesticado pela legislatura, Bolsonaro jogou pesado. Ele está reaprendendo as virtudes da política de dar de comer aos porcos, com o seu não menos importante, o subsídio emergencial de 110 dólares que lhe proporcionou avaliações altas no Nordeste e Centro-Oeste do país, áreas tradicionalmente mais favoráveis ao Partido dos Trabalhadores, mas ainda dependentes dessa assistência. O apoio a ele caiu no Norte e no Sudeste, onde os casos de COVID-19 são mais numerosos.

Embora ele tenha evitado a pior crise da sua gestão no curto prazo, o futuro político de Bolsonaro está bem longe de ser seguro. As eleições municipais de novembro de 2020 foram um golpe, com mais de 40 dos seus 60 candidatos indicados não tendo alcançado o segundo turno. Há muitas ameaças existenciais, não apenas da crise descontrolada da COVID-19, mas dos políticos opositores, da suprema corte e do sistema judiciário.

Além da ameaça de impeachment, Bolsonaro pode ainda ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal por crimes comuns, ou retirado pelo tribunal eleitoral nacional por suposta má conduta durante as eleições de 2018. Seus três filhos também encaram uma quantidade vertiginosa de investigações, incluindo lavagem de dinheiro e crimes de ódio. De fato, seu filho mais velho, Flávio, parece ser o seu calcanhar de Aquiles, por estar sendo investigado pela Polícia Federal por lavagem de dinheiro.

Se a justiça se voltar contra Bolsonaro, alguns temem que o Brasil vai tomar o mesmo caminho do Peru, quando Alberto Fujimori, outro populista da direita, enviou tropas e tanques para dissolver o Congresso e o judiciário em um “autogolpe”, conhecido como Fujimorazo. Na verdade, não importa como se encarem as coisas, nuvens de tempestade se acumulam no céu brasileiro. A crise econômica e da saúde não mostra sinais de enfraquecimento. Indicadores de agitação social, demonstrações, protestos e violência direta estão aumentando.

E mais, as taxas de homicídios começaram a subir e o país desponta com mais de 60 mil assassinatos por ano (dez vezes mais que nos EUA), sendo que a grande maioria das vítimas são homens negros. A matança policial também bate recordes em um país com cerca de 6 mil execuções por ano (seis vezes mais que nos EUA), muitos dos casos envolvendo também homens negros e pobres. Há sinais incipientes de resistência do que é uma sociedade extremamente polarizada, incluindo governadores e prefeitos. Uma safra de novos candidatos está surgindo, e isso talvez entristeça a classe política esclerótica do país.

Ainda assim, Bolsonaro é o candidato a ser derrotado nas eleições de 2022, e por uma margem ampla, de acordo com as pesquisas mais recentes. Atualmente, nem o candidato outrora popular, o ex-presidente Lula, ou outros possíveis candidatos como Ciro Gomes, João Dória, Luciano Huck ou Sérgio Moro chegam perto de Bolsonaro. Porém, parafraseando Harold Wilson, por duas vezes primeiro ministro do Reino Unido, um ano é uma eternidade na política. No Brasil isso é mais verdadeiro que em qualquer outro lugar. [IDN-InDepthNews – 20 February 2021]

* Robert Muggah is co-founder of the Igarape Institute, an independent think tank dedicated to integrating security, development and climate agendas based in Rio de Janeiro, and the SecDev Group, a Canadian digital risk and resilience consultancy. This article was originally published on openDemocracy under the title ‘With an election looming, can Brazil finally confront its injustices?’.


Traduzido do inglês por Eliane Resende / Revisado por José Luiz Corrêa

O artigo original pode ser visto aquí