Ato contínuo ao golpe de Estado desta segunda-feira (8/2) em Mianmar, a UE e os EUA passaram a considerar a imposição de novas sanções àquele país. No mesmo dia, o Presidente dos EUA Joe Biden declarou que iria rever imediatamente a reintrodução de medidas coercivas. A UE anunciou que irá “considerar todas as opções à sua disposição para assegurar que a democracia prevaleça”. Durante muito tempo, durante a Guerra Fria, a República Federal da Alemanha estabeleceu uma estreita cooperação com o regime militar de Mianmar, por razões geoestratégicas, incluindo a exportação de armas. A Alemanha, assim como o Ocidente como um todo, em 1990, iniciou um movimento de afastamento daquele país, voltando a buscar uma aproximação mais favorável somente depois de a China mostrar publicamente que havia iniciado importantes projetos geoestratégicos – tais como a construção de um corredor de transporte, ligando o Oceano Índico ao sudoeste da China para contornar o Estreito de Malaca, que Washington pode facilmente bloquear. Ocorre que a tentativa do Ocidente de manobrar para neutralizar essas ações estratégicas de Pequim em Naypyidaw fracassou. Mais recentemente, Aung San Suu Kyi, a chefe de governo, de fato, recém-destituída pelos militares, vinha intensificando a cooperação com a China.

Bonn e os Generais

Ao longo de anos, as relações entre a República Federal da Alemanha (RFA) e os militares de Mianmar foram muito instáveis. Durante a Guerra Fria, a RFA manteve boas relações com os generais, que tinham tomado o poder em 1962. Afinal, Mianmar havia sido um importante aliado no confronto entre os blocos que se opunham naquela época. Por vezes, a RFA posicionou-se como o parceiro comercial não asiático mais importante e fornecedor de ajuda para o desenvolvimento daquele país. Segundo um perito em Mianmar, Andrew Selth, a RFA tinha sido “a principal fonte de tecnologia de armamento e um ator-chave no desenvolvimento da indústria de armamento nacional de Mianmar”[1]. O regime militar também tinha sido autorizado a fabricar o fuzil de assalto Heckler & Koch G3. As relações mudaram, tão logo o confronto bipolar chegou ao fim. Mianmar perdeu o seu antigo significado geoestratégico com as transformações fundamentais ocorridas entre 1989 e 1991. O regime, que tinha massacrado milhares dos seus opositores e tinha solenemente ignorado o resultado das eleições parlamentares de 1990, foi utilizado pelo Ocidente como exemplo para legitimar as sanções com os direitos humanos. Ao longo de muitos anos, o Ocidente impôs todo o tipo de medidas coercivas a Mianmar[2].

A Estrada da Birmânia

Os interesses voltaram a se deslocar neste novo milênio. Em 2003, a China começou a procurar sistematicamente as rotas de transporte alternativas para as suas importações de matérias-primas vindas da África e do Oriente Médio. Uma grande parte dessas mercadorias tiveram de ser transportadas por navio através do Estreito de Malaca entre Achém, na Indonésia, e Malásia, e Singapura. Como nos casos de conflito, o Estreito poder ser facilmente bloqueado pelos EUA, Pequim também desenvolveu planos para uma rota de transporte diretamente do Oceano Índico, passando por Mianmar, rumo à província de Yunnan, no sudoeste da China. E, assim, a chamada “Estrada da Birmânia” serviu como um plano histórico. Construída entre 1937 e 1939, conduzia desde a Birmânia, uma colónia britânica naquela época, até à China, para abastecer o país durante a guerra contra o Japão. Após vários anos desde seu planejamento e durante a construção, foi encomendado um gasoduto em 2013, e mais tarde um oleoduto, em 2017, que conduzia petróleo e gás da costa de Mianmar até a China. A construção complementar de uma linha férrea para trens de alta velocidade também está nos planos. O significado estratégico de Mianmar para a China, que ao longo dos anos se tornou o parceiro econômico mais importante para o país, renovou o interesse dos Estados ocidentais na sua luta pelo poder com a República Popular da China, desde o alvorecer do novo milênio.

O Acordo com o Ocidente

Diante da situação atual, Washington abriu as conversações com o regime militar de Mianmar – inicialmente em sigilo, sob o manto da ajuda humanitária oferecida após a passagem do Ciclone Nargis, em 2008 – e, na continuação, as conversações ganharam um caráter oficial, desde o final de 2009. Essas negociações acabaram por conduzir a um acordo que, por um lado, previa uma certa abertura do país para o comércio e o contato político com o Ocidente e, por outro lado, uma cautelosa democratização do país. Os generais de Mianmar sempre estiveram nas rédeas do controle político sobre esse processo. Assim, os militares asseguraram constitucionalmente que um quarto dos assentos no parlamento, bem como os ministérios do interior, da defesa e das questões fronteiriças permanecessem reservados para os militares. Ao mesmo tempo, eles têm uma enorme influência econômica com conglomerados empresariais como o Myanmar Economic Holding Limited (MEHL) [3]. A figura principal da democratização cautelosa do país foi – e ainda é – Aung San Suu Kyi, que durante a ditadura militar esteve detida em prisão domiciliar em um período que totaliza 15 anos, para depois se tornar a chefe de fato do governo como “Conselheira de Estado”, após o término oficial da ditadura militar. A maioria da população de Mianmar ainda considera Suu Kyi como um líder popular.

“Sem Orientação para Reformas”

Da perspectiva ocidental, o almejado avanço na sua luta pelo poder contra a China tem, até agora, permanecido sem sucesso em Mianmar. Apesar do forte interesse inicial[4], o comércio alemão com Mianmar e os investimentos das empresas naquele país permaneceram modestos. Na primavera do ano passado, o Ministro do Desenvolvimento alemão decidiu pôr fim à cooperação com Mianmar, que tinha sido retomada no verão de 2012. A razão dada foi a falta de “orientação para reformas”, segundo o governo alemão[5]. E, ainda sob o ponto de vista político, parece mesmo ser impossível que Pequim recue em relação a Naypyidaw, que vem a ser a capital do país. Em setembro de 2018, representantes da China e de Mianmar assinaram um memorando de entendimento sobre a construção do Corredor Econômico China-Mianmar (CMEC), um corredor de transporte que liga Mandalay, a segunda maior metrópole de Mianmar, bem no centro do país, com Kunming, a metrópole da província chinesa de Yunnan, no sudoeste. A tendência do CMEC é se transformar em uma ligação na nova Rota da Seda da China (Cinturão e Iniciativa Rodoviária – BRI). Os especialistas dizem que Aung San Suu Kyi é a principal força que sustentaria um reforço na cooperação com a China, como meio de promover o mais rápido possível desenvolvimento de Mianmar[6]. Por outro lado, diz-se que os generais se preocupam com o fato de Pequim ganhar uma forte influência nesse processo.

Cenas dos Próximos Capítulos na Luta por Influência

Na calada da madrugada de segunda-feira (8/2), os generais de Mianmar deram um golpe e recuperaram o poder total em Naypyidaw. Suu Kyi e vários políticos da Liga Nacional para a Democracia (NDL), juntamente com outros adversários dos militares, foram detidos ou colocados em prisão domiciliar. As potências ocidentais protestaram contra o golpe. O Ministro das Relações Exteriores alemão, Heiko Maas, por exemplo, imediatamente declarou que “condena veementemente a tomada do poder e as detenções que se seguiram, realizadas pelos militares em Mianmar”[7] Entretanto, o Presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou uma nova rodada de sanções contra Mianmar. Na Alemanha, o responsável pela política externa do Partido Liberal Democrata (FDP), Alexander Graf Lambsdorff, exigiu que fossem tomadas medidas econômicas coercivas contra aquele país[8]. A UE, por sua vez, declarou que irá “considerar todas as opções à sua disposição, para assegurar que a democracia prevaleça”[9]. As sanções contra o conglomerado empresarial que sustenta a indústria de defesa e as forças armadas do país também estão no centro das negociações. Enquanto isso, no entanto, eles estão tomando muito cuidado para não levar Mianmar “para o controle cerrado da China”[10]. A questão das sanções é, assim, dominada – como habitualmente – por considerações estratégicas.

 

[1] Veja também Ein alter Partner der Militärs.

[2] Veja também Erfolglose Sanktionen.

[3] Michael Peel: Myanmar: the military-commercial complex. ft.com 01.02.2017.

[4] Veja também In Chinas Einflusszone (II) and Der Deal der Militärs mit dem Westen.

[5] Rodion Ebbighausen: Deutschland zieht sich aus Myanmar zurück. dw.com 14.05.2020.

[6] Hunter Marston: Has the US Lost Myanmar to China? thediplomat.com 20.01.2020.

[7] Außenminister Maas zur Machtübernahme durch das Militär in Myanmar. Pressemitteilung des Auswärtigen Amts. Berlin, 01.02.2021.

[8] Putsch in Myanmar: Lambsdorff fordert Sanktionen. presse-augsburg.de 01.02.2021.

[9] EU droht nach Militärputsch in Myanmar mit weiteren Sanktionen. sueddeutsche.de 01.02.2021.

[10] Till Fähnders: Wie ist Myanmars Militärregime beizukommen? faz.net 02.02.2021.


 

Traduzido do inglês por José Luiz Corrêa / Revisado por Graça Pinheiro

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