O dia 1º de dezembro marcou o 72º aniversário da extraordinária decisão da Costa Rica de abolir suas forças armadas.  O Dr. Carlos Umaña, costa-riquenho que atua na Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (ICAN), explica os antecedentes dessa decisão e reflete sobre o significado dessa postura, o valor real da resolução de conflitos através de meios não violentos e as implicações em um mundo sujeito a pandemias.

A Costa Rica tem se destacado como um país pacífico em meio a uma das regiões mais violentas do mundo. O país prosperou em alguns indicadores: taxa de alfabetização elevada (98%), expectativa de vida elevada (80,1 anos) e, mais recentemente, chegou ao topo do “índice do planeta feliz”. A palavra “paz” é onipresente por aqui. A Costa Rica abriga a Universidade para a Paz, tem um Ministério da Paz e Justiça, a paz é reconhecida como um direito humano e sua diplomacia tem sido consistentemente proativa em políticas progressistas pela paz, pelo desarmamento e em prol da preservação do meio ambiente. Por duas vezes, o presidente Oscar Arias elaborou um plano de paz em 1986, que ajudou a trazer a paz para uma América Central devastada pela guerra (sendo essa uma das razões pelas quais ele recebeu o Nobel da Paz em 1987). A Costa Rica também foi um dos principais defensores do Tratado de Comércio de Armas e desempenhou um papel de relevo em sua materialização e negociação. Na questão do desarmamento nuclear, juntamente com a Malásia, a Costa Rica propôs um modelo de Convenção sobre Armas Nucleares, em 1997, e tem estado na vanguarda em todos os esforços para promover o desarmamento. Inclusive, a Costa Rica faz parte do conjunto de sete nações do chamado Grupo Central que promoveu o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), e, por essa iniciativa, recebeu o prêmio “Personalidade do Ano” sobre o Controle de Armas de 2018.  Não raro, diplomatas costa-riquenhos assumem papel de liderança nos esforços sobre questões ligadas ao desarmamento, incluindo o primeiro Grupo de Trabalho Aberto sobre desarmamento nuclear, em 2013 (presidido pelo Embaixador Dengo) e a conferência de negociação do TNP (presidida pelo Embaixador Whyte). Ademais, os costa-riquenhos também desempenharam um papel importante na política ambiental internacional. Tomemos o exemplo da embaixadora costa-riquenha, Christiana Figueres, que presidiu ao Acordo de Paris de 2015 sobre as Mudanças Climáticas. E a lista não para por aqui.

Esse papel de liderança na política internacional em relação à paz tem tudo a ver com a Costa Rica ser um país desmilitarizado. A Costa Rica é, dentre outras coisas, famosa por ter abolido seu exército. Esse ingrediente, em particular, foi decisivo para a redefinição de tudo o que implica os conceitos de defesa e segurança nacional, a forma como as relações internacionais devam ser conduzidas e, em última análise, a essência do que significa ser um país. Em verdade essa postura lançou luzes sobre a ideia de que um país desmilitarizado seria vulnerável e dependente, e muda a visão coletiva sobre como a sociedade se relaciona com o seu governo, os Estados vizinhos e, em última análise, sobre a percepção que como a sociedade tem sobre si mesma.

Abolir o exército foi uma jogada muito ousada, especialmente na década de 1940, pois ia contra a ideia que todo o mundo tinha sobre o conceito de defesa e segurança. Alguns chegaram a prever que, sem um exército, a Costa Rica seria um alvo fácil para que países aventureiros pudessem invadi-lo. Passados pouco mais de 72 anos, isso nunca aconteceu, mas sim, destacou o país do restante da região.

Desmilitarização. É preciso dizer que a Costa Rica nunca teve uma cultura militar forte. Não teve que derramar sangue de seus compatriotas pela independência do país, porque foi beneficiada com sua independência, em decorrência da guerra entre o México e a Espanha, em 1821, a partir da qual toda a Federação Centro-Americana se tornou independente. Ao contrário de outras partes do “Novo Mundo”, a Costa Rica não era rica, como o nome sugere, em reservas de ouro ou outros minerais que exploradores sempre buscavam, de modo que os colonizadores europeus, na condição de colonos, eles próprios não eram ricos e não tinham escravos ou servos. Assim, esses colonos adquiriram terras férteis e nelas trabalharam. Como as características da terra e do clima eram propícias para a agricultura, o comércio de produtos como café e banana floresceu no século XIX. Assim, enquanto em outros países latino-americanos os militares serviram como instrumento de ascensão social, os costa-riquenhos estavam ocupados, cuidando de suas plantações prósperas e criando riqueza pessoal com suas próprias mãos. Assim, antes mesmo da decisão de prescindir do poder militar, a figura do agricultor era muito mais proeminente que a do soldado. Isso ficou ainda mais evidente quando, em 1856, um grupo militar dos Estados Unidos que se autodenominavam de “filibusters” invadiu a América Central para reivindicar terras, recursos humanos e naturais para os EUA, tendo obtido êxito em sua empreitada, em todos os outros países centro-americanos, quando chegaram à Costa Rica. O exército costa-riquenho era pequeno, e foram principalmente os agricultores que combateram esses invasores. A lenda do jovem fazendeiro Juan Santamaría, que tombou durante a “Batalha de Rivas” e ganhou a guerra incendiando a sede dos filibusters, bem atesta esse feito. O herói de guerra não foi um soldado, mas um agricultor. A vitória não foi de um exército, mas de um povo. A figura de Juan Santamaría incorpora os ideais dos costa-riquenhos, um povo que se erguerá para defender seu país sempre que necessário.

Em 1944, cerca de 100 anos depois daquele episódio, várias reformas sociais progressivas foram desencadeadas e deram origem ao sistema de seguridade social (cuidados de saúde sob os princípios da universalidade, solidariedade e igualdade), e às reformas trabalhistas de peso, assegurando por lei a educação primária universal obrigatória, além da criação do sistema público de ensino superior. Esses marcos, no entanto, foram acompanhados por um autoritarismo pró-comunista pelo partido no poder, o Partido Republicano Nacional, que, por sua vez, declarou as eleições de 1948 nulas, pois os resultados favoreceram seus oponentes. Isso provocou uma guerra civil que durou quatro meses, e da qual o líder da oposição, José Figueres, tornou-se presidente. Ao assumir o poder, extinguiu o exército e manteve as reformas sociais progressistas.

Muitos argumentaram, à época, que essa decisão foi pragmática. Por um lado, Figueres venceu com a ajuda de aliados militares externos e forças neoliberais internas que se opunham às reformas sociais, e, sem um exército, ele não teria que devolver o favor a seus aliados, pois o país não poderia mais prestar qualquer apoio militar. Ao eliminar formalmente a presença dos militares teria como efeito colateral a ausência de uma força opositora e, assim, a possibilidade de outro golpe. Essa medida também evitou as possibilidades de intervencionismo e golpes de estado promovidos pelos Estados Unidos, o que era uma possibilidade real para a Costa Rica. A desmilitarização também foi amplamente aceita porque as pessoas se cansaram do autoritarismo e não queriam mais conflitos. Assim, a “paz” e o desenvolvimento se tornaram a plataforma para o mandato de Figueres. Governar pela força jamais seria uma opção para o país. Internacionalmente, esse movimento foi visto como arriscado, pois tornaria a Costa Rica vulnerável a seus inimigos. No entanto, e bem consciente disso, a política do Estado costa-riquenho começou a apostar na diplomacia como o único instrumento de relacionamento com os demais Estados. O país, então, recorreu ao Estado de direito internacional como seu único meio de proteção. Simplificando, não tinha outra escolha. E assim, a paz tornou-se central para a política costa-riquenha e a identidade dos costa-riquenhos.

Internamente, não ter exército significava que mais recursos disponíveis poderiam ser gastos em saúde e educação. Foram gastos vastos recursos no processo de alfabetização e no direito à educação, além do investimento com os recursos voltados aos cuidados básicos com a saúde. Além disso, os militares também não eram mais um tema que exigisse qualquer atenção, então o foco da política e a energia gasta com debates sobre esse tema poderiam ser alocados para outras questões. Foi assim que outros programas surgiram, como as ambiciosas políticas ambientais que resultaram em conquistas, como a cobertura florestal de 52% do território do país, 25% do território ser constituído de parques nacionais, uma indústria de ecoturismo em expansão, e a rede elétrica funcionando quase inteiramente a partir de fontes renováveis, dentre outros.

Faz-se relevante mencionar que os conflitos internacionais não estiveram ausentes da Costa Rica. Por exemplo, ao longo dos últimos anos, o país enfrentou várias disputas fronteiriças com seu vizinho do norte, Nicarágua. No entanto, todos esses conflitos foram resolvidos no Tribunal Internacional Penal. Se a Costa Rica tivesse sido um país militarizado, essa questão provavelmente não teria sido resolvida de maneira pacífica.

Ressignificando a paz. A paz não é a ausência de conflitos, mas a solução deles por meios não violentos. Usar a ameaça e a força para “manter a paz” está longe de ser um verdadeiro estado de paz. Por um lado, uma ameaça só é boa enquanto a outra parte é dissuadida, e a chamada paz vira fumaça no instante em que essa dissuasão não é mais credível e nem efetiva. Por outro lado, a ausência de lutas reais não é necessariamente paz, se houver tensão. A violência persiste, se as pessoas vivem sob constante ameaça ou medo. Agora, com uma estrutura militar presente, como poderia ser de outra forma, se sua mera existência requer uma demonstração constante de força?

Embora ainda tenha muitos desafios a enfrentar, é inquestionável que a desmilitarização fez uma enorme diferença no curso que o país tomou ao longo das décadas que se seguiram. A Costa Rica é a prova viva de que a segurança não é necessariamente mantida pela presença de um aparato militar. Se pararmos para pensar quantos conflitos foram gerados e perpetuados pela existência e emprego da força militar, os militares não são realmente uma força protetora contra ameaças, mas poderiam muito bem ser a própria ameaça.

A pandemia da COVID-19 expôs a vulnerabilidade de muitas sociedades e fez com que as pessoas questionassem o próprio conceito de segurança. Muitas vidas foram perdidas e muitas pessoas se encontram desabrigadas e desempregadas em condições adversas. Os militares os protegeram? Como compatibilizar o gasto de bilhões de dólares com sistemas de armas caros, ajuda os doentes, aos desempregados e aos sem-teto? E como se previne a morte por um vírus? Os países que se saíram melhor durante a pandemia do COVID-19 são os que gastaram seus recursos e atenção em saúde, educação e políticas públicas voltadas para a sociedade.

A paz é base para o progresso, e a paz real não é construída sob ameaças e imposições de qualquer ordem, mas por uma cultura de cooperação, aceitação e inclusão. A paz é construída gradativamente, tendo como base uma cultura democrática robusta, alimentada por políticas e recursos que garantam uma vida digna, com acesso a cuidados de saúde e educação, e onde todas as necessidades básicas sejam plenamente atendidas.

A civilidade e o Estado de direito são fatores cada vez mais determinantes em um mundo cada vez mais interligado e onde o domínio pela força se torna cada vez mais irrelevante. O progresso da humanidade é sustentado pelo tripé: educação, cooperação e inclusão. Se quisermos sobreviver às nossas duas ameaças existenciais e provocadas pelo homem, quais sejam as mudanças climáticas e as armas nucleares, são urgente que levemos a paz muito a sério e que demos uma oportunidade à paz.


Traduzido por José Luiz Corrêa da Silva