A morte do maior jogador da história do futebol, Diego Armando Maradona, em 25 de novembro, produziu uma onda de dor e nostalgia no mundo inteiro. Ele era uma figura tão importante na sua Argentina natal que o presidente declarou três dias de luto.
Na Inglaterra, embora muitos tenham elogiado sua habilidade e as conquistas, sua morte gerou a oportunidade de desenterrar a velha farsa sobre o gol da “Mão de Deus”, na Copa do Mundo de 1986, em que o punho de Maradona praticamente jogou a bola no gol da Inglaterra. Para alguns, mesmo na morte, Maradona ainda era o trapaceiro que não podia ser perdoado. No entanto, foi justamente sua recusa em reconhecer a suposta superioridade dos ingleses, que protestavam descontrolados diante dele, o que deu alegria a milhões de pessoas em todo o mundo.
A incapacidade de algumas pessoas na Inglaterra de superar esse gol retrata os processos históricos que sustentam a relação da Grã-Bretanha com a América Latina, que, em minha pesquisa, defini como uma combinação de “cultura, capital e comércio que formaram um império informal” de meados do século 19 ao início do século 20.

Futebol como guerra

O problema é que “o futebol foi criado na Inglaterra, mas foi aprimorado na América do Sul”, como escreveu a historiadora Brenda Elsey.

Vimos isto quando Teófilo Cubillas, do Peru, destruiu o sonho escocês em 1978 e também na atuação de Maradona em 1986. Depois, houve o toque por cobertura do brasileiro Ronaldinho que deixou o goleiro inglês, David Seaman, duvidando da gravidade e do próprio universo na Copa do Mundo de 2002. As relações da Grã-Bretanha com a América do Sul foram definidas mais pelo futebol do que por qualquer outro aspecto.

O gol da “Mão de Deus” e o “Gol do Século“, que ocorreu minutos depois no mesmo jogo, trouxeram alegria e elevação espiritual a tantas pessoas na América Latina. Representaram uma ruptura “cósmica” na ordem universal das coisas (para citar o clássico comentário de Victor Hugo Morales sobre o jogo) que acabou com as suposições inglesas de superioridade que haviam sido aceitas por algumas elites em todo o continente. Este era, particularmente, o caso da Argentina, onde as comunidades de língua inglesa haviam chegado às centenas de milhares nos anos 80.

A profundidade do pesar que acompanha a morte de Maradona reflete o sentimento eterno de que, de alguma forma, ele foi responsável por um momento que adquiriu um significado espiritual devido à maneira como quebrou os padrões históricos.

Footballers on a pitch.

Diego Maradona logo antes de marcar o “Gol do Século” contra a Inglaterra, na Copa do Mundo de 1986, no México. (Crédito da imagem: Wikimedia)

Em sua autobiografia, Yo Soy El Diego, Maradona refletiu sobre a vitória contra a Inglaterra na Copa do Mundo, que aconteceu posteriormente à Guerra das Malvinas.

“De alguma forma, culpamos os jogadores ingleses por tudo o que aconteceu, por tudo o que o povo argentino havia sofrido. Sei que parece uma loucura, mas era como nos sentíamos. O sentimento era mais forte do que nós: estávamos defendendo nossa bandeira, as crianças mortas, os sobreviventes.”

O esporte, nestes termos, havia se tornado um substituto da guerra, uma oportunidade para os derrotados infligirem dor nos vencedores através de todos os meios possíveis. Além do conflito nas Malvinas, este sentimento foi moldado pela forte influência britânica sobre a vida econômica e cultural argentina.

O nacionalismo argentino foi marcado de diferentes maneiras pela construção das ferrovias pelos britânicos, bem como pela crise Baring, em 1890, que quase levou a Argentina à falência e da qual a Grã-Bretanha escapou relativamente ilesa. Havia também a loja de luxo Harrods, em Buenos Aires, os clubes de polo e a grande comunidade britânica na cidade e nas pampas (planícies férteis nos arredores de Buenos Aires).

Na Inglaterra, a raiva incessante por Maradona ter “se safado” surge das cinzas do império. Sob uma perspectiva histórica, podemos ver a recusa britânica em abandonar as Malvinas em 1982 refletida na sua resistência em aceitar a derrota na partida de futebol e, posteriormente, como parte de uma relutância em se afastar de dois séculos de envolvimento imperial com a América Latina.

Maradona e a masculinidade 

Desde a morte de Maradona, muitos notaram que ele deixou um rastro de destruição por onde passou. Ele pode ser visto tanto como uma vítima de algumas pessoas do seu entorno, mas também como o causador de grande parte dessa destruição. As drogas, a política revolucionária, os abusos domésticos e as explosões emocionais, que são as partes mais visíveis da narrativa da mídia, encaixam-se perfeitamente no estereótipo que os britânicos têm do latino-americano agitador e explosivo.

No entanto, conforme estudiosos argentinos como Eduardo Archetti e Pablo Alabarces apontaram, o conceito do futebol e da masculinidade estão amarrados há mais de um século. Esta combinação faz de Maradona a figura de destaque de uma cultura futebolística que se vangloria diante da humilhação do adversário. Ela vê a derrota como resultado da fraqueza feminina, enquanto também se maravilha com a beleza artística do corpo do jogador de futebol em voo e com o arco perfeito da bola achando o canto superior do gol.

Como observou o escritor Ayelén Pujol, as conquistas e rebeliões de Maradona foram uma inspiração para milhões de cidadãos marginalizados; incluindo as jogadoras de futebol, que hoje se esforçam para transformar o sistema do futebol à sua maneira.

Com a atual proibição dos torcedores de frequentarem os estádios devido ao coronavírus, estamos cada vez mais ansiosos por lendas e heróis que nos unirão. Ansiamos por espaços comunitários e públicos onde possamos compartilhar momentos de alegria e tristeza juntos. Diego Maradona foi uma figura fundamental em muitos desses momentos no passado e, como resultado, sua vida continuará a ser um ponto de referência essencial na história do mundo.


 

Traduzido por Marcella Santiago / Revisado por Graça Pinheiro

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