Eleições 2020 na Bolívia: o Movimento ao Socialismo (MAS), partido de esquerda de Evo Morales e Luis Arce, reivindica uma vitória esmagadora nas urnas. Com essa vitória eleitoral, a população boliviana deu várias lições à elite da direita até então dominante. É uma clara rejeição à opressão e à violência contra a população indígena, à injustiça social e à venda econômica da Bolívia. O governo de esquerda recém-eleito terá que enfrentar muitos desafios. A agenda deles é a seguinte: pagamentos de bônus para os pobres e impostos para os ricos.

Foi um momento de esperança – não só para a Bolívia, mas para a América Latina: Embora os putschistas tivessem anunciado há um ano que “os selvagens nunca mais deveriam voltar ao poder”, em novembro de 2020, após as eleições presidenciais, o recém-eleito presidente de esquerda Luis Arce e o seu vice David Choquehuanca tomaram posse, abrindo caminho para a volta triunfal de Evo Morales ao país.

A Bolívia voltou a ser governada por um presidente democraticamente eleito, cuja faixa presidencial novamente ostenta a “bandeira da Wiphala”. A Wiphala representa os povos originários andinos e é o símbolo da população indígena da Bolívia. Sob o governo conservador golpista de direita, os símbolos do povo indígena haviam sido retirados das instituições estatais. Os povos indígenas representam cerca de 62% de toda a população boliviana.

Eleições presidenciais de 2020: uma vitória esmagadora da esquerda boliviana

Em seu discurso de posse, Luis Arce conclamou a população para que superasse “a divisão, o ódio, o racismo e a discriminação”. Ele acredita em uma Bolívia melhor, “caminhando alinhados com o sentimento de participação e a colaboração de todos os bolivianos rumo à coexistência pacífica”. Esse objetivo deverá consistir nos “princípios de autodeterminação dos povos, não ingerência, não alinhamento e plena igualdade jurídica e política”.

O economista Luis Arce, 57 anos, venceu as eleições presidenciais como candidato do Movimento ao Socialismo (MAS) com 55,2% dos votos válidos. As diferenças percentuais para seus adversários, o liberal-conservador Carlos Mesa (31,5%) e o candidato de ultradireita Luis Fernando Camacho (14%) foram gritantes. De acordo com o Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP), o MAS conquistou 73 dos 130 assentos na Câmara dos Comuns (“Cámara de Diputados”). O partido será representado por 21 dos 36 senadores da Câmara dos Lordes (“Cámara de Senadores”). Além disso, há outro aspecto positivo: 50% da nova legislatura na Câmara dos Comuns são mulheres.

Com Luis Arce Catacora, a Bolívia tem novamente um presidente democraticamente eleito, fonte: Wikimedia Commons/UNCTAD/CC BY-SA 2.0

Bolívia: uma clara rejeição à elite de direita

Com essa brilhante vitória eleitoral no pleito presidencial do corrente ano, a população boliviana deu várias lições à sua elite política. Por um lado, é uma clara rejeição ao governo provisório de direita e religioso da presidente Jeanine Áñez, que tomou o poder em novembro de 2019, após acusações injustificadas de fraude eleitoral e um golpe contra Evo Morales. Os resultados das eleições nesse país andino revelaram a farsa da chamada fraude eleitoral, que foi encenada pela liderança da Organização dos Estados Americanos (OEA), juntamente com o Grupo de Lima e os Estados Unidos, após as eleições de 2019, para legitimar o golpe militar.

O governo interino usou de opressão e houve derramamento de sangue de povos indígenas. Isso causou um revés econômico e social significativo. Coincidindo com a pandemia do Covid-19, essa conjuntura empurrou o país para uma crise profunda. Como consequência, o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que a economia boliviana encolherá 7,9% em 2020.

As sequelas do governo de direita

O governo de transição, que só tinha a tarefa de se preparar para as novas eleições, não obstante, tomou uma série de decisões políticas que extrapolaram, e muito, os limites do seu mandato. Manteve-se fiel a uma agenda conservadora. Por exemplo, fechou as embaixadas na Nicarágua e no Irã. Além disso, o governo assinou contratos estruturais entre a petroleira nacional boliviana e a empresa petrolífera brasileira, a Petrobras. Isso afetará a economia boliviana pelos próximos seis anos. Além disso, o antigo governo solicitou um empréstimo ao FMI, sem o aval do parlamento.

Por outro lado, não há dúvida de que a violência física e simbólica contra a população indígena, que foi amplamente demonstrada nos massacres de Sacaba e Senkata, e na queima de Wiphalas, contribuiu significativamente para o voto da maioria indígena em Arce. A maioria dos bolivianos disse não à volta das antigas elites colonialistas. A burguesia branca, abertamente racista, nos departamentos de Santa Cruz ou Beni, que havia celebrado a renúncia de Evo Morales, teve que entender que quem deseja governar a Bolívia terá que representar, ou pelo menos incluir, a população indígena.

Eleições presidenciais e o poder do povo

No final das contas, a mobilização da população foi crucial. Sob o pretexto da pandemia do Covid-19, o governo interino de Añez teve as novas eleições presidenciais adiadas por três vezes, até que a sociedade civil organizada manifestamente disse: “Basta!” Milhares de sindicalistas e ativistas de organizações de agricultores e de base entraram em greve, bloquearam estradas e caminhos em todo o país para garantir que a data da eleição presidencial em outubro fosse legalmente definida.

Assim, o povo boliviano provou que a razão, a dignidade e o espírito de luta não podem ser reprimidos nem por um golpe militar nem por uma repressão governamental. O resultado das eleições é importante não só para a Bolívia, onde, sem dúvida, foi dado um passo importante para o restabelecimento da democracia, mas para toda a região latino-americana em termos de democracia, independência nacional, progresso econômico e social e luta contra o racismo.

Luis Arce: um presidente para o renascimento econômico

A classe média urbana e os povos indígenas associam o novo presidente ao renascimento econômico, à prosperidade, ainda que modesta, à domesticação da inflação e a uma redução considerável da pobreza. Sob a batuta do economista de 57 anos Luis Arce – em seu mandato como ministro da Economia – a Bolívia vivenciou um dos períodos mais longos de crescimento na América Latina. Os bolivianos o consideram um político competente, capaz de restaurar a estabilidade econômica do país, que a crise do coronavírus afetou gravemente. Sob sua liderança como ministro da Economia, durante a administração Evo Morales, a Bolívia seguiu uma política de nacionalização de suas reservas de petróleo e gás. Com o boom das matérias-primas, o país foi capaz de seguir uma generosa política de redistribuição. Essas medidas contribuíram para a redução dos índices de extrema pobreza. A renda per capita triplicou, a moeda manteve-se estável e o índice de extrema pobreza despencou de 38 para 16%.

Restaurando a Bolívia: pagamentos de bônus para os pobres, tributação pesada para os ricos

Luis Arce e seu vice Choquehuanca têm pela frente muitos desafios. Em primeiro lugar, terão que desembaralhar as desordens econômicas e sociopolíticas do regime putschista. A crise atravancou a economia, cuja base, ao longo de muitos anos, sustenta-se na exportação de matérias-primas. A crise também ajudou a acabar com postos de trabalho e a aumentar a pobreza em todo o país. O sistema de saúde foi amplamente destruído – em parte devido à expulsão, politicamente motivada, de médicos cubanos – e o sistema educacional encontra-se em frangalhos.

“O ATUAL ESTADO DA BOLÍVIA É O RESULTADO DA DIREITA FORÇANDO A PASSAGEM PELOS INTERESSES DE CLASSE DOS RICOS”, DECLAROU Arce em uma entrevista à BBC.

O governo do MAS terá que definir as suas prioridades. Terá que reverter as ações que foram realizadas à custa de sacrifícios impostos ao povo. Por exemplo, o antigo governo cortou programas sociais e começou a vender matérias-primas, como o lítio, para corporações multinacionais. Não é à toa que nada menos que 256 propostas compõem o programa para melhorar a situação na Bolívia. Dentre as medidas a adotar estão os pagamentos de bônus para a redução urgente da fome e da pobreza, e a criação de um imposto pesado sobre grandes fortunas. Além disso, o programa propõe a industrialização dos enormes depósitos de lítio no lago salgado de Uyuni. Propõe também a reabilitação dos sistemas de saúde e educação que foram arruinados. Questões como boas escolas e a recuperação de postos de trabalho, proteção ambiental e o fim da violência contra mulheres e meninas também estão se tornando mais importantes.

Reorganização das forças armadas e policiais

A reorganização da polícia e das forças armadas que, em grande parte, apoiaram o golpe no ano passado será igualmente importante. Embora a vitória esmagadora nas eleições recentes possa ter enfraquecido as elites políticas conservadoras de direita, é claro que essa parcela da população não aceitará que o povo boliviano tome seu futuro em suas próprias mãos. Seria ingênuo acreditar que eles agora aceitarão democraticamente o resultado das eleições sem esboçar alguma reação.

Fortalecimento das alianças latino-americanas

Em termos de política externa, Arce quer trabalhar para fortalecer as alianças estatais latino-americanas. Além disso, ele quer reviver a integração regional que vários governos progressistas iniciaram há cerca de 15 anos. Ele também quer retomar as relações diplomáticas com Cuba, Venezuela e Irã, rompidas pelo governo interino de Áñez. Além disso, ele quer melhorar as tensas relações com a Argentina e o México. A Bolívia estaria ao lado de governos e movimentos progressistas, tendo ele como presidente, disse Arce. Essa mensagem mostra como o novo governo é importante não só para o estado andino, mas para toda a região.

O ex-presidente boliviano Evo Morales retorna ao país após as eleições presidenciais de 2020. Fonte: Wikimedia Commons/Joel Alvarez/CC BY 3.0

A volta triunfal de Evo Morales

“Há um ano, a Bolívia viveu um dos piores momentos de sua história. Agora a democracia foi restaurada”, disse Evo Morales. O líder do MAS, partido que volta ao poder, deixou a Argentina no dia seguinte à posse de Arce. Milhares de apoiadores saudaram-no triunfantes, quando ele atravessou a fronteira com a Bolívia. O presidente de centro-esquerda da Argentina, Alberto Fernández, encontrou-se com Morales na ponte que faz fronteira com a cidade argentina de La Quiaca. Uma caravana, composta por várias centenas de veículos, iniciou a viagem de volta à Bolívia, atravessando várias regiões até o departamento de Cochabamba. Morales ressaltou: “O povo venceu, mas devemos permanecer vigilantes.”


Traduzido do inglês por José Luiz Corrêa da Silva / Revisado por Thaís Ribeiro Bueno

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