Entrevista com Camila Jourdan

 

A fim de ampliar e qualificar as discussões sobre processos democráticos e garantia de direitos, Pressenza conversou, por email, com pessoas que se identificam com a teoria e as práticas anarquistas.

As questões que orientam as entrevistas giram em torno da prática do não voto eleitoral, que cresce a cada eleição, no Brasil e no mundo. Um evidente sinal de afastamento da população da democracia representativa.

A primeira conversa foi com Camila Jourdan, Professora Doutora em Filosofia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Além da teoria que desenvolve na academia e nas obras que escreve, Camila atua em diferentes lutas por direitos: Educação, Saúde, alimentação, moradia, liberdades.

Ao longo da entrevista, a Professora explicitou as fragilidades da democracia representativa, com destaque para a exclusão e a exceção como “falhas inerentes” ao sistema democrático. Comentou ainda sobre a “legitimidade” de as pessoas sentirem asco pela política partidária.

E, por fim, deixou algumas sugestões para a construção de um mundo mais justo: “não vote, se organize, lute!”

Crédito da Imagem: Camila Jourdan, arquivo pessoal.

 

Uma pesquisa realizada na América Latina, em 2018, perguntou a pessoas de diferentes países:Como é a democracia em seu país?”.

Das 1.204 pessoas entrevistadas no Brasil, 51% entendem que a democracia brasileira tem “grandes problemas”. Outros 17% afirmam que o Brasil “não é uma democracia”. E 12% não compreendem o que seja uma democracia.

Pensando nisso, Professora Camila Jourdan, como explicar para o grande público o que significa democracia representativa?

– Bom, como anarquista, eu tenho uma visão bem crítica das democracias representativas, de maneira geral. Se formos pensar no que se estabelece discursivamente, bom, acredita-se que deveria ser um governo eleito para representar o povo, em sentido amplo, todas as camadas da sociedade.

Haveria assim a possibilidade de governarmos uns aos outros de maneira rotativa. Já aqui há uma premissa: as pessoas não se autogovernam, é preciso uma representação para o exercício político. A representação acaba por valer mais que o representado ao qual não corresponde, salvo por uma grande exclusão.

“toda representação já é uma exclusão”

A própria noção de representação exige que ela ocorra de maneira sempre, necessariamente, mais ou menos, imperfeita, ou seja, toda representação já é uma exclusão. É ainda preciso lembrar que somente o que está não-presente, ou seja, ausente, pode ser representado.

Complementarmente, o exercício do poder separará sempre os interesses dos governantes dos interesses dos governados. Então, mesmo que os primeiros tenham tido antes uma origem popular, na medida em que ocupam o lugar da representação, seus interesses tornam-se outros. Tendo em vista as desigualdades profundas existentes nas sociedades capitalistas, quais possibilidades reais haveria para aqueles eleitos para o exercício político corresponderem aos interesses das camadas excluídas?

Mikhail Alexandrovich Bakunin, 1814-1876.

O que se tem de fato é um ‘governo de alguns’, os mais ricos, visando seus próprios interesses. No geral, um governo das camadas privilegiadas, visando manter seus privilégios, que se poderia muito bem chamar ‘plutocracia’.

“o abandono de uma concepção revolucionária da esquerda”

A diferença que se faz entre governo de esquerda e governo de direita, parece sempre entre uma direita envergonhada e uma direita assumida. Por vezes, arrisco dizer que a direita assumida é menos nociva à luta social, pois é importante saber de que lado estão nossos inimigos para podermos nos preparar para a autodefesa. Com um governo assumidamente o que é, as resistências se voltam pra base, se preparam para o enfrentamento.

A suposta esquerda institucional tem minado as lutas sociais por dentro, quando coloca as ações como greves, mobilizações e ações diretas em função da disputa eleitoral. Obviamente, isso não se faz sem o abandono de uma concepção revolucionária da esquerda. É uma desistência de se modificar a sociedade radicalmente, e de baixo para cima, em função de se conseguir cargos que, quando conseguidos, não servem mais pra nada. Pois pra se conseguir se deixou precisamente de ser aquilo que poderia mudar algo.

Então, sem dúvida, o problema de se apostar na política representativa é um problema da relação entre meios e fins: o que se pretende exatamente? Você pode conseguir por este caminho? Ou ele é contraditório justamente com o que você gostaria de conseguir?

 “como tivemos 14 anos de conciliação de classe e chegamos onde chegamos agora?!”

Eu costumo dizer que se entrega o que é mais importante por algo que não se tem qualquer garantia e que não é entregue no final. Imagina você vender sua alma por uma perfumaria qualquer e nem essa bobagem você conseguir? É mais ou menos isso. Claro que, sem mudanças estruturais profundas, e de baixo para cima, qualquer concessão pequena que a elite possa fazer será revista na página 2. Afinal, como tivemos 14 anos de conciliação de classe e chegamos onde chegamos agora?! Os anarquistas apostam em uma política que não é da representação. Acreditam numa política do que realmente importa enquanto um fim em si. Nisso colocamos nossa energia.

Foto: Valdir Silveira

“regimes autoritários que se proclamam legítimos sob a égide da democracia”

Ainda sobre a democracia representativa, gostaria de dizer mais algumas palavras. A realidade é que bilhões de pessoas vivem sob regimes autoritários que se proclamam legítimos sob a égide da democracia representativa. Mas a questão é que as democracias têm sido exatamente isso. Daí, o que se coloca como questão é: poderia ser diferente? A democracia representativa poderia funcionar? E o difícil de discorrer sobre esse tópico é que sempre partimos da ideia de que existe um funcionamento imperfeito da democracia representativa, devido aos fatores históricos e sociais da nossa realidade, mas que poderiam ser corrigidos para que ela passasse a funcionar. Ou seja, para que realmente houvesse governos representativos que governassem para os governados. Assim, é como se houvesse um funcionamento correto da representação e a exclusão sistêmica fosse uma falha nela a ser corrigida.

“a falha sistêmica da representação é inerente ao seu funcionamento.”

A isso os anarquistas argumentam que não é bem assim. A falha sistêmica da representação é inerente ao seu funcionamento. Eu diria mais, enquanto a política se fundar em uma separação rígida entre público e privado (polis e oikos), a exclusão sistêmica será sua marca e de tal modo que, precisamente, aquela materialidade que sustenta a ordem dominante seja sempre colocada fora da sua jurisdição.

O que se chama de ‘democracia representativa’ nada mais é do que um ‘mercado de consumo’ de siglas e candidatos. Se a participação política é reduzida a esse ato de legitimação da representação, funcionando pelo princípio da troca, não existem espaços de construção do que é comum e da participação direta enquanto coletividade. E, de fato, essa escolha de governos é um ato totalmente desprovido de liberdade.

“a democracia sempre se manteve pela exclusão e coerção”

Nesse sentido, a CrimethInc tem diferenciado a autodeterminação, praticada por povos originários e no âmbito da própria luta social, da democracia, enquanto aquela nascida na tradição ocidental sem qualquer pretensão de abolir a função do kratos, isto é, do governo. Diferente de outros autores libertários, como David Graeber, que pretendem associar essa autodeterminação com uma ideia de “verdadeira democracia” não-representativa, a CrimethInc afirma que a democracia sempre se manteve pela exclusão e coerção em favor da manutenção do poderio de poucos e da exclusão de muitos na separação rígida entre governantes e governados. Ainda que com uma capa de participação entre iguais, não houve jamais compromisso real da democracia com a horizontalidade, o fim de toda escravidão e dos sistemas patriarcais e racistas de opressão disseminados pela sociedade.

Sofremos o maior derramamento de óleo já registrado no país. Nunca se queimou e derrubou tanta floresta como em 2020.

Na primeira quinzena de novembro, com mais de 163 mil óbitos, éramos o segundo país em número de vítimas fatais por Covid-19. Atrás apenas da autoproclamada “maior democracia do mundo”.

Por aqui, a crise da vez é o apagão no estado do Amapá. Mais de 730 mil pessoas violadas em direitos básicos.

Silenciosamente em curso, como se assim fosse possível, convivemos com dois genocídios negro e indígena. Assassinatos por feminicídio e por LGBTQIA+fobia seguem em alta há anos. Violência contra crianças, adolescentes, mulheres e idosos revelada como nunca durante a pandemia.

A cada dia, tornar-se mais evidente que a população sofre pela (in)ação de representantes que elegeu seja em âmbito nacional, estadual ou municipal.

O que o contexto atual, de múltiplas violações de direitos, revela sobre os limites da democracia representativa no Brasil?   

“ser matável é não ser sujeito de direito”

– A violação de direitos é sistêmica e não uma falha no sistema. Entender isso é um passo importante para escolher qual caminho trilhar. É um aspecto da política de morte, em que uma parcela enorme de pessoas são tratadas como não-pessoas, como seres matáveis. E ser matável é não ser sujeito de direito e não poder contar com a proteção do Estado. Para quais parcelas da sociedade a legalidade pode valer? Uma parcela muito pequena de fato.

A democracia não é incompatível com a violação de direitos, muito pelo contrário, o chamado Estado democrático não se mantém senão pela exceção, que transforma excluídos em alvos. O que se pensa é: “será que se eu votar em pessoas pretas; trans; indígenas; historicamente excluídas, não posso mudar isso?. Mas você não pode corrigir a falha na representação pela própria representação. O que a eleição de Obama fez com o racismo no EUA? E a da Dilma com o machismo? O que os anarquistas dizem sobre isso não é que não faça diferença. É que as modificações fundamentais não se darão por aí.

“ela ocupava um lugar de representação e foi assassinada”

O assassinato da Marielle Franco, impune inclusive, não é um acaso. Depõe bem sobre o que é o sistema representativo. É importante lembrar que ela ocupava um lugar de representação e que ela foi assassinada brutalmente no centro da cidade do Rio de Janeiro. Uma cidade sitiada e controlada e, ainda assim, quem investiga é cúmplice.

Tendo este caso da história recente em mente, podemos pensar o que ocorreria com uma pessoa eleita que realmente tentasse governar em favor dos setores sistemicamente excluídos. Bom, primeiramente esta pessoa tem que se eleger e, portanto, sua campanha tem que ser financiada. No geral, por corporações que investem no processo eleitoral como modo de manterem-se exercendo o poder.

Mas, digamos que houvesse um candidato que não fosse assim financiado, não sendo engessado pelos mantenedores do sistema. Ainda assim, teria que agradar a opinião pública manipulada e/ou ter muito dinheiro pra financiar correntes de celular e direcionar dados nas redes sociais.

“as alianças, os esquemas, toda a estrutura corrompida”

Mas digamos que apesar disso tudo, o candidato imaginário conseguisse furar a sociedade de controle ou fazer uso dela e, após se eleger, realmente colocasse pouco a pouco em curso uma política contrária aos interesses da classe dominante. Bom, ainda haveria as alianças, os esquemas, toda a estrutura corrompida na qual ele estaria inserido e em relação a qual precisaria responder.

Entretanto, digamos que, ainda assim, ele representasse em algum momento uma perda real para os banqueiros e aqueles que detém o grande capital. Vocês podem só olhar para o que aconteceu com a Syriza, na Grécia, que tentou comprar uma briga com os bancos e foi obrigada a recuar. Mas houve um outro momento histórico no qual isso ocorreu. Podemos lembrar de Salvador Allende, no Chile. O que nos leva a concluir que tal personagem imaginário seria deposto ou morto.

 

Choque ataca manifestantes. Foto: Valdir Silveira

“a exceção é regra na nossa sociedade”

Não há problema em usar a força e suspender a aparência de Estado democrático sempre que é necessário, mesmo que o alvo sejam gerentes do Estado, já que a exceção é regra na nossa sociedade, inclusive para isso.

Sendo assim, não adianta simplesmente se lutar por mais direitos, se os direitos não são respeitados historicamente para grandes parcelas da sociedade e para todas que se colocam contra os poderes constituídos.

Diante desse quadro, cresce o número de pessoas que se recusa a participar do processo eleitoral. Você pode informar como surgiu a ideia de não votar das eleições e ficar de fora chamada “grande festa da democracia”?

“muitas pessoas desenvolveram um asco pela política”

– Sim, essa é uma situação crescente em todo mundo. E demonstra, cada vez, como as pessoas não acreditam mais na representação. Obviamente, essas pessoas não são todas anarquistas. Muitas vezes nem têm profundas convicções políticas. Mas esse desencanto com a farsa eleitoral pode ser um primeiro passo para se focar em outras formas de atuação.

Muitas pessoas desenvolveram um asco pela política, e elas estão certas. Essa política da representação que não corresponde ao representado, como governo sistêmico do falso, nos provoca mesmo asco. Sem dúvida, não são todas anarquistas, mas possuem um sentimento legítimo, ou melhor, um sentimento plenamente justificado e que precisa ser afirmado como tal. Obviamente, este sentimento pode ser capturado por fakes antissistêmicos, como creio que a chamada nova direita tem operado muito bem. Em grande medida pela incompetência da esquerda institucional, que apostou todas suas fichas na representação falecida. Inclusive, em alguns casos, ajudando a criminalizar anarquistas, e agora tenta ressuscitar a ideia, em vez de se voltar para um projeto revolucionário.

Mas o fato desse sentimento ter sido capturado pela nova direita desavergonhada não torna esse sentimento menos legítimo. Este fake contrassistêmico, que nada mais é do que o sistema tomando vida própria, é mais um fake da representação e não tarda se mostrar, como tal, muito breve.

Os anarquistas sempre criticaram a participação no processo eleitoral, a política pelo voto, para se ocupar um parlamento, como algo que captura e esvazia a potência das mobilizações sociais.

“não vote, se organize, lute”

O ‘não vote’ é uma recusa, uma negativa, mas que sempre vem acompanhada de uma afirmação: não vote, se organize, lute, etc… Não se trata, portanto, simplesmente de recusar “a festa”, mas de propor uma outra maneira de fazer política, que é, sim, do nosso ponto de vista, excludente com a participação nas eleições. E este é o diferencial da posição anarquista.

Por um lado, recusar a participação no processo eleitoral com base em razões bem determinadas. Por outro lado, não parar nisso, isto é, não apenas recusar algo, mas afirmar uma outra maneira mais fundamental de atuação política. E, finalmente, afirmar essa maneira como excludente em relação à participação eleitoral.

“isso não as torna menos anarquistas”

Bom, isso não significa que anarquistas não possam votar, eventualmente. Diante da ascensão da nova direita, muitas compas votaram, por desespero mesmo. Mas isso não as torna menos anarquistas. Certamente trata-se do que se toma como sendo uma ação tática e uma ação estratégica. É uma leitura da realidade, em que vamos apostar nossas fichas, digamos assim, neste processo falido ou na modificação de baixo para cima da sociedade? Mas eu não posso fazer as duas coisas? Mais ou menos. Você pode sim votar pontualmente, não é este o problema. Mas a luta direta é na prática contraditória à farsa eleitoral, a todo investimento (de dinheiro e energia) para se ganhar o pleito e conquistar votos, e a tudo que se faz para isso.

Sobre esse ponto, basta olhar como os partidos atuam na luta concreta. Todo o freio que impõem às lutas, toda tentativa de se manter nas instituições as greves que negociam, os processos de baixo para cima que atropelam e, inclusive, as ações diretas que condenam, etc… Isso se segue de colocarem os processos eleitorais, as ocupações de poucas cadeiras nas instituições e parlamentos, como fins em si, como mais importantes do que aquilo que deveria ser a razão de estarem lá, mas que se mostra contraditória com esta própria permanência.

Como bem define o educador Paulo Freire, a práxis é a “unidade dialética entre subjetividade e objetividade, prática e teoria”. Pensando nisso, de que formas a teoria anarquista reflete sobre e orienta a prática do não voto eleitoral?

– Como afirmado na questão anterior, trata-se de uma recusa ativa. As ações práticas dizem respeito à auto-organizações coletivas nas células da sociedade e às ações de propaganda e de mobilização. Dito de modo mais direto: ocupações; coletivos autogeridos; greves; economia solidária; mídias autônomas; manifestações de rua, assembleias de bairro; criação de espaços autônomos e de redes de apoio mútuo entre estes espaços.

“ações que não esperam que alguém faça por nós”

São ações que carregam os princípios da sociedade que defendemos. Ações que não esperam que alguém faça por nós. Mas que pressionam os governos também pela ação direta, pelo já fazer e mostrar que outro modo de vida é possível. Sendo assim, não se trata de esperar a sociedade perfeita, mas pela auto-organização coletiva trazer melhoras para a vida das pessoas aqui e agora, ocupando um prédio e gerando moradia popular, por exemplo, oferecendo troca de educação e cultura sem o princípio do capital. Criar alternativas onde o princípio do capital não impere, onde outras maneiras de se relacionar possam ser exercitadas.

De fato, existem lutas diárias, todo dia estão removendo famílias, mesmo em meio à pandemia. E existem resistências, também diárias. Por isso dizemos que, no dia a dia, no micro, as pessoas podem atuar a partir dos espaços nos quais estão inseridas, podem ser agentes das resistências, podem ser fomentadores de outra forma de vida, a partir de baixo. Podem ajudar a construir sem precisar reproduzir de novo e de novo o que está posto.

O que a resistência precisa, neste contexto, é propiciar maneiras de garantir a autodefesa, e quando digo isto estou pensando nos cuidados mútuos em todos os sentidos. Desde a autodefesa antifascista, no sentido estrito, com técnicas de luta, até a partilha de informações e conhecimento nas favelas e periferias sobre a pandemia, por exemplo.

“auto-organização é autodefesa”

Quando mulheres se auto-organizam para partilhar informações, trocar cuidados e evitar que algumas continuem sofrendo agressões, por exemplo, isso é autodefesa em uma sociedade feminicída. O mesmo para coletivos que reúnem pessoas pretas; pessoas trans; quaisquer exclusões sistêmicas, ou muitas delas juntas. A auto-organização é autodefesa e, para esta, se faz uso de muitos meios.

Além de adjetivações pouco educadas, uma das acusações mais comuns a quem se recusa a participar do processo eleitoral é a de desvalorizar o direito de votar. Conquista de lutas históricas de populações negras, indígenas e de mulheres.

Qual é a sua compreensão dessas conquistas? Não votar as desvaloriza?

“antes de tudo, uma luta pela vida”

– Eu acho que dizer isso das lutas históricas das populações negras, indígenas e das mulheres é que desvaloriza essas lutas. Olha, a luta das pessoas excluídas sempre foi, antes de tudo, uma luta pela vida. No início do século XX, Maria Lacerda de Moura, por exemplo, criticava o movimento sufragista como um movimento burguês, das mulheres brancas, porque as luta imediata da mulher preta e proletária não tinha qualquer relação com votar, mas dizia respeito a questões muito mais fundamentais.

Maria Lacerda de Moura, 1887-1945.

Também a luta contra a ditadura não foi fundamentalmente a luta por votar, isso foi o que ela se transformou depois, sua versão capturada. O que se pretendia era uma projeto revolucionário. Agora você vai minorizar essas lutas históricas como sendo para ter direito de apertar botões de dois em dois anos e escolher entre o menos pior!? Que desgraça seria fazer isso com a luta dos povos em resistência.

O voto é uma inclusão pela exclusão que mais legitima um sistema que continua matando os indivíduos concretos, contando agora com a suposta conivência passiva destes, o que, de fato, permite que ele espelhe as reais reivindicações históricas desses setores.

“as coisas aparecem como aquilo que elas precisamente não são”

Não votar neste sentido é afirmar uma não-conivência, e fazer a exclusão aparecer como ela é. Este sentido simbólico é importante, porque na maior parte das vezes as coisas aparecem como aquilo que elas precisamente não são.

Eu tenho dito em vários espaços que uma ação política importante hoje é justamente fazer a morte de tantos aparecer como morte matada, pois o estratagema da manutenção do estado de coisas consiste em fazer com que apareçam como morte morrida, suicidada. Muito bem ilustrada, inclusive, pela voz passiva nas notícias dos jornais: as pessoas não são assinadas, elas morrem. Você é agente da sua própria morte, você escolheu, logo não há revolta.

E as pessoas são constantemente engajadas neste processo como uma escolha pelo menos pior. Constantemente engajadas nas suas próprias destruições. A um ponto tal que toda resistência aparece como não apenas ilegítima, mas como impossível.

“não precisamos ser agentes ativos de nossa morte”

Afinal, resistência contra o que, se não há lado de fora? Todo dia o sistema nos obriga a ser coniventes com nossa própria morte, a tomarmos parte nela de modo ativo. Todo dia, nos suicidamos um pouco. Há a possibilidade da recusa. É preciso lembrar isso, é preciso lembrar que não precisamos ser agentes ativos de nossa morte. Só assim podemos sair da conduta suicidária. E se formos obrigados, seja por um corte de salário ou por uma multa, seja por ameaça de prisão ou força física, ficará ao menos evidente que há um fora resistindo ao totalitarismo travestido de governo democrático.

Não votar é apenas um caso desses, obviamente. E nem é o mais importante.

Em 2018 tivemos uma candidatura fascista, objetivada em declarações de menosprezo e humilhação pública de pessoas negras, indígenas, mulheres, LGBTQIA+, nordestinas.

Naquele momento, houve divergência entre pessoas que não votam por posição política, pois algumas foram favoráveis a votar devido às ameaças que se anunciavam. De que forma você enxerga a divergência entre não votar, em hipótese alguma, e votar em determinadas circunstâncias?

“focar em ganhar eleições tira a força e captura a luta concreta”

Votar para anarquistas não é estratégia para modificação da sociedade e pode, sim, ser contraditório com tal modificação na medida em que focar em ganhar eleições tira a força e captura a luta concreta, minando movimentos e lutas sociais por dentro e direcionando as organizações de base para interesses que não são os seus.

De maneira geral, o foco no processo eleitoral joga a sociedade mais à direita. Isso se opera em relação interna com o funcionamento mesmo da representação, que é sempre necessariamente excludente e procede continuamente pela produção de um âmbito eliminável. Dito isso, é importante ressaltar que votar pontualmente não suspende a identidade anarquista de ninguém.

“não deve ser julgado individualmente, muito menos moralmente”

Eu, particularmente, não vejo como uma ação nem mesmo tática. Vejo como um desespero, compreensível, inclusive, mas que não deve ser julgado individualmente, muito menos moralmente. Ir lá e votar em um caso específico não significa tanta coisa, desde que não se perca o foco do que é realmente fundamental.

Muitos falam em se escolher o inimigo contra o qual se quer duelar, e muitas vezes eu diria que o pior inimigo não é aquele obviamente pior. Mas essa abordagem pode ser boa por se entender que a luta mesmo se dá em outro local, em outro âmbito, e não pelo processo eleitoral.

“maldito discurso que propaga o medo”

Fora isso, há o maldito discurso que propaga o medo: temos que votar em tal candidato porque de outro modo algo terrível vai acontecer. Este discurso é feito pelos dois lados. Sempre, tenham medo, votem em alguém para evitar uma catástrofe. Tenham medo, escolham um senhor para proteção. Ora, as coisas já estão péssimas, muito terríveis mesmo, e vão piorar.

Não é o voto que vai evitar uma catástrofe maior. A catástrofe está posta. Ela é conjuntural. Ela é a fase atual do capitalismo, e ninguém vai nos salvar. É preciso colocar peso nas lutas que acreditamos. E é preciso não ter medo também para focar no que pode mudar as coisas realmente.

Além do não voto eleitoral, que caminhos se apresentam para a parcela da população brasileira, e mundial, que não acredita mais viver sob um regime dito democrático? O que fazer?

“é da ação direta e não é da representação”

Eu gosto da reformulação da pergunta: não o que fazer, mas o como fazer, pois isso já carrega a ideia de que os meios são os fins. O que a gente faz é como a gente faz.

Não vejo outro caminho que não seja a construção de uma outra política, na qual os o meios são os fins. O que significa dizer que não separa público e privado, o que significa dizer que é da ação direta e não é da representação. Esta política é relegada ao âmbito do impossível porque é massacrada, exterminada diretamente, perseguida como um nada, até que apareça como utópica.

“é preciso sair de casa, recusar o que está posto e se auto-organizar”

Apesar disso, ela está viva, tem uma história. Ocorrem debaixo de nossos olhos inúmeras formas de vida em resistência, mas para contribuir com isso é preciso sair de casa, recusar o que está posto e se auto-organizar. Largar as telinhas e o conforto de ser uma atomização consumidora por algoritmos.

Não há uma receita e não é uma lista de tarefas, mas é possível começar onde se está. Nas relações de amizade, na auto-organização dos espaços libertos, onde estamos inseridas e inseridos, nos pequenos grupos e na rede entre estes grupos.