OLHARES

 

 

“There’s a party in my mind
And I hope it never stops
I’m stuck here in this seat
And I may not stand up.

Other people can go home
Other people they can Split
I can never stop
I can never quit”.

“Há uma festa em minha mente
E espero que nunca acabe
Estou plantado aqui
E não posso me levantar.

Outras pessoas podem ir para casa
Outras pessoas podem dividir
Eu nunca posso parar
Nunca posso desistir”

(Memories Can’t Wait — David Byrne e Jerry Harrison/Talking Heads — 1982)

 

Cada vez que eu ia ao clube do Flamengo, na Gávea, quando era adolescente, saindo sozinho pelas primeiras vezes, via um espaço decadente na Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, quando voltava a pé para casa: o extinto Drive-in da Lagoa.

A onda de drive-ins dos anos 60 já tinha passado nos anos 80, mas o telão em madeira e o estacionamento, onde os carros paravam para assistir aos filmes, insistiam em permanecer. Na verdade, os anos 80 consolidavam o boom dos motéis na região metropolitana do Rio de Janeiro, mas eles eram algo raro na zona sul. Costumavam se concentrar na saída da cidade, beirando as estradas, fosse pela Avenida Brasil ou Dutra, ou, em alguns casos raros, a partir de São Conrado no sentido Barra da Tijuca — considerando que Barra ainda era uma promessa de bairro residencial, com lotes que virariam condomínios e suas imensas dunas.

No entanto, a função de um drive-in — que eram poucos na minha juventude –, segundo me contavam, era ser um motel de baixo custo para quem não tinha tanto combustível para sair do seu bairro. Se fosse na orla, ir a um drive in de maneira discreta era “assistir corrida de submarino”. Sendo assim, não importava o filme. Importava mesmo entrar acompanhado, que as luzes se apagassem e, por fim, ter o seu próprio romance produzido ali. Em tempos em que não havia sequer celular, nem se pensava no som sendo transmitido para dentro do carro, vale dizer.

Nos eventos ao ar livre, como shows e filmes, o importante sempre foi a relação da pessoa com a experiência do momento, do prazer em ver ou ouvir aquilo que se está apresentando. Uma das definições filosóficas de “experiência” é sobre o que você adquire de conhecimento a partir dos sentidos. Para o escritor Aldous Huxley, afirmam, a “experiência não é o que acontece com um homem, é o que um homem faz com o que lhe acontece”. Para mim, essa citação dá liga para algo sobre o que venho refletindo: a memória digital e a inversão de alguns valores que acabam por substituir uma experiência maior. Ou, melhor dizendo, o que estamos fazendo com o que nos acontece?

Essa visão me veio ao lembrar do clipe ao vivo dos Scorpions tocando a balada “Wind Of Changes” quando, em meio às imagens de guerra, o público surgia com isqueiros e velas. As fagulhas das chamas iluminavam a escuridão em contraste com o palco. Luzes que vem da plateia, compondo o resto do espetáculo de maneira orgânica. Foi uma onda no início dos anos 90, onde as arenas eram o local da experiência dos shows e o público, em catarse, tinha um prazer mais memorável que o namoro no carro no drive-in, cujos casais nem se lembram qual era o filme que passava. E, mesmo que algum namoro de carro seja mais memorável que um bom show, poder dividir com o público a experiência coletiva é que fica na memória. Isso sem falar nos jogos em estádios de futebol, onde podemos abraçar pessoas desconhecidas do nada, por uma história construída em pouco mais de 90 minutos — duração média de um longa-metragem contemporâneo.

Com o advento do celular, que chegou, após duas décadas, a se tornar uma ferramenta multimídia com transmissão em tempo real, a experiência individual e memorial é posta de lado em prol de um selfie, onde o espectador se registra em vídeo numa plateia e, eventualmente, lembra de registrar o palco para não perder o show, que está na sua frente e que já está pago, sem direito a voltar dez segundos para filmá-lo. Os isqueiros foram virando telas de smartphones e a pouca capacidade de armazenamento dos aparelhos se tornavam o limite da experiência do espectador. E, mesmo antes de qualquer pandemia, essa nova experiência em espetáculos passou a ser o “novo normal”.

Com a precarização dos serviços de entrega e transporte na última década, agrega-se uma lógica de desvalorização do deslocamento do produto ao consumidor, importando menos a qualidade do serviço que traz o produto à sua porta ou até mesmo do produto em si. O importante é o preço e a pressa. O preço pode, em alguns casos e para algumas visões de mundo, melhorar ou não uma experiência. Mas, nitidamente, a pressa influi negativamente para o que pode se pensar como boa experiência. E não que a experiência, como fonte de conhecimento, tenha que ser boa ou ruim. Ela pode ser exata para cada um, sem cair num binarismo, numa oposição de valores. Ela te referencia para algo além daquele momento. Ou de vários momentos.

Então, não é de se estranhar que, para manter certas tradições que poderiam esperar um momento seguro — para quem não tem pressa de morrer –, como casamentos com convidados, cinemas, teatro, shows musicais, eventos que ficam na memória de quem os vive, a lógica paliativa do drive-in, aliada às tecnologias digitais, transformam o carro contemporâneo em um novo smartphone. Você vai com um número limitado de pessoas, até em família — ao contrário dos antigos drive-ins — para se manifestar com faróis e buzinadas sobre o evento que assiste, com sua máscara, que só tira para beber um drink, a princípio não alcoólico, ou para comer pipoca, e com o som do evento transmitido por ar, assim como o vírus, para o som do seu carro.

Sair preso em um carro para deixar a prisão que o lar se tornou durante o isolamento social passou a ser a opção de diversão segura para aqueles que ainda tem medo de ignorar as regras e se aglomerar como seus amigos e parentes em bares e shows “de verdade”. São novas experiências para criar novas formas de memória que mesmo que eu, homem do século XX, não concorde, temo que tenham vindo para ficar, diante de uma série de comorbidades que podem surgir da experiência do Covid-19 com outras que já estão ou virão a acontecer.

Como cantava David Byrne, memórias não podem esperar. Novas-velhas experiências desenharão algo nas vidas de quem sobreviver. Nada a fazer além de limpar o armazenamento do smartphone para que se possa contar história com referências do que está rolando agora. E quem sabe isso tudo não vire um filme e você possa ir no seu carro, se tiver um, com sua família, se tiver sobrado alguém, para um drive-in, se ainda for uma opção divertida?

“Mais cedo ou mais tarde, a teoria sempre acaba assassinada pela experiência.” (Albert Einstein)


Este texto contou com a revisão crítica de Tayna Arruda.