CINEMA

 

 

Nos anos de 1990 a questão do realismo no cinema começa a passar por significativas transformações. No campo tecnológico acontece uma verdadeira revolução, que teve inicio na década de 1960 com o uso progressivo da imagem eletrônica (vídeo) e que na década de 1990 entra em processo de consolidação com a gradual passagem para o digital.

A imagem cinematográfica “original” é composta de várias fotografias (fotogramas) sensibilizadas num suporte (película), que através de sua exibição ritmada criam o movimento aos nossos olhos e mente. A imagem eletrônica (vídeo) é um sinal eletromagnético composto de várias linhas sincronizadas em altíssima velocidade. A imagem digital, por sua vez, é constituída por pontos (pixels, abreviação de picture element) que dão origem a uma matriz numérica. Uma das principais implicações com relação aos diferentes formatos da imagem vai ser a possibilidade de manipulação.

Na imagem em película essa manipulação é mecânica, limitando as variáveis. Por exemplo, para retirar um personagem de um espaço e colocá-lo em outro, é necessário fazer um recorte mecânico, depois fazer uma máscara e uma contra-máscara para então inseri-lo no espaço desejado, e o resultado nem sempre fica satisfatório. Outras técnicas muito utilizadas no cinema sempre foram a pintura em vidro, com o vidro pintado sendo colocado na frente da câmera criando um espaço ilusório e a perspectiva forçada, quando a câmera é posicionada em determinados ângulos e distâncias específicas produzindo uma ilusão de ótica.

Já na imagem eletrônica as alternativas de efeitos e modelagem se multiplicam e, ao mesmo tempo, se tornam muito mais fáceis de aplicar. Com o auxílio de equipamentos apropriados passa a ser possível, por exemplo, modificar áreas inteiras de cores, ou introduzir e retirar objetos e personagens através do chromakey, que é um dos recursos mais populares do vídeo (técnica de supressão de uma cor padrão, geralmente verde ou azul).

Jerry Lewis em cena de “O Terror das Mulhers”.

O cinema, desde a década de 1960, começou timidamente a incorporar o vídeo. No princípio, com o objetivo de otimizar a produção através do uso do vídeo-assiste, que consiste no procedimento de acoplar uma câmera de vídeo à câmera de filmar, possibilitando a checagem das imagens de maneira imediata, sem precisar esperar a revelação da película (segundo consta, o comediante Jerry Lewis foi o primeiro a utilizar esse procedimento no seu filme O Terror das Mulheres [1961]). Aos poucos, os recursos da imagem eletrônica começaram a ser utilizados para a execução de efeitos especiais pontuais, até que no início dos anos de 1980 o diretor italiano Michelangelo Antonioni foi o responsável por fazer o primeiro filme de cinema inteiramente em imagem eletrônica, ou seja, gravado em uma fita magnética ao invés de película. O filme, O Mistério de Oberwald (1981), foi gravado em televisão de alta definição (HDTV), com algo em torno de “incríveis” 1000 linhas de definição (sim, hoje soa engraçado). O problema era que, na época, para o filme ser exibido em salas de cinema era necessário um processo chamado quinescopagem, que consiste em passar o material do vídeo para película. Esse processo é, até hoje, muito caro, inviabilizando essa prática.

A passagem para a imagem digital se deu de forma acelerada e “natural” a partir da década de 1990, uma vez que os equipamentos que permitiam a manipulação das imagens eletrônicas já eram oriundos de tecnologia digital (o citado chromakey; o TBC [Timing Base Correct] que corrige a sincronização das linhas; o ADO [Ampex Digital Optics] muito usado em efeitos especiais etc.). A origem das imagens digitais está relacionada com as sondas espaciais lançadas pela NASA (agência espacial norte-americana), uma vez que o envio de imagens eletromagnéticas através do espaço era inviabilizado pelas distorções causadas pelo campo magnético da Terra. Foi preciso digitalizar essas imagens para evitar as distorções, ou seja, as imagens foram transformadas em códigos binários. Com o desenvolvimento dos computadores pessoais e de programas que realizam os cálculos algébricos de forma automática, a digitalização das imagens logrou um crescimento rápido e contínuo. Esse processo de digitalização passa a permitir o controle sobre cada um dos pontos que constituem a imagem, portanto, não há limite para a manipulação que, potencialmente, torna-se ininterrupta, desde o momento da produção da imagem até a pós-produção, aonde a imagem poderá ser editada, montada, reenquadrada, refocada, ter as cores modificadas, ter som inserido, sem contar a possibilidade de manipulação no momento da visualização.

O Mistério de Oberwald, 1981, de Michelangelo Antonioni

O cinema começou o processo de incorporação das imagens digitais também através da sua utilização apenas em determinadas partes dos filmes, geralmente para fins de efeito especial. Comumente se atribui ao cineasta britânico Peter Greenaway, um entusiasta da experimentação no cinema, a iniciativa do uso abundante de processos digitais em um filme, no caso, A Última Tempestade (1991). Porém, na época, o mesmo problema do filme de Antonioni persistia, isto é, para ser exibido no cinema era necessária a transferência para a película. Com o desenvolvimento vertiginoso dos equipamentos digitais, em especial na questão do desaparecimento do suporte, uma vez que a imagem torna-se processual, sendo armazenada em memórias digitais, o movimento de abandono da película em prol do digital foi definitivamente concluído nas primeiras décadas do século XXI. Hoje, os filmes rodados em película representam um pequeno nicho das produções.

Vários aspectos poderiam ser ressaltados em relação à digitalização da imagem, como, por exemplo, o desaparecimento do suporte, a questão da interatividade, a possibilidade de se trabalhar em rede e em tempo real, a eliminação da distinção entre original e cópia, uma vez que as cópias digitais não oferecem “perda” em relação a um “original” etc. Porém, o que mais nos chama atenção aqui, uma vez que nosso assunto é o realismo, é a possibilidade praticamente infinita de manipulação da imagem digital. A digitalização, ao reduzir a imagem ao seu elemento mínimo, o ponto, permite a produção do que se convencionou chamar de “realidade virtual”, isto é, a construção de mundos paralelos aonde é possível fabricar imagens sem nenhum referente no mundo real. A imagem digital é uma simulação e, portanto, completamente autorreferente, o que não quer dizer que ela não possua nenhuma ligação com a realidade, mas apenas que ela não é mais a representação de realidades visíveis preexistentes. Segundo o francês Edmond Couchot, artista e teórico das artes digitais, a imagem digital não representa mais a experiência sensível, mas a experiência possível, o que nos coloca uma importante questão, pois, se por um lado, em última instância, a imaginação do artista passa a ser a fronteira entre o possível e o impossível, por outro lado, há sempre o perigo da imagem virtual, ao perder o referencial do real, apenas reproduzir convenções ideológicas preestabelecidas. Especificamente com relação ao cinema, podemos afirmar que se a ferramenta do digital for usada meramente para copiar modelos hegemônicos do realismo, da verossimilhança e da identificação com protagonistas, ou ainda, apenas para provocar respostas sensório-motoras, como num videogame, o cinema digital em nada se diferenciará do cinema “tradicional” e a questão da relação entre cinema e realismo corre o risco de ficar restrita ao enfoque tecnológico.

Mas um dos aspectos mais fascinantes do cinema é que ele é, antes de tudo, pensamento, o que faz com que as inovações tecnológicas acabem sempre sendo incorporadas pela discussão da linguagem cinematográfica e seus conceitos. Sem dúvida, a revolução tecnológica desencadeada no final do século XX e consolidada nessas primeiras décadas do século XXI é um dos marcos mais importantes no debate sobre o realismo no cinema, contudo, também no âmbito do discurso, ou seja, da narrativa, a década de 1990 estimulou intensos debates. Mas vamos deixar essa parte para o próximo texto.