Por  Nomi Stolzenberg

O processo de confirmação de Amy Coney Barrett colocou em foco não só a provável fé da juíza da Suprema Corte como também a construção religiosa da própria corte.

Se for nomeada, Barrett será a segunda católica em sequência a chegar à mais alta instância da justiça dos EUA e a terceira nomeada por Trump a ser favorecida pela direita religiosa.

Como um acadêmico que estudou a intersecção entre fé e lei, eu tenho conhecimento de que a religião sempre desempenhou um forte papel na composição da Suprema Corte dos Estados Unidos. A natureza particular dessa influência, no entanto, se modificou ao longo do tempo. Nas últimas décadas ela tem sido formada por conservadores de diferentes crenças, construída como parte de uma tradição judaico-cristã mítica, se fundindo em torno de uma agenda em comum.

Reduto dos protestantes

Nos primeiros 190 anos de existência, de 1790 a 1980, a divisão religiosa que definiu a corte era denominacional — em vez de ideológica — por natureza.

Dos 101 homens nomeados para a Suprema Corte nesse período — não houve mulheres até 1981 —, 90 eram protestantes, cuja maioria era afiliada às principais igrejas.

Em contrapartida, houve somente seis católicos, iniciando com Robert Taney, nomeado pelo presidente Andrew Jackson em 1836. Este número aumenta para sete, se incluirmos o juiz Sherman Minton, que se converteu ao catolicismo após deixar a cadeira em 1956.

O primeiro judeu na alta corte foi o aclamado Louis Brandeis, conhecido por sua consciência cívica, que recebeu a nomeação por Woodrow Wilson em 1916. Ao todo, houve cinco juízes judeus durante o período até 1970.

Talvez a indicação mais forte da hegemonia do protestantismo durante os anos iniciais da corte seja o quão pouco ela era questionada. A nomeação de alguns poucos juízes não protestantes não alterou muito a figura religiosa da corte.

Os primeiros não protestantes, o chefe de justiça Taney e Edward Douglass White, nomeado em 1894, eram ambos católicos romanos, e cada um ocupou a cadeira como os únicos não protestantes. Ainda que não tenham escapado da intolerância anticatólica, que perdurou como uma característica da cultura protestante estadunidense pelo menos até a eleição de John F. Kennedy, sua religião não era, em grande parte, um problema.

O mesmo não pode ser dito sobre o primeiro juiz judeu da corte. Brandeis, de fato, aumentou as objeções com base em sua religião, e historiadores do direito já haviam identificado há muito tempo um forte cheiro de antissemitismo nas críticas levantadas contra Brandeis. Por exemplo: William F. Fitzgerald, um Democrata conservador de Boston, escreveu a respeito da nomeação de Brandeis: “O fato de um sujeito pegajoso desse tipo, por conta de sua suavidade e intriga e seu instinto judaico, poder ser nomeado à Corte deveria ensinar uma lição objetiva aos estadunidenses.”

Contudo, a nomeação de Brandeis estabeleceu uma tradição de um “assento judaico” identificável na Suprema Corte, ocupado por homens como Benjamin Cardozo, cuja posse se sobrepôs brevemente à de Brandeis, e o terceiro juiz judeu, Felix Frankfurter, nomeado em 1939. Ela durou até o final de 1960, quando o judeu Abe Fortas foi forçado a renunciar devido a um escândalo ético. Ele foi substituído por um metodista, Harry Blackmun, mas somente após duas tentativas sem sucesso de Richard Nixon em nomear segregacionistas comissionados para a corte.

Não haveria nenhum judeu na Suprema Corte de 1969 até 1993, quando o presidente Clinton nomeou Ruth Bader Ginsburg.

Falta de diversidade religiosa

A ideia de um “assento judaico” identificável e, igualmente, de um “assento católico” único — ocupados por juízes da estirpe de Pierce ButlerFrank Murphy e, finalmente, William Brennan — refletiu o grau de aceitação social que ambos católicos e judeus tinham alcançado. No entanto, também acentuou uma quase falta total de reconhecimento de outras tradições religiosas — nunca nenhum muçulmano, hindu ou ateu autoproclamado se sentou na mais alta corte da nação, embora Cardozo fosse um agnóstico declarado.

Ela também refletiu a compreensão, então difundida, de identidade religiosa como sendo a base primária para se afiliar a uma denominação religiosa em particular.

Ascensão da direita religiosa

Isto mudou no final dos anos 1970 em meio a um movimento mais amplo dentro da religião e da política.

Antagonismos de longa data dentro de cada tradição religiosa — entre fundamentalistas e modernistas — eram, agora, reformados para colocar em oposição conservadores religiosos de diferentes denominações e liberais. Isto levou à mobilização de uma aliança política forjada, a princípio, entre protestantes evangélicos e conservadores católicos, mas que, ao longo do tempo, se ampliou para incluir mórmonsjudeus ortodoxos e membros da igreja ortodoxa oriental. Esta aliança ficou conhecida como a direita religiosa.

O surgimento e a crescente força da direita religiosa, que considera remover a religião da esfera pública uma ofensa à fé, tem tido grandes ramificações na Suprema Corte, o que levou a uma campanha vigorosa de substituição de liberais reconhecidos no judiciário por juízes que compartilham da visão teológica da direita religiosa.

Isto tem ocasionado o que eu considero como a segunda era da composição religiosa da Suprema Corte. Organizações como a Federalist Society, um grupo de direito conservacionista fundado em 1982, e a American Center for Law and Justice, fundada pelo televangelista Pat Robertson, têm tido um sucesso crescente na influência de nomeações de juízes conservadores no âmbito da religião.

Aparentemente, a denominação religiosa de um juiz não tem feito muita diferença. O que importa são as visões que tem sobre religião e o estado. Assim como Rod Dreher, um líder respeitado da Direita Cristã, colocou recentemente: “O melhor pelo que os cristãos podem esperar é que os juízes e os legisladores possibilitem que nós vivamos nossas vidas como cristãos completos, mesmo frente à esfera pública.”

Isto, mais do que qualquer outra coisa, explica o apoio ferrenho dos evangélicos para com os inúmeros católicos conservadores nomeados desde 1986: Antonin Scalia, Kennedy, Clarence Thomas, John Roberts, Samuel Alito e Brett Kavanaugh, sem mencionar Neil Gorsuch, criado como católico, mas que agora frequenta uma Igreja Episcopal.

Também serve para explicar a oposição da direita religiosa ao juiz Sotomayor — católico de criação, mas político liberal.

Nessa época, somente outros quatro juízes foram nomeados: Ginsburg, Stephen Breyer e Elena Kagan — todos judeus não ortodoxos na ala liberal da corte — e David Souter, o último dos episcopais até a chegada de Neil Gorsuch.

Corte desigual

Os conservadores religiosos têm sido extremamente eficientes nos últimos anos em conseguir a nomeação de juízes que aderem à sua teologia política conservacionista.

Se a nomeação de Amy Coney Barrett se efetivar, como provavelmente irá, ela se tornará a oitava nomeada a crescer no catolicismo desde a ocupação de seu mentor, o juiz Scalia, e o sétimo membro da atual corte a ser criado como católico.

Mas, mais ainda, ela se tornará o sexto membro cristão conservador da corte, indo contra uma ala de liberais reduzida a um católico e dois judeus — mas todos — juízes seculares.


Traduzido do inglês por Gabriela Assis Santos / Revisado por Isabela Gonçalves

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