Entrevista com uma líder da Greve de strippers de Portland sobre o movimento crescente por tratamento igualitário e melhores condições de trabalho para dançarinas.

Por April M. Short

 

Em meio aos protestos do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), que explodiu no mundo todo logo após a morte de George Floyd por policiais em Mineapólis no dia 25 de maio, manifestantes em Portland, Oregon, carregavam cartazes com mensagens como “Sem Justiça, sem bundas” e “Não vamos nos apresentar sem reforma”. A Greve das strippers tem como foco expor práticas de trabalho racistas e pedir o tratamento igualitário de dançarinas negras e não brancas nos diversos clubes de strip-tease de Portland. A greve local cresceu a ponto de se tornar um movimento trabalhista por justiça racial nacional, assim como melhores condições para todas as dançarinas de clubes de strip-tease do país. Dançarinas negras estão na liderança, mobilizando o novo movimento trabalhista e desconstruindo estereótipos e tabus pelo caminho.

O ambiente problemático dos clubes de strip que dançarinas negras e outras não brancas de cor tiveram que enfrentar por anos, de acordo com o movimento, inclui uma grande quantidade de preconceitos raciais velados, como a proibição de ouvir hip-hop ou a existência de um local chamado “clube de rock and roll”, o qual reforça uma certa estética que tem como efeito afastar dançarinas negras e outras não brancas. Além disso, existem outros comportamentos mais aceitos, como clubes que contratam principalmente dançarinas brancas, que ganham mais e recebem os melhores horários. Essas e outras tendências têm se espalhado por toda a indústria dos clubes de strip e até há alguns meses receberam pouca resistência, em grande parte por medo de retaliação entre as dançarinas. A Greve de strippers de Portland, contudo, chamou a atenção da mídia para essa questão.

Cat Hollis diz que a Greve de strippers e o movimento paralelo que ele inspirou expõem e buscam enfrentar as realidades incômodas que, até então, eram apenas discutidas entre as dançarinas no camarim ou em tópicos fechados nas redes sociais. Hollis é uma dançarina negra de Portland e fundadora da Haymarket Pole Collective, que é a principal força centralizadora por trás da Greve de strippers. O coletivo, que é composto por dançarinas, pede por “políticas proativas e tratamento igualitário para trabalhadoras negras e indígenas, facilitando uma justiça restaurativa na indústria de entretenimento adulto”. A Haymarket Pole Collective busca proteger os direitos trabalhistas das dançarinas que pertencem a grupos marginalizados, incluindo dançarinas de cor, queer e/ou com alguma deficiência.

Hollis diz que lutar com garra para proteger aquelas que são mais vulneráveis dá força a toda a indústria de dançarinas. Como relatado em detalhes por Iman Sultan à ZORA, as exigências da Greve das strippers incluem condições de trabalho mais seguras, salários justos e proteção contra abuso sexual. Sultan escreve:

“Mesmo que as strippers sejam o entretenimento principal de um clube de strip-tease, a maior parte delas são trabalhadoras independentes e pagam taxas de palco para se apresentar. Como resultado, não têm garantia de segurança, salário fixo, plano de saúde ou recursos contra assédio sexual, perseguições e estupro encarados no trabalho. E para mulheres negras, os riscos do trabalho sexual aumentam com o racismo”.

Nos EUA, Portland tem a maior quantidade de clubes de strip-tease per capita, e carrega uma reputação positiva e liberal em relação ao sexo. Contudo, como a Greve de strippers e a Haymarket Pole Collective revelaram nos últimos meses, existem preconceitos raciais preocupantes, políticas de discriminação racial e falta de treinamentos de sensibilidade racial e cultural em muitos clubes de Portland.

A Haymarket Pole Collective tem implementado gradualmente treinamentos de sensibilidade cultural, liderados por dançarinas de cor em parceria com clubes locais para reforçar as demandas da greve. Hollis diz que participa de reuniões on-line regularmente com dançarinas e coletivos organizadores que surgiram em todo o país em solidariedade a elas e com intenções semelhantes para suas respectivas indústrias. Os grupos estão trabalhando em conjunto para agilizar os processos de treinamento de sensibilidade cultural.

April M. Short, do Independent Media Institute (IMI), conversou com Hollis sobre a Greve de strippers, seu impacto na indústria do strip-tease e os objetivos e planos a longo prazo de um movimento muito maior pelos direitos das dançarinas.

A transcrição da entrevista a seguir foi editada por conta de tamanho e clareza.

April M. Short: – Obrigada por falar comigo, eu sei que você esteve muito ocupada dando entrevistas e falando sobre tudo que está fazendo. Espero ouvir de você sobre os seus planos futuros e ideias a longo prazo. E também sobre o que já aconteceu devido à Greve de Strippers, e o que não aconteceu; o que mudou?

Cat Hollis: – Eu gosto de dizer que a Greve de Strippers é um verbo, sabe? E o substantivo por trás da greve de strippers é a Haymarket Pole Collectve, pelo menos em relação a esta greve específica [em Portland]. O que tem sido muito legal, conforme crescemos e continuamos influenciando ações, é que estamos encontrando coletivos autônomos de dançarinas em todo o país e estamos colaborando muito com eles.

Uma grande parte de mim [se questiona]: “Existem outras pessoas fazendo esse trabalho? Estamos sobrepondo as pessoas que trabalharam duro por anos?” O que eu percebi é que mesmo que existam muitos coletivos anônimos de dançarinas, existem pouquíssimos coletivos liderados por negras ou focados em pessoas negras, trans e indígenas.

Eu estava em uma reunião com muitas dançarinas diferentes de todo o país, e mesmo que muitas das dançarinas fossem pessoas de cor, foi a missão do Haymarket Pole que trouxe à tona a necessidade de destacar as lutas das colegas indígenas, trans e negras. Foi muito legal poder conhecer esse grupo… e elas perguntavam se estávamos prontas para fazer um esforço colaborativo. Eu fiquei, tipo, eu estou pronta, e vocês precisam pôr no papel que estão tentando proteger essas comunidades vulneráveis juntamente com a nossa comunidade. E elas disseram, “Claro, claro”.

Mas eu acho que “claro” é o que acabou deixando essas comunidades para trás. Nós assumimos que esses direitos são inalienáveis. E se o poder não fosse real [então a inclusão seria um tópico], “claro”, mas o poder é real. Foi ótimo poder dar voz e dar peso às vozes das pessoas dessa comunidade que estão marginalizadas, além de serem profissionais do sexo. Isso foi muito bom.

– Eu acho que é um marco da era em que nos encontramos. As pessoas estão percebendo que, para que qualquer coisa mude, temos que dizer a coisa ao invés de apenas assumir que está implícito.

Sim. E um pouco do que eu aprendi com esse processo foi que a falta de uma língua ativa que previna a discriminação já é de fato uma discriminação. E isso em nível nacional.

Existem tantos direitos pelos quais já lutamos no passado que não estão sendo respeitados no presente. Uma das minhas descobertas preferidas é que o Equal Employment Opportunity Commission (Comissão de Oportunidades de Trabalho Igualitárias) diz que se não há uma língua ativa prevenindo futuras discriminações, não apenas de resposta, mas uma língua proativa que proteja aquelas pessoas mais vulneráveis, isso já é inerentemente discriminatório. É tão importante, como ponto de partida, começarmos a incluir isso na nossa língua.

… Eu tenho falado muito sobre fomentar a cultura do consentimento, e acho que uma maneira de as [pessoas], especialmente mulheres brancas, entenderem com mais facilidade porque essas coisas são importantes é pensarem sobre a cultura do consentimento. Consentimento é simples como escrever FRITAS [do inglês FRIES]. Ele é dado livremente [freely given], é reversível [reversible], informado [informed], com vontade [enthusiastic] e específico [specific]. Uma profissional do sexo ainda pode ser estuprada se o seu consentimento não for completamente informado, com vontade ou específico, certo? E isso se você estiver prestes a ter um encontro sexual. A mesma coisa funciona se você quiser tocar a barriga de uma mulher grávida ou o cabelo de uma pessoa negra.

De maneira semelhante, penso que é importante que nós, como aliados, tenhamos consentimento das comunidades que estamos ajudando. Nós devemos buscar um consentimento com vontade, específico, informado e reversível. Elas querem a nossa ajuda? Do que elas precisam? Acho que as pessoas dessas comunidades têm uma ideia melhor do que seria um resultado ideal. É importante colocá-las em posições de liderança e em um lugar onde elas possam defender a si mesmas, onde elas liderem as mudanças e determinem as oportunidades.

Uma coisa em que penso constantemente é como as pessoas estão, tipo “Ah, eu não acredito que dançarinas estão fazendo isso”. E eu fico, tipo “Ok, mas se você nos vê como últimos da cadeia, como conseguiríamos fazer esse trabalho, gritar por nossos direitos enquanto você ainda luta contra essa ideia?”

Eu digo que nós já cansamos de ensinar as pessoas a pularem os obstáculos que estão lá há anos. As pessoas dizem para as comunidades “Olha, você não está se esforçando o suficiente. Nós entendemos que as dificuldades existem, mas vamos te ensinar como pular mais alto”. E é tipo “não, cara!” Vamos tirar essas dificuldades do caminho. Conforme seguimos em frente, vamos encontrando esses problemas sistemáticos e quebrando o “teto de vidro”, por assim dizer. E decidimos que, toda vez que o encontrarmos, vamos derrubá-lo para que ele não esteja lá para as outras pessoas.

Acho importante que as pessoas escolham de onde elas querem que as dificuldades sejam retiradas. Porque eu acho que isso nos remete a lá atrás, quando os [colonizadores europeus brancos] davam cobertores para os nativos americanos [que foram contaminados com varíola pelos colonizadores], por exemplo. Intenção e resultado são, no geral, muito diferentes, e muitas das nossas intenções são inconscientemente prejudiciais para essas comunidades. Os cobertores não são um bom exemplo disso, pois ficaram totalmente associados [à propagação da varíola], mas, veja bem.

– Eu acho que você compartilhou um meme ou post no Instagram sobre uma ideia parecida: receber um “lugar à mesa”. Dizia algo do tipo: “Nós não queremos sentar à sua mesa; nós preferimos uma mesa diferente”.

Isso, e nós sempre tivemos uma mesa, apesar da ideia de vocês de “vamos construir uma mesinha ao lado da nossa”. Nós dizemos “Não, obrigada, nós temos a nossa mesa”. E vocês [dizem], “Não, não, não. A nossa comida é muito boa”. E nós ficamos, tipo “Estou te dizendo que você está espetando o garfo na minha mão há 500 anos”. E as pessoas ainda [dizem]: “Eu não entendo, a nossa mesa é ruim?” E nós respondemos “Bem, você já me envenenou à mesa umas seis vezes. Por que eu iria querer me sentar aqui?”.

Existe um banquete de oportunidades disponível que pessoas de cor estão tentando construir há anos. E ele tem sido derrubado de novo e de novo de várias formas. Acho que é realmente importante pensar que, quando ajudamos essas comunidades, nós não estamos determinando o seu resultado; nós estamos expandindo as oportunidades de escolha dos próprios resultados.

Nem todas as pessoas são iguais, e elas não querem as mesmas oportunidades.

– Mudando um pouco de assunto, eu gostaria de ouvir brevemente sobre os treinamentos de sensibilidade cultural que você está organizando, liderados pelas dançarinas.

Sim, nós estamos oferecendo os treinamentos de sensibilidade aos clubes para que os apliquem à sua equipe. E, recentemente, ajudamos profissionais do sexo a realizarem esses treinamentos.

Eu, por exemplo, tenho momentos muito difíceis. Eu irrito muito pessoas brancas porque digo coisas como “pessoas brancas não prestam”. E daí alguém vem e diz “Mas e eu?”, e eu digo “Ah, tudo bem, você não tem problema”.

– Certo, algumas pessoas levam para o lado pessoal ao invés de olhar para o motivo ou contexto.

E as pessoas que não levam para o lado pessoal já estão no caminho em prol de ações antirracistas. Então, como abordamos as pessoas que não entendem e estão confusas? Confusão leva à raiva…

Estou tendo que aprender a dizer coisas, como: “Sim, Greg, todas as vidas importam, mas nós estamos tentando fazer isso e isso…” Sabe? São habilidades que estou aprendendo. Nós temos a sabedoria de levar a justiça até as nossas comunidades; só precisamos garantir que as pessoas tenham a habilidade de escutar e entender [quando elas lideram esses treinamentos]. Porque esses são os nossos direitos, não é um jogo e não é uma opção.

– Você pode me falar mais sobre em que parte vocês estão do processo de treinamentos de sensibilidade cultural para as equipes dos clubes e como eles estão indo?

Sempre temos treinamentos. Temos apoio fiscal do YWCA of Greater Portland, o que significa que somos uma organização sem fins lucrativos. Eles têm feito os treinamentos nos clubes. Temos mais três clubes agendados e no processo de realizar esses treinamentos para dar um basta no racismo, em como abordar uma situação de ameaça racial.

Originalmente os clubes diziam: “Não precisamos disso porque não somos racistas.” Bem, quando Dominique Dunn, um homem negro, foi baleado do lado de fora de um clube de strip em Portland [em julho] por um cara branco, acho que aquilo trouxe à luz a ideia de que não importa se o seu bartender, seu gerente ou sua equipe são racistas; no clima político em que nos encontramos, todos vamos, querendo ou não, ter que lidar com tensões crescentes relacionadas à raça. Não importa qual é o seu ponto de vista quanto à natureza progressiva da liberação negra, todos conseguimos ver os benefícios da redução de conflitos em nossas comunidades. Aprender como abordar o problema é muito importante.

– Voltando a algo que mencionamos anteriormente, houve algum retrocesso ou dificuldade significante ao abordar as pessoas durante os treinamentos, e/ou você está tendo um retorno de algo novo ou inesperado da comunidade no geral?

Bem, parte do que desacelerou as atividades na rua foi o aumento dos casos da COVID-19, mas isso nos ajudou a sentar e perguntar a nós mesmos: nós somos capazes de dar o que estamos pedindo a esses clubes? Estamos aprendendo como fazer isso. Por enquanto, estamos pedindo aos clubes para fazerem os treinamentos, e nós também estamos participando. Pedimos aos clubes que tenham políticas contra discriminação. Bem, agora estamos formando a nossa própria organização sem fins lucrativos, então, como uma política modelo deve ser? Estamos trabalhando com um comitê de dançarinas de cada clube para ajudar a desenvolver uma política modelo para todos.

Uma coisa surpreendente para mim é que sinto que muitas dançarinas estão hesitantes de participar dos pedidos de conformidades com a lei por conta da sua falta de participação ativa em seus locais de trabalho. E como nós fazemos justiça para esses grupos? Acredito que a grande mudança que temos visto é um padrão de educação dos trabalhadores autônomos querendo entender o que o seu contrato significa e quais são os seus direitos.

Uma parte do retrocesso, sinto que vem da falta de comunicação, que é o grande problema. No nosso primeiro comício, por exemplo, os locais diziam que não entendiam os nossas demandas. Tipo assim, “Como?”.

Acho que o problema real que surgiu com isso é que os donos e gerentes desses clubes de strip estão tentando dizer que eles não sabiam de nada. E a questão é, como uma dançarina às 2 da manhã deveria receber auxílio relacionado a problemas no ambiente de trabalho, à discriminação, a clientes e coisas desse tipo se foi necessário 9.000 de nós para entrar nos clubes? Se eles não se importam que tenha 300 pessoas paradas do lado de fora dos clubes com cartazes, nós entregamos nossas demandas, mandamos por e-mail, pelo correio, e mesmo assim [os gerentes dos clubes] ainda não sabem? Então a grande questão é: se você não sabe, isso não é um problema?”.

– Claro, a essa altura, como eles podem não saber?

Sim. E se você não nos ouve agora, como queria que as coisas estivessem indo perfeitamente bem antes de tudo isso? Se você realmente não nos ouviu, talvez tenha muitas outras coisas que você também não ouviu.

O que me pegou de surpresa foi a receptividade de alguns dos gerentes para melhorar seu negócio. Eu realmente me surpreendi com o apoio, e tem sido incrível recebê-lo. Não esperava por isso.

Outra coisa que eu também não esperava foi que, mesmo com serviços jurídicos pro bono, mesmo com muitas oportunidades de treinamento, ainda existe uma atmosfera de medo de retaliação na nossa comunidade. Acho que isso é algo que precisa acabar, pois se alguém está com medo de dizer não, como vão dizer sim pelo que querem?

– Eu ia te perguntar sobre esse potencial medo de retaliação, porque, em qualquer segmento de trabalho, é difícil se opor ao chefe, não importa quem você seja, e neste caso, existem mais camadas de dificuldade enfrentadas pelas dançarinas e pelas pessoas de cor, acima de tudo.

Exatamente. E, apenas admitindo que existe melhora isso se torna possível. Gostamos de pensar que nós [em Portland] somos as melhores, porque temos a maioria dos clubes e muitas oportunidades, mas a pergunta é, isso é o suficiente?… No começo as pessoas estavam, tipo “Pelo menos vocês podem usar tênis”. Ou o comportamento era de que pelo menos nós podemos fazer certas coisas. E eu fico pensando, isso não é suficiente. Você acha que aumentar os seus privilégios vai te fazer perder algo? Você acha que defender os seus direitos de indenização de alguma maneira vai te fazer renunciar às condições que você tem?

– Você pode falar um pouco mais, de maneira geral, do porquê os direitos de profissionais do sexo e strippers são relevantes e importantes dentro do movimento BLM e para a toda a sociedade?

Acho que a coisa mais importante que as pessoas podem perceber, de qualquer tipo de comunidade vulnerável levantando uma questão, é que comunidades marginalizadas fazem parte da nossa comunidade. Eles só estão à margem. Se temos impasses ou problemas dentro das nossas comunidades, as primeiras pessoas a vê-los são as pessoas excluídas. E isso significa que essas coisas chegarão até nós.

As pessoas estavam entrando em pânico [com os manifestantes] nas ruas sendo pegos e jogados dentro de veículos não identificados. E isso é algo que imigrantes e as comunidades nativas e negras já conhecem há séculos. Ao acabar com os problemas das nossas comunidades marginalizadas, é possível elevar a comunidade como um todo. Pessoas negras são uma comunidade marginalizada, e junto com ela existem muitas outras comunidades vulneráveis. Pessoas com deficiência, pessoas trans, profissionais do sexo, são todos vulneráveis; os perigos são ainda maiores [para elas]. Se podemos dizer que os perigos são ainda maiores, os benefícios também serão se reduzirmos as ameaças para essas comunidades. Se pudermos fazer isto, poderemos ver quão rapidamente as mudanças serão efetivas para toda a comunidade. É uma pena que as pessoas não percebam até ser tarde demais, ou que eles venham ajudar depois que uma comunidade já está em crise. O que esse movimento realmente está trazendo à tona é a necessidade de abordar proativamente esses problemas antes que eles causem uma crise, antes que eles causem algum dano.

Por enquanto, não temos serviços de auxílio, e quando a COVID-19 surgiu, essas comunidades vulneráveis ficaram ainda mais expostas ao aumento de ameaças. Portanto, se pudermos melhorar o nosso sistema de saúde, se pudermos melhorar o nosso sistema de serviço social, se pudermos elevar as comunidades, trazer terapia para as pessoas e os serviços sociais de que elas precisam, podemos reduzir as ameaças de maneira que, quando uma comunidade estiver em crise, haverá muito menos com que se preocupar.

Uma das coisas importantes que aprendi com o Black Lives Matter é que todas as vidas negras importam. Não podemos esquecer a nossa família trans, nem a nossa família de deficientes e nem as famílias indígenas. Porque essas são as pessoas que andam à margem. E conforme falávamos antes, estamos tentando arranjar um lugar à mesa para elas, e, até certo ponto, por que não as proteger onde elas estão?

– No site da Haymarket Pole Collective tem um trecho que diz: “Nossa existência sempre foi contracultura, lucrando com o olhar masculino e contando com ajuda mútua. Em um esforço para aliviar as pressões sistemáticas do status quo, agora damos as mãos, afivelamos o salto e dançamos juntas como uma frente unificada”. Eu adoraria ouvir um pouco sobre essa contracultura e ajuda mútua. Quais são as maneiras que a comunidade tinha, e ainda tem, de ajudar umas às outras e como ela faz isso? E por que isso se fez necessário?

Acho que uma das coisas de que temos mais orgulho na nossa cultura é que o corpo humano foi monetizado de várias maneiras através do trabalho. Recentemente tive uma conversa [com a minha mãe] em que ela me disse: “Eu não entendo como posso suportar o fato de você vender o seu corpo”. E eu fiquei, tipo, “nossa, isso é contracultura? Porque no sistema capitalista, estamos todos vendendo nossos corpos em algum momento, seja quebrando as costas em um estoque da Amazon ou fazendo um boquete na esquina. Existe trabalho sexual de sobrevivência, certo, onde as pessoas estão trabalhando para sobreviver, mas existe sobrevivência [em] muitos outros tipos de trabalho.

[Esse movimento] é sobre reivindicar os meios de produção. Nós estamos aproveitando os meios de produção onde nossas bundas fazem esses clubes funcionarem. E no que diz respeito à profissão mais antiga do mundo, não entendo por que as pessoas acham que ela não vai chegar a lugar algum. Se observarmos como direcionar os problemas apresentados pela cultura patriarcal e capitalista — porque, basicamente, se algo não funciona de acordo com o sistema em que ele existe, ele é expulso —, então se olharmos para os sistemas que eles já expulsaram, conseguimos ver como desmantelar esse sistema. Nós queremos ser a pedra na engrenagem dele. Portanto, se estamos determinados a sermos essa pedra, nos colocaremos no meio das engrenagens de qualquer jeito.

Especialmente a respeito da ajuda mútua, acho que Tennessee Williams resumiu bem: “Eu sempre dependi da boa vontade de estranhos”. Profissionais do sexo têm financiado coletivamente seu aluguel de 20 em 20 dólares muito antes de existir o GoFundMe. Acho que temos várias habilidades únicas que podem beneficiar as nossas comunidades, e porque fomos deixados de fora da discussão, não fomos capazes de resolver problemas que afetam a todos, incluindo a nós mesmos. Então estamos usando essa borracha, usando essa fricção, para criar calor e gerar uma faísca de mudança para todo trabalho. Estamos cansadas de gotejar, queremos transbordar.

– Você poderia falar um pouco dos desafios que strippers e profissionais do sexo enfrentam ao tentar acessar serviços sociais básicos no caso de desemprego?

[Dançarinas] não podem ser consideradas [desempregadas], porque uma grande parte é autônoma. [Outra] parte do problema é que muitas dançarinas têm dificuldade de providenciar a documentação do seu trabalho. Por exemplo, se eu tento me inscrever para um auxílio do governo como autônoma, preciso ter uma cópia do meu contrato, e a maioria dos clubes não irão te dar uma cópia do seu contrato. Então, quando eu tento ligar para o clube para que eles confirmem o meu contrato ao Auxílio Desemprego na Pandemia (Pandemic Unemployment Assistance – PUA), [uma vez que] estou participando da greve, eles dizem que eu nunca trabalhei lá.

É um problema que strippers enfrentam há muito tempo: assinamos um contrato e não recebemos uma cópia. Acontece que o contrato era de apenas três meses, e dois anos depois de trabalhar sem parar, turno após turno todos os dias, há uma invasão. Eles encontram uma camisinha na sua bolsa. E o clube diz “na verdade ela não tem um contrato”. Daí você fica como? Eu assinei um contrato. Isso foi há três anos, e eles dizem que sim, mas que esse contrato expirou.

E também, por exemplo, quando eu estava alugando uma casa em Mineápolis, eu dizia que era garçonete. Do contrário, eles não iriam me deixar alugar. Na verdade, é ilegal discriminar pessoas, no caso de habitação, por conta do seu trabalho. Meu trabalho era completamente legal, mas era isso que eu precisava dizer. Então, você sabe, a partir de um momento isso se torna um problema de anonimato.

– E tudo isso faz parte do que a Haymarket Collective está trabalhando para mudar, não é?

Sim, e uma das demandas que estamos encorajando outros coletivos de economia a incluir é que gostaríamos que os clubes começassem a fazer a devida diligência quanto à documentação [em pauta]. Se você vai encerrar esses contratos, então você deveria dar uma justificativa por escrito. Porque, por alguma razão, todas as dançarinas negras são demitidas por conta de sua atitude… E então a pergunta se torna como você vai atrás da retaliação por discriminação quando não há documentação?

A regulamentação é uma bola de neve. Imaginamos que, se isto já está acontecendo, de qualquer maneira, gostaríamos de fazer parte disso, definindo como essa regulamentação devem ser, pois nesse momento ela não se aplica a nós, ela se aplica apenas aos donos dos clubes que ganham milhões de dólares por ano apenas com taxas de palco. E o ponto é, esses clubes não são nada sem nós. Até certo ponto nós precisamos aproveitar os meios de promoção , e dizer que sem as nossas bundas eles não ganham dinheiro. E então não teriam bebidas para vender nem taxas de palco.

Mesmo não tendo necessariamente o direito de retaliação como muitos empregados, nós temos o direito de trabalhar como quisermos. Se um clube não tiver linguagem proativa na sua política de discriminação, essas questões aumentarão a quantidade de dançarinas brancas e cis. Acabar com essas discriminações é superimportante para nos proteger como classe.

– Eu gostaria de ouvir só mais um pouco sobre os esforços de mobilização nacional. Você disse que se encontrou com um grupo de diferentes dançarinas de todo o país. Está acontecendo uma Greve de Strippers nacional. Como você vê o crescimento desse movimento e o que ele pode trazer futuramente?

Tenho chamado isso de biogênese, que é um termo científico para origem simultânea de vidas. Atualmente, em nosso cenário científico, dizemos que existiu um organismo de uma célula e ele se dividiu em dois, e então se desenvolveu em uma planta, e depois em um peixe e então saiu da água e se rastejou até a terra. E o que a ciência mostrou até agora é que se as condições para a vida forem propícias, ela surgirá em muitos lugares diferentes ao mesmo tempo. Eu realmente acredito que as condições para a mudança estão corretas. Existem tantos coletivos que começaram completamente sozinhos, e agora estamos nos encontrando, ou existem coletivos que estão vendo as ações acontecerem pelos seus próprios colegas;  e vendo o poder deles, e reivindicando seu próprio poder.

É maravilhoso ver esses grupos colaborarem. Talvez não tenhamos as mesmas leis ou as mesmas práticas em nossos clubes, mas muitos dos problemas são os mesmos. Então, podemos conversar sobre quais técnicas estão funcionando, quais não estão, e o que queremos. Temos uma lista de demandas de quatro ou cinco estados diferentes. Agora temos um braço do Haymarket em Chicago, que saiu das nossas reuniões nacionais que acontecem aos domingos.

Fico animada toda vez que vejo a rebeldia, o empoderamento e as demandas por coisas melhores acontecendo por aí. Estamos pedindo por isso há tanto tempo. Dançarinas eram obrigadas a ficar em apenas um clube, e na verdade nós não temos que escolher só um. Nós não precisamos trabalhar em clubes que são uma merda. Acho que a solidariedade tem realmente funcionado.

– Sim, e como você estava dizendo, parece que há um momento agora de evoluções acontecendo em todos os lugares espontaneamente, ao mesmo tempo.

Exatamente. Porque as condições são propícias, mas não se trata de coincidência ou de um acidente. É o barulho da pedra na engrenagem. Fomos todos arrastados para dentro, e agora dizemos “bem, na verdade, que se foda essa máquina. Vamos nos rebelar contra ela”. Isso não é o que queremos… Acho que isso realmente é uma biogênese. Uma coisa é que as condições são favoráveis e outra, é que elas não são únicas. As coisas que estão acontecendo [aqui em Portland] estão acontecendo por todo o país.

Esse artigo foi produzido por Local Peace Economy, um projeto do Independent Media Institute.


April M. Short é editora, jornalista e editora e produtora de documentários. Ela é colaboradora do Local Peace Economy, um projeto do Independent Media Institute. Anteriormente, ela foi editora chefe no AlterNet, assim como redatora sênior premiada do Santa Cruz, jornal semanal da California. Seu trabalho já foi publicado no San Francisco Chronicle, In These Days, Salon e muitos outros.

 

Traduzido do inglês por Barbara Gândara /Revisão por Gabriela Assis Santos