OLHARES

 

 

“Got to give us what we want
Gotta give us what we need
Our freedom of speech is freedom or death
We got to fight the powers that be
Lemme hear you say
Fight the power”

“Nos demos o que queremos
Nos demos o que precisamos
Nossa liberdade de expressão é liberdade ou morte
Lutemos contra os poderes estabelecidos
Deixe-me ouvir você dizer
Enfrente o Poder”

(“Fight the Power” — Public Enemy — Carlton Ridenhour / Eric Sadler / Hank Shocklee / Keith Shocklee — 1989)

Meu pai, Kelé, tem uma brincadeira clássica para comparar os pretos norte-americanos ou britânicos em visibilidade ou ascensão social com os brasileiros: “o país deles é tão bom que as crianças já nascem e crescem falando inglês”. Meu pai é o rei de inúmeras coisas, sou suspeito, mas principalmente das piadas sutis, onde, se você não estiver atento ao assunto, passa batido. Ou você leva a sério, até entender que o caso, por vezes, é absurdo. Mas esta frase em especial corre, faz uma semana, em loop na minha cabeça. E por um motivo não tão engraçado. Mas volto a isso depois. O que me interessa agora é pensar se só os “gringos” aprendem inglês desde pequeno.

A língua inglesa, até a virada do século XX, nas ciências, dividia o espaço nas publicações científicas, que influenciavam o mundo com o francês e o alemão. Mas, com a entrada do século XX, o alemão decolou na frente e o francês partiu da Belle para a “não tão” Belle Époque. Após a segunda-guerra mundial, com a Alemanha sem os grandes cientistas judeus e socialistas — dentre tantos outros grupos perseguidos pelos governos nazifascistas — que migraram para países anglófonos, em especial Inglaterra e Estados Unidos, e da demorada reestruturação acadêmica, a produção científica em língua inglesa deu um salto e dominou as chamadas áreas do conhecimento nas academias.

A indústria cultural norte-americana, em especial o cinema e a música popular, deu um salto a frente no período do pós-guerra, ainda sendo, hoje, os grandes meios de propagação de ideais políticos e socioculturais deste país sobre os demais.

A língua traz toda uma identidade e construção sociocultural da nação que a utiliza. Por isso mesmo, a colonização faz com que, muitas vezes, as identidades de países que tinham outras línguas sejam apagadas, como seus cidadãos são apagados de seu território.

Sou do tempo em que era mais importante no Brasil falar inglês do que ter um diploma universitário (sendo pessoa não-preta), pensando no acesso ao emprego.

A minha infância e início da adolescência foi vivida durante o período de chumbo e, quando veio a “abertura democrática”, ainda perduraram valores de um país voltado para o “sonho americano”. E não era qualquer americano, mas da América que fala inglês. Os cursos de línguas particulares nos anos 80, eram em sua maioria voltados para o inglês norte-americano. Os ídolos do Rock no Brasil dos anos 60 e 70, se dividiam entre britânicos e norte-americanos. Mas, com os ritmos negros vindo “da América”, a influência passou a ser quase que exclusiva deste lado do atlântico. A música Black também mexeu com corações e mentes no Brasil, chegando tímida e sendo controlada por DJs brancos com acesso aos Long-Plays (LP) e com a orientação das rádios. Depois, primeiro no Rio de Janeiro, mas saindo do sudeste para outros espaços, o Soul chega pesado via discos de James Brown e outros nomes. Os DJs pretos assumem as pick-ups. As referências longínquas do Black Power e dos Black Panthers, chegam nos intelectuais pela referência política e, na maioria das pretas e dos pretos de subúrbio pela música, criando eventuais atritos e disputa de espaço e público com o Samba.

Nos bailes Blacks se popularizou o que chamamos de Embromation, onde quem não sabia falar inglês, cantava as músicas como as ouvia; a partir de outras referências, muitas vezes fonéticas, pedia as “melôs” (corruptela de “melodia”, simples e de fácil memorização) para o DJ. Colonização cultural pesada. Mas as pautas, mesmo identitárias, em língua inglesa, sejam por livros, jornais, música pop, tem maior visibilidade se vierem pela “língua global” ou “língua franca”.

O português no Brasil se afasta de sua matriz e contribui para renová-la. Seu povo cria cotidianamente inúmeros neologismos a partir dessa influência da língua do “neocolonizador”. E a dor do povo preto tem língua? A visibilidade desta dor tem language and speech com certeza.

Nossos “dialetos” locais, que criam sotaques diversos no país, interferem na empatia do povo brasileiro por desastres ocorridos no sul e sudeste, provocando maior mobilização do país para com essas regiões do que quando desastres acontecem mais ao norte. Um homem preto norte-americano é assassinado e leva pessoas às ruas em vários países nos diversos continentes. Três jovens inocentes são assassinados brutalmente no Rio de Janeiro, em data próxima. O norte-americano é acolhido aqui, mas no exterior ninguém sabe quem foi João Pedro.

#BlackLivesMatter é traduzido para #VidasNegrasImportam, mas nossas hashtags (como se chama em português mesmo?) de denúncia à opressão não se veem traduzidas.

Mas não se engane que nosso povo esteja traduzindo a revolta contra o “sonho americano”. O povo que botava fogo no canavial para o “Sinhô” apagar, que formou o Quilombo, que resistiu por um século e referenciou a luta identitária, que “Maleificou” e fragilizou a escravidão no Nordeste, ou que apontaram dos navios os canhões para acabar com a chibata dentre fardados, é o mesmo que desce do morro e fecha a pista, sem ordem de branco ou gringo, para dar o recado. Hoje, vai com máscaras, se expondo ao “inimigo invisível”.

O problema não é a tradução da revolta e nem é a tradição da revolta, mas a língua de quem domina.

Qual língua você fala, e de que lado você está?

Do que Luta contra o poder or who fight the power that be?


Este texto teve revisão crítica de Tayná Arruda e consultoria afetiva de Gloria Celeste de Brito