CINEMA

 

 

Nos primeiros cinquenta anos do cinema, a questão do realismo se concentrou entre os vetores realista e formalista (veja aqui). A partir da década de 1940, essa discussão vai avançar tendo como seu principal interlocutor o crítico francês André Bazin, um dos fundadores de uma das mais importantes publicações sobre cinema, a revista Cahiers du Cinéma.

Bazin desloca o eixo do debate sobre o realismo a partir de duas abordagens. Em primeiro lugar, ele traz a discussão do realismo para o campo da ontologia, ao aprofundar a questão sobre a relação do mundo real físico com sua instância representada nas imagens fotográfica e cinematográfica.

Diferentemente da representação pictórica, aonde mesmo quando um quadro é bem sucedido na reprodução de um objeto, ele sempre traz alguma coisa da mão do artista, a imagem fotográfica compartilha algo da realidade que representa, pois ela é produzida por um estímulo do próprio objeto da representação a partir da ação da luz em um material sensível, fator que, segundo Bazin, afastaria as interferências humanas do mecanismo de produção da imagem. A credibilidade da fotografia, em vista disso, residiria na sua objetividade, no fato de que ela é um traço de luz deixado por um corpo real, num tipo de representação que excluiria o homem e sua subjetividade.

Porém, o espaço fotográfico e o espaço cinematográfico têm naturezas diferentes. A imagem fotográfica, de acordo com Bazin, age como um molde ou máscara mortuária, ela congela espacialmente o passado do objeto. Já a imagem cinematográfica é uma modulação contínua do espaço e dos objetos que se movem no espaço. Nas palavras de Bazin: “O fotógrafo opera pela intermediação da lente, até o ponto em que ele capta, literalmente, uma impressão luminosa, um molde… O cinema realiza o paradoxo de se modular no tempo do objeto e de, também, captar a impressão de sua duração”. O cinema não se contenta apenas em conservar o objeto congelado no instante, “pela primeira vez a imagem das coisas é também a imagem da sua duração”. O realismo cinematográfico, portanto, engendra, além do aspecto espacial, o temporal e o filme se constitui como uma re-apresentação do mundo. A partir da preservação da integridade do espaço e tempo narrativo é que o cinema procura atingir o registro ontológico em sua plenitude. Mas é importante ressaltar que o filme não é uma cópia da realidade, as imagens na tela carregam algo do mundo em si, algo material, mas a câmera não é o único dispositivo do cinema, o projetor vivifica o traço de luz com sua própria luz e o filme é também algo transposto, transfigurado em outro mundo. O realismo cinematográfico, na verdade, reproduziria as “qualidades” da realidade, como um filtro.

Roma, Cidade Aberta (1945)

Aqui temos o gancho para passarmos para o segundo aspecto abordado no deslocamento efetuado por Bazin e que vai dizer respeito à relação do filme com o espectador. Quando dizemos que o realismo cinematográfico reproduz as “qualidades” da realidade é porque, segundo Bazin, ele capta os acontecimentos em sua duração única, em todo seu caráter indecifrável e ambíguo, um “cinema integral que dá a completa ilusão da vida”. Dessa ideia deriva, por conseguinte, a crítica de Bazin aos estilos de narrativas fragmentadas e muito pautadas pela montagem, como nos casos mais ilustrativos da indústria hollywoodiana e da Escola Soviética, uma vez que elas retirariam a essência realista do cinema, direcionando o olhar do espectador através da manipulação da técnica (vale destacar que Bazin não era “ingenuamente” contra a montagem, mas, para ele, a montagem deveria respeitar a unidade do espaço fotografado). A decupagem clássica e a montagem invisível imporiam uma única significação possível aos planos, enquanto o realismo cinematográfico demandaria uma participação maior do espectador no estabelecimento dos significados da imagem, como acontece na vida real.

Nesse sentido, o plano-sequência (sequência composta por um único plano, sem cortes) e a profundidade de campo (quando todos os objetos – do mais próximo à câmera ao infinito – estão em foco) seriam os grandes instrumentos do realismo cinematográfico, pois eles evitariam a fragmentação do real que ocorreria através da montagem. O plano-sequência apresenta os objetos em sua duração, enquanto a profundidade de campo não só respeita fotograficamente a unidade do espaço e a ambiguidade do real, mas também está na base da nova relação filme-espectador, ao colocar o espectador numa conexão com a imagem mais próxima à que ele mantém com a realidade, podendo, por exemplo, escolher em qual objeto centralizar sua atenção.

A partir do deslocamento efetuado por Bazin, a discussão sobre o realismo abandonou de vez o seu sentido mais primário, ou seja, do cinema como mera cópia da realidade e do mundo material como ele é. Em Bazin, o realismo tem um caráter ontológico, ao restituir a densidade e a presença dos objetos representados, e um caráter psicológico, que restaura ao espectador as verdadeiras condições da percepção, aonde o que importa não é a precisão da reprodução e sim a crença do espectador na origem da reprodução.

Bazin foi o primeiro crítico a perceber e a analisar a mudança fundamental que ocorreu no cinema nos anos 1940 e no pós-guerra, a separação entre o cinema clássico — “realista” — e o cinema moderno — “neorrealista”. Vai ser através das análises dos filmes do chamado neorrealismo italiano (aonde podemos destacar entre as obras mais emblemáticas, Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini; e Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica), que Bazin vai esboçar as características do cinema moderno. Já destacamos acima a questão da utilização do plano-sequência e da profundidade de campo, assim como uma relação nova entre filme e espectador, e podemos acrescentar, também, o fato do cinema moderno minimizar a narrativa, operando por tipos de imagens que valem por si mesmas. A saída dos estúdios de gravação para a rua e o uso de temas ligados ao cotidiano também são presenças constantes na promoção dessa ruptura com o passado.

Um dos desdobramentos dessas análises de Bazin são os livros sobre cinema do filósofo francês Gilles Deleuze. Tanto Bazin, quanto Deleuze partem das mesmas referências ao analisarem a imagem cinematográfica, a semiótica do pensador norte-americano Charles S. Peirce e as teses sobre o movimento do filósofo francês Henri Bergson, o que faz com que as colocações de Deleuze sobre a imagem-movimento e a imagem-tempo reverberem algumas das afirmações de Bazin. A passagem do clássico ao moderno é apresentada por Deleuze como uma mudança na relação com o tempo. Enquanto no cinema clássico teríamos uma relação indireta com o tempo, num cinema que privilegiaria a montagem, tornando o tempo subordinado ao movimento (imagem-movimento); o cinema moderno produziria situações óticas e sonoras puras, estabelecendo uma relação direta com o tempo (imagem-tempo).

Ladrões de Bicicleta (1948) CC0

Nas décadas seguintes, o cinema moderno, através dos seus diversos movimentos (Nouvelle Vague, Novo Cinema Alemão, Cinema Novo etc.), iria renovar a linguagem cinematográfica, questionando o próprio ato de fazer cinema. É um período que poderíamos chamar de “segundo modernismo” do cinema. Diferentemente do “primeiro modernismo”, típico da década de 1920, quando o caráter modernista do cinema se manifestava na discussão acerca da inserção do cinema no universo da arte, mas cujos argumentos derivavam de outras formas de expressão artística, no “segundo modernismo” o cinema se “torna moderno” como consequência do questionamento de sua própria forma, conteúdo e contradições.

A partir da década de 1960, os estudos sobre cinema vão migrar para o mundo acadêmico. Enquanto as teorias da primeira metade do século XX se concentravam na busca pelo “específico cinematográfico” (seja a montagem, seja a capacidade de reproduzir o real), dos anos 1960 em diante os esforços vão se concentrar na elaboração de metodologias que possibilitem a criação de um sistema de análise que circunscreva o cinema como um todo. Mas isso é assunto para o próximo texto.