OLHARES

 

 

“O cotidiano supõe o passado como herança. O cotidiano supõe o futuro como projeto. O presente é esta estreita nesga entre o passado e o futuro e cuja definição depende das definições de passado e de futuro: desta existência do passado, da qual não nos podemos libertar porque já se deu; e desse futuro, que oferece margem para todas as nossas esperanças, exatamente porque ainda não existe.” (Milton Santos, Por uma Geografia Cidadã, por uma Epistemologia da Existência, 1988)

 

Do carnelevāre (Carnaval) à chegada do vírus e o início do distanciamento social, as máscaras perderam paulatinamente as cores e os paetês, assim como a folia se tornou terror, e as ruas cheias do Rio ficaram… bom, aí a comparação tem suas nuances.

As máscaras vêm recuperando suas cores aos poucos, com estampas e siglas, mas falarei mais sobre esse tipo de cores e características no texto seguinte. Quero falar agora sobre uma “máscara democrática” que marcou os meus finais de semana no subúrbio, em especial no período do Carnaval.

Durante uma fase da minha infância, na década de 70, alguns finais de semana daquela família de pretos altos, que se aglomeravam no Fusca “café com leite”, e posteriormente na Brasília Azul Marinho, era ir para Umbanda na casa de Seu Bernardo em Bonsucesso ou de Dona Agigadê em Anchieta. Quando não era final de semana de curimba, íamos também à casa de meu padrinho Clóvis na altura do Realengo, numa casa alta no morro, atrás daqueles motéis da Avenida Brasil, que o menino imaginava ser um lugar de pecado, e outros valores que “graças a Deus” eu abandonei. Graças a Deus, pois o pecado, parodiando a canção na voz de Ney Matogrosso, só existe do lado de cima do Equador, mas querem crer que os pecaminosos estão do outro lado. Só recentemente, descobri que onde meu padrinho Clóvis morava, antes de ir viver conosco no nosso terreno em Sepetiba, já na década de 80, se chama hoje Batan.

Essas memórias me vêm por descobrir que essas vizinhanças suburbanas em minha infância foram onde tive contato pela primeira vez com o “xará” do meu padrinho baiano durante o Carnaval. O Clóvis.

O folião fantasiado com roupas coloridas, uma máscara estampada com feições assustadoras, normalmente com um buraco para respirar ou para uso de um apito para fazer barulho, e portando um cordão ou vara com uma “bexiga”, a bola com a qual batiam “agressivamente” no chão.

Consultando o Orácgoogle encontrei informações interessantes sobre o Clóvis, ou como eu chamava “Bate-bola” na folia. Aliás “nas folias”. Ele se vê presente, com características semelhantes na manifestação tradicional e religiosa da Folia de Reis, como Palhaço ou “Bastião”, como uma figura mascarada que entra na casa das pessoas com os músicos, e que recita poesias, provocações e brincadeiras. Os anfitriões compulsórios desta visita dos foliões dão comida, bebida (inclusive alcoólica) para os músicos, e é algo que até em favelas da Zona Sul você ainda encontra. Também há sugestões históricas de que no final do século XIX, negros libertos, porém perseguidos pela polícia, se fantasiavam assim para poder pular o carnaval, e que a tal “bexiga de boi” que eles batiam seria uma forma de protestar contra a violência policial. Outras referenciam o surgimento do Bate-bola nas vizinhanças do bairro de Santa Cruz, onde havia um matadouro, e daí as bexigas eram mais acessíveis para fazer as bolas. O fato é que o “bicho papão mascarado” corria atrás das crianças e eu morria de medo deles… mas era um medo infantil e divertido… um motivo para correr, em um momento e local onde crianças pretas como eu podiam correr, sem medo de ser ferido por uma “bala perdida”, mais do que a bolada do Clóvis.

Lógico que toda a comunidade de onde saíam as turmas ou indivíduos travestidos de Clóvis conhecia quem se escondia embaixo das fantasias, falseando suas vozes, para manter um ilusório anonimato para brincar com vizinhos e pular carnaval. Minha memória dos anos 70 e 80 com fantasias fedendo a naftalina, pois era uma fantasia usada anualmente, só nos meses de carnaval, por pessoas invariavelmente pobres. Esse hábito foi se transformando para uma estrutura de bloco carnavalesco. As “turmas” criavam temas que eram preparados ao longo do ano, para atualizar as fantasias no carnaval seguinte, fenômeno mais recente. A democracia a que me referi anteriormente das fantasias de Clóvis, é que é um tipo de fantasia onde a última coisa que se percebe é a cor da pele do folião. Óbvio que dependendo da região e de sua diversidade, nós sabemos, mas é um detalhe secundário na identidade desse mascarado.

Democracia não é o que se percebe na cabeça das pessoas, principalmente em áreas onde o Clóvis não se fez presente, e onde as cores atrás das máscaras fazem mais diferença do que as máscaras coloridas.

No início de abril, o jornalista Marcos Furtado fez uma matéria em um jornal de grande circulação (link no final do texto) sobre um estudante, preto, de relações internacionais da UFRJ, que sofreu racismo pelo uso de máscara e capuz numa grande loja de artigos domésticos. A abordagem da segurança foi inconveniente, e após a acusação a mesma lei foi usada como argumento por ambas as partes, sobre a proibição de uso de chapéu ou gorro no interior da loja, para justificar ou repudiar a abordagem. O que fica “claro” é que, mudando a cor de quem está por trás da máscara de pano, mudaria a forma como este seria, se fosse, abordado. Outros relatos de lá para cá começam a pipocar nas redes sociais, e em uma semana um contato que é produtor musical é abordado pela polícia em São João de Meriti, e forçado a tirar a máscara de pano para se identificar, e expor sua saúde ao vírus enquanto os policiais podem, ou não, permanecer mascarados na abordagem. Um dos maiores atores de cinema deste país, preto, é abordado e “intimidado” por policiais a tirar sua máscara de pano, à noite na Barra da Tijuca, próximo ao local onde mora, a título de “o que está fazendo aqui”?

O status de saúde protegida por máscaras de pano será atualizado quando nossos corpos pretos estiverem igualmente protegidos pelos olhares que se preocupam não com a prudência no uso da máscara, mas com o pré-julgamento de quem oferece perigo por estar usando a máscara.

Um garoto de 4 anos, que saía de bate-bola com o pai no carnaval, morreu vítima dos sintomas do Covid 19. A máscara da alegria de fevereiro ficará na memória da família, mas não há máscara que esconda a dor de ver uma criança morrer pela imprudência de quem não a utiliza; não falo de familiares, mas de grande parcela dos bairros de periferia que, por não querer ou não poder, permanece circulando nas ruas e mantendo o contato social como se ainda fosse dia comum. Como se ainda fosse Carnaval. E em um lugar onde normalmente a violência do estado vem matando muitas crianças antes do Covid 19.

Para encerrar, me lembro de uma iniciativa no Santa Marta, favela na Zona Sul, onde vestimentas sem cor, mas nas mesmas dimensões de um bate-bola, protegem dois irmãos que por iniciativa própria, usam máscaras e equipamento de higienização, saem diariamente subindo e descendo a favela, desinfetando os becos, portas de casa, e principais acessos. Recebem água de moradores para encher seus equipamentos e fazem pela sua comunidade o que o Estado não faz.

Acabou o carnaval, acabou a quaresma sinistra pela qual passamos, mas esses dois “foliões”, na mesma comunidade da Zona Sul que mantém essa tradição católica, vão de casa em casa como na folia trazendo alegria, sem bolas mas com jatos químicos, mas todos os (re)conhecem por trás de suas máscaras. Como o Clóvis. Como o Bastião. Como um dos seus. O problema sempre esteve na qualidade dos olhos de quem vê além da máscara… e esse problema não se resolve com o isolamento.

Se não plantarmos este desafio no presente, essa tal nesga entre o passado que já se deu, onde se marginalizavam as pessoas por sua cor, ou pelo futuro onde estão todas as esperanças, fica difícil construir juntos uma futura existência.


Texto de Marcos Furtado

Link para Máscaras. Parte I