Por Jéssica Santos

Ary Miranda é entrevistado pelos jornalistas Euro Mascarenhas e Gabriela Gomes no Quintas resistentes

No dia 25 de junho, data em que se completava 40 dias em que o Brasil estava sem um ministro da Saúde, pasta ocupada interinamente pelo general Eduardo Pazuello, o Quintas Resistentes abordou o tema Reforma Sanitária no contexto da luta contra a ditadura. Para tratar do tema tão relevante quanto atual, diante da maior crise sanitária do século, convidamos o professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, o médico sanitarista Ary Miranda, para quem o Sistema Único de Saúde (SUS) é um marco civilizatório e a saúde, um bem essencial que não pode ser simplesmente transformado em mercadoria e subordinado aos interesses da iniciativa privada.

Com a palavra Ary Miranda:

— “Não termos ministro é o resultado do descompromisso do governo federal com a saúde da população”, lamentou o professor, acrescentando que em meio a mais grave pandemia desde a gripe espanhola em 1918, o país não fez grande coisa para minimizar os impactos causados pela disseminação do novo coronavírus.

“O governo federal deveria estar assumindo a coordenação desse processo, junto com estados e municípios, ainda mais se tratando de um país continental como o nosso, com enormes diferenças sociais, ambientais econômicas, e de oferta e acesso das pessoas ao sistema de saúde”, afirmou Ary Miranda.

Antes do SUS

Para se compreender a importância que o Sistema Único de Saúde possui é preciso conhecer o contexto em que ele foi criado, explicou o professor Miranda, traçando um breve perfil histórico da oferta de saúde no país desde os anos 1930.

Nesse período, o Brasil ainda colhia as consequências do processo de expansão da indústria cafeeira iniciado em 1918; havia um intenso processo de migrações, sobretudo europeia; e começavam a surgir as primeiras regulamentações do mercado de trabalho.

A partir de 1930, o governo Vargas unificou as caixas de aposentadorias e pensão, criadas em 1923, transformando-as nos institutos de aposentadoria e pensão, organizados por categoria profissional. Somente os trabalhadores com carteira assinada tinham acesso aos serviços de saúde. “O sistema de saúde no Brasil, do ponto de vista da assistência à saúde, nasce discriminando a cidadania porque começa a ser criado para oferecer serviços para os trabalhadores que estão no mercado de trabalho formal”, explicou.

O modelo seguiu nas décadas seguintes, tendo sua consolidação acentuada com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) em 1966, quando o Estado incorpora todos os componentes existentes da área da Previdência.

Nos anos de 1960, houve um grande movimento de incorporação tecnológica na área da saúde e, seguindo a tendência mundial, o Brasil fez grandes investimentos na aquisição de equipamentos e insumos. Tudo ligado diretamente aos interesses da iniciativa privada e não aos da população.

Inicia-se um intenso processo de construção de hospitais, seguindo o modelo que atendia às expectativas do mercado. Já os trabalhadores que não tinham um registro formal, eram atendidos de forma subsidiada pelo governo. “Há um marco privatista do desenvolvimento histórico da saúde brasileira. Talvez a saúde seja um dos setores mais emblemáticos para mostrar como a história do Estado brasileiro é uma história de defesa dos interesses da iniciativa privada e não dos da população”, assegurou.

Luta contra ditadura

Miranda nos conta que, nesse contexto privatista, havia um baixíssimo grau de participação social. No entanto, o crescimento e organização dos movimentos sociais nas décadas seguintes é um dado central para compreender o nascimento do SUS. “A luta contra a ditadura não é somente para superar a ditadura. No caso da reforma sanitária, ou seja, das pessoas que estavam no campo da saúde coletiva combatendo o regime militar, não bastava derrubar a ditadura, era necessário que a gente construísse um novo sistema de saúde, alternativo ao existente”, lembrou.

No final dos anos 1970 e início da década seguinte, Ary Miranda, médico recém-formado, se engajou na luta pela reforma sanitária. O Brasil caminhava para uma abertura gradual, com a conquista da anistia, volta dos exilados e uma primeira reforma partidária. Foram fundados importantes organizações, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983 e, no ano seguinte, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), entre outras organizações que tinham em suas pautas o direito à saúde. Na área específica da saúde, também surgem movimentos importantes, como o Renovação Médica (REME). Na opinião de Miranda, o SUS só se tornou possível através de todo esse processo político.

Democracia e saúde

Mas para avançar no processo de construção de um novo sistema, seria preciso um fórum popular com participação ampliada. Foi o que ocorreu com a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que após um grande processo de mobilização, com pré-conferências em todos os estados do Brasil, configurou-se como o espaço para discussão e formulação das bases do que viria a ser o SUS.

“Tínhamos um sistema histórico, todo centrado nos interesses da iniciativa privada. É da 8ª Conferência que saiu a base fundamental do que foi discutido na Constituinte. Dessa conferência foi criada uma comissão nacional da reforma sanitária, com participação dos movimentos sociais, que definiria os eixos sistematizando as propostas em um ordenamento lógico”.

A partir desse momento, do ponto de vista legal, a saúde é entendida como direito de todos e dever de Estado. A participação popular, através dos conselhos, ganha destaque e são incluídos aspectos importantes como a vigilância sanitária, saúde do trabalhador, saúde ambiental entre outros pontos.  “Quando você vê os artigos da Constituição que definem o que é o arcabouço constitucional do sistema de saúde, percebe-se um ganho civilizatório da sociedade brasileira. Isso foi uma grande vitória do movimento popular”, ressaltou.

Após a aprovação da legislação que cria o SUS, foi preciso em seguida construí-lo na prática, para dar materialidade ao sistema. Com o advento do neoliberalismo na política econômica do país, a partir dos anos 1990, a garantia de recursos para a manutenção do sistema tornou-se um grande desafio: “Temos um sistema universal, mas com um orçamento que é incompatível com a sua universalidade”, explicou Miranda.

Ainda hoje, o Sistema Único de Saúde sobrevive com uma série de fragilidades. “Além de não termos conseguido construí-lo de forma democrática, com equidade, humanizado, o SUS ainda está sendo desmontado por interesses da iniciativa privada”, analisou.

Pandemia: projeto para saída da crise

Para Ary Miranda, a pandemia descortina as contradições do próprio capitalismo. Com crescente número de mortes e casos confirmados no mundo inteiro, uma devastação econômica sem precedentes, aumento do desemprego e projeções de depressão média do Produto Interno Bruto (PIB) de vários países, as consequências após a pandemia serão graves. “Não vamos sair dessa crise do capitalismo com uma outra concepção de sociedade advindo da burguesia. Isso significa que temos uma tarefa fundamental, que é apresentar qual é projeto de saída para essa crise. Temos que ter um mínimo de articulação entre as forças progressistas para que, quando sairmos, podermos dizer qual é o caminho concreto que temos que seguir”, afirmou.

Com a pandemia também fica mais que evidente a necessidade de tratarmos a saúde como um direito de todos e dever do Estado. Cidades que entraram em colapso, como Manaus, não tinham uma estrutura pública capaz de atender a demanda. “Na medida em que 55% dos recursos da saúde estão enclausurados nos interesses da iniciativa privada, obviamente que a saúde está se transformando em uma mercadoria. E isso é um absurdo porque a saúde é um bem essencial. Não podemos transformar o sofrimento dos outros em uma mercadoria. Qualquer um de nós quando doente fica fragilizado, sofre. E isso não pode ser objeto mercadológico” enfatizou.

Coração no SUS e no samba

No final da entrevista, outra faceta de Ary Miranda foi apresentada. Ele é um dos fundadores do bloco Simpatia é quase amor e destacou a importância cultural do carnaval de rua no Rio de Janeiro, mesmo com os sucessivos ataques da Prefeitura para desarticular os blocos. “Nós fundamos o Simpatia e ele saiu pela primeira vez em 1985, momento importante que ajudou a revigorar o carnaval de rua no Rio de Janeiro. Vários blocos surgiram nesse período e hoje temos mais de 400 blocos, com carnaval de rua, democrático. Essa é a essência da cultura desde o Século XIX. É a expressão do carnaval do rio de janeiro mais importante que nós temos e mais democrático”, ressalta.