Por Thiago Fernandes

Em 1933, chegavam ao Brasil notícias sobre a ascensão dos fascistas ao poder na Alemanha. Aqui, a Ação Integralista Brasileira (AIB) já se organizava desde o ano anterior, unificando grupos fascistas em diferentes partes do Brasil. Tal conjuntura fez ampliar o movimento antifascista no Brasil, à princípio radicado na capital paulista, e o fez acelerar suas ações, culminando na criação da Frente Única Antifascista (FUA).

Para conseguir apoio da população diante da propagação de ideais fascistas, um instrumento de contrapropaganda precisava ser criado, e assim surgiu o jornal O Homem Livre, que em sua curta existência, entre 1933 e 1934, contribuiu para a articulação do movimento antifascista em São Paulo. O jornal, lançado em 27 de maio de 1933, cerca de um mês antes da criação da FUA, contou com artigos, assinados ou sob pseudônimos, de autores como José Pérez, Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Aristides Lobo, Goffredo Rosini, Geraldo Ferraz e Miguel Macedo, e foi ilustrado pelo gravador Lívio Abramo.

Apesar dos problemas financeiros, O Homem Livre tinha boas qualidades técnicas e editoriais devido ao fato de ser produzido por jornalistas e gráficos profissionais, em grande parte ligados ao jornal Diário da Noite. Além de utilizar serviços de agências de notícias internacionais, o jornal tinha seções fixas sobre artes plásticas, cinema, economia, cultura, ciências, etc. Seu primeiro editorial, intitulado “Contra o Fascismo”, já deixava claro seus objetivos e o principal inimigo a ser combatido. Também por meio do jornal os leitores tomaram conhecimento sobre acontecimentos históricos, como a famosa queima de cerca de 20 mil livros realizada pelos nazistas numa praça pública de Berlim na noite de 10 de maio de 1933, cujos alvos eram obras de autores considerados inimigos políticos, representantes de etnias minoritárias ou de modos de pensar e viver diferentes. Entre outros temas abordados no jornal estavam o voto feminino, a Frente Negra Socialista, a situação da classe trabalhadora, a cultura popular, o antissemitismo e o racismo. Sua postura era denunciativa, crítica e por vezes didática, buscando explicar os perigos do fascismo e dos conceitos por ele adotados, a exemplo de um artigo da seção de biologia que trata da definição de “espécie”. Mas o humor também costumava ser utilizado como arma de contrapropaganda, sobretudo em charges oriundas de jornais estrangeiros e artigos que tratavam o fascismo e o integralismo de maneira satírica.

O Homem Livre foi lançado numa década em que a arte brasileira era assinalada pelas temáticas sociais: Tarsila pintava operários, Portinari lavradores, Segall a imigração e a matança de judeus. Ao mesmo tempo, a gravura, por sua natureza reprodutiva, era adotada com maior frequência pelos artistas, de modo a romper com a unicidade da imagem e ampliar seu valor de exposição, podendo ser vista em jornais e revistas, por exemplo, e não apenas em galerias de arte. O potencial político da gravura, sua capacidade de levar a imagem às massas, foi explorado pelos artistas em colaboração com a imprensa alternativa. A preocupação com o desenvolvimento de uma identidade nacional por meio do projeto antropofágico de assimilação e atualização das vanguardas europeias, característica dos anos 1920, cedeu lugar a uma produção vinculada ao povo e destinada às massas, sendo a arte vista como instrumento de conscientização e transformação do mundo. Essa segunda geração de modernistas era formada, em parte, por artistas de origem modesta, proletária, ao contrário da anterior, cujos principais nomes provinham das elites e realizaram sua formação artística em países como França, Alemanha e Estados Unidos.

Outro marco para o ano de 1933 é a exposição da gravadora expressionista alemã Käthe Kollwitz, organizada pelo Clube dos Artistas Modernos de São Paulo (CAM), criado por Flávio de Carvalho. Artista dedicada a motivos sociais, Kollwitz teve sua obra profundamente marcada pela Primeira Guerra Mundial e caracterizada pelo viés melancólico. Abordava temas como a classe operária, a miséria, a guerra, a dor e a morte, tendo figuras femininas como protagonistas em grande parte de suas obras, o que levou Mário Pedrosa a considera-la “a artista da mulher proletária”. A figura da mãe é recorrente em seus trabalhos, como um ser protetor e oprimido pelos males da guerra. Kollwitz foi perseguida pelos nazistas na década de 1930 devido a seu interesse pelo socialismo. Sua obra e trajetória já eram admiradas no Brasil desde a década de 1920, quando seu nome foi destaque em alguns impressos, e a artista já havia exposto no país em outras ocasiões. A individual de 1933 tem tamanha notoriedade devido, entre outros fatores, a um texto publicado no jornal O Homem Livre por Mário Pedrosa, crítico conhecido por sua intensa atuação política. “Käthe Kollwitz e as tendências sociais da arte”, originalmente uma conferência apresentada por Pedrosa no CAM, marca não apenas sua estreia na crítica de arte, como também é um divisor de águas para a crítica brasileira, uma vez que até então os escritos sobre arte eram caracterizados por um cunho descritivo, laudatório, ou por uma retórica rançosa, sendo muitas vezes ligados ao colunismo social e à literatura, e era uma prática exercida por poetas, jornalistas e escritores menos preocupados com a interpretação do fenômeno artístico.

Käthe Kollwitz, As mães, 1922

Em seus primeiros escritos sobre arte, Pedrosa acreditava que o tema (de cunho social) desempenha um papel central na obra de arte, assim como seu vínculo com a classe trabalhadora. No texto sobre Käthe Kollwitz, no qual o crítico pioneiramente (no Brasil) adota uma interpretação marxista da arte, é possível perceber sua intenção de articular arte e política e afastar a produção estética do individualismo burguês. Pedrosa, contudo, não enxerga a arte como dado ilustrativo ou a reduz a mera propaganda ideológica. Ele se atenta para a dinâmica do processo cultural e para os procedimentos artísticos. Essa noção mais ampla de uma arte revolucionária, para além de um engajamento político, se tornará mais clara na segunda fase de sua produção crítica, na qual se interessa mais pela forma, os princípios da Gestalt e os meios de expressão específicos da arte, partindo em defesa da arte abstrata. O que se quer aqui destacar é a contribuição de Pedrosa, como crítico, para a luta antifascista e o papel do jornal O Homem Livre na disseminação de um dos mais importantes textos da história da crítica brasileira. A veiculação da conferência de Pedrosa num periódico antifascista é um relevante marcador da associação entre arte, política e coletividade pela qual se militava na década de 1930, não apenas no Brasil, como também no mundo afora. Confere-se relevância à arte e à sua capacidade de interferir nas visibilidades. A arte é encarada como uma potente arma pelos revolucionários, como também é assim reconhecida pelos reacionários – e por isso tantas vezes a interditaram, a censuraram, como ainda o fazem hoje.

A importância de Kollwitz se deve também à notável influência que exerceu na trajetória de artistas brasileiros que tiveram contato suas obras que aqui chegaram, entre eles Lívio Abramo. Considerado por seu amigo Mário Pedrosa o primeiro artista brasileiro a transpor para a xilogravura o tema da luta de classes, Abramo foi um artista militante, autodidata por falta de opção, que construiu imagens ideologicamente em conformidade com seus pressupostos políticos, fazendo da arte um instrumento de denúncia. Sua obra, ao menos na década de 1930, é inseparável de sua atuação no campo da política e da luta sindical. Concentrou-se em temas como operários nas fábricas ou em protestos, cenas de guerra e bombardeios, paisagens de vilas operárias e outros elementos diretamente relacionados à figura do trabalhador brasileiro por meio de uma linguagem expressionista. Abramo colocou sua arte à serviço da imprensa crítica e foi colaborador do jornal O Homem Livre durante sua curta existência. Paulista e oriundo de uma família de imigrantes italianos, o artista desenvolveu em São Paulo um papel semelhante ao de Oswaldo Goeldi no Rio de Janeiro, como impulsionador do desenvolvimento da gravura, e em particular da gravura de motivos sociais.

É importante pontuar que o restrito circuito artístico limitava a atuação dos artistas em geral e prejudicava, sobretudo, aqueles que tinham na arte o único meio de sobrevivência. No entanto, o crescimento do mercado editorial foi bastante significativo para gravadores, que encontraram na ilustração de jornais e livros um destino para sua criação. Antes de ilustrar O Homem Livre, Lívio Abramo trabalhou para outras publicações, como o Diário da Noite, o semanário anarquista Lo Spaghetto e os jornais de esquerda Luta de Classes e Petracchone. Seus desenhos lhe renderam duas prisões e o teor excessivamente crítico de suas charges no Diário da Noite o fez ser deslocado para outro setor do jornal. A postura crítica se fazia presente não apenas na obra de Abramo, mas igualmente em sua vida. Em 1932, foi expulso do Partido Comunista acusado de ser trotskista (assim como fora Mário Pedrosa, em 1929, pela mesma razão).

As gravuras que Lívio Abramo produziu constituem seu ethos político, identificam-se com sua própria vida e integram sua luta contra o fascismo. Mas além do caráter instrumental, essas imagens têm profundo valor expressivo. O artista se mantem original em suas soluções formais, no tratamento da luz, e as peculiaridades encontradas em suas obras assinalam seu impulso experimental, o que lhe garante um lugar de destaque entre os grandes nomes da gravura moderna no Brasil. Sua atuação na imprensa, em especial no jornal O Homem Livre aqui abordado, afirma o compromisso de sua arte em reproduzir-se. De aproximar-se das massas. De dar a ver as condições daqueles que são oprimidos e marginalizados. De promover a força e a união diante da ameaça fascista.

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