DANÇA

 

 

Por Maria Alice Poppe¹

Passamos de 50 dias de isolamento social e já me parece haver algumas percepções de nosso estado físico|emocional diante de tamanha volatilidade e incerteza, associada à redução espacial em nosso cotidiano, o que vem afetar diretamente o nosso campo sensório-motor. O momento pede atenção, escuta e, talvez, uma certa parcimônia a fim de concedermos porosidade aos nossos corpos na lida com esse novo “normal”. Nesse sentido, me parece que temos uma única opção: aceitar com resiliência e se adaptar para, então, poder reagir e, assim, entender esse novo chão que pisamos (ou o “velho” chão de nossas casas que pouco conhecemos). Assim, perceber o peso e a força gravitacional para se elevar do chão de outras maneiras e, talvez, escapar do já sabido. Em dança contemporânea, costumamos ir ao encontro das práticas que visam o desconhecido, em busca de outras possibilidades de movimento e, também, de outros “chãos” para pisarmos. Caso contrário, cedemos ao já conhecido e decretamos a falência do estado de investigação ou permaneceremos na iminência de um futuro que nos assombra.

No cotidiano, em geral, caminhamos pela cidade, abaixamos para pegar o casaco, corremos para pegar um ônibus, giramos o dorso para os lados, agachamos para entrar no carro, subimos escadas, aceleramos para atravessar a rua, olhamos para trás ao ouvir uma freada ou buzina, andamos mais rápido, ralentamos para olhar o celular, erramos o caminho, tomamos um susto pelo senhor que caiu logo à frente e somos incitados a parar bruscamente, esbarramos em alguém, levantamos a cabeça, abraçamos um amigo e fabricamos outras tantas ações, que poderia listar infinitamente aqui. Esses modos de agir possuem qualidades expressivas imensuráveis que solicitam musculaturas adversas, nos auxiliando na nossa saúde física e emocional, além de ativar sensores de fina coordenação motora. Contudo, peço uma especial atenção na observação sobre o nosso corpo, sobre a sua relação com o espaço, sobre o nosso peso e, sobretudo, a dinamização a que somos submetidos no dia-a-dia no desejo pelo outro, objeto, pessoa, bicho, enfim, tudo o que é tangível. Penso, em uma primeira instância, na qualidade da nossa capacidade de adaptação ao novo “normal”, tendo em vista que estamos confinados dentro de nossas casas. Partindo da premissa de que o outro nos afeta fisicamente e, mais, que o espaço também é agente nesse processo, como ativar mecanismos dinâmicos em nossos corpos dentro de nossas casas e nos espaços da imaginação?

Venho da dança, tenho formação na técnica do balé clássico, seguida de uma densa especialização em dança contemporânea na Escola e Faculdade Angel Vianna, no Rio de Janeiro. Talvez, por isso a minha percepção do corpo e seu entorno (o espaço), no cotidiano, se dê de forma um pouco distorcida, acentuada e esgarçada, ou como dizem os especialistas com uma certa “deformação profissional”. Nesse sentido, tenho uma enorme apreciação pela sutileza dos traçados invisíveis que flertam com o movimento imaginado e percorrem o pensamento na direção do movimento dançado. Dito de outra forma, trata-se de uma espécie de imagem mental do movimento que pode ser experenciada tanto ao deitar no chão quanto ao fechar os olhos na fruição do gesto dançado. À guisa de exemplo, certa vez experimentei algumas ações do cotidiano, como escovar os dentes, pentear os cabelos, comer e caminhar pela casa com os olhos fechados, como forma de exploração do campo imaginativo e proprioceptivo do corpo | pensamento.

Foto de Maria Alice Poppe

Voltemos à pergunta acima, e já que somos dotados de tridimensionalidade, vale lembrar que temos costas, lados e não somente a frente do corpo. Parece óbvio, porém é muito comum esquecer tal prerrogativa, uma vez que a comunicação humana é pautada majoritariamente pela fala e pela visão, além do fato de tanto a boca como os olhos estarem na frente do corpo. Comece a pensar nas suas costas, nos ossos que seguem ao descer na direção da ponta debaixo das orelhas, as famosas escápulas! Elas são suavemente paralelas às vértebras da coluna e são fonte de muitas explorações de movimento em nossas pesquisas em dança. Peça a um bailarino para ele improvisar a partir das escápulas. Certamente você se surpreenderá com o repertório de movimentos que surgirão dali. Na dança, costumamos ativar com frequência a força e o apoio de nossas costas no sentido de dar voz ao que está localizado atrás, assim não prevalecemos tanto a frente do corpo e damos sentido à relação com a tridimensionalidade. Para isso, utilizamos objetos como espumas, bambus, bolinhas, além do chão e da parede no sentido de ativar e sensibilizar as costas. Tenha certeza que essa temática ocupa grande parte de nossos conteúdos e estímulos para danças e coreografias. Seguindo essa motivação, e provocando outras formas de ativação do corpo, independente do tamanho do espaço que se ocupa, sugiro o exercício de fechar os olhos e imaginar, por exemplo, o movimento da ponta do nariz como se fosse a ponta de um lápis desenhando a forma de oito (infinito). O mesmo pode ser feito com o topo da cabeça, ou com a ponta do cotovelo e assim por diante. Me inspiro no estado descrito nas últimas frases do livro A Alma e a Dança de Paul Valéry, nas quais a dançarina Athikté, que representa a incorporação do espírito da Dança, é indagada por Erixímaco e Sócrates a respeito de seu estado no momento da dança:

“Erixímaco: – Então, menina, vamos abrir os olhos. Como te sentes agora?
Athikté: – Não sinto nada. Não estou morta. E contudo, não estou viva!
Sócrates: – De onde voltas?
Athikté: – Asilo, asilo, ó meu asilo, Turbilhão! – Eu estava em ti, ó movimento, e fora de todas as coisas…” ²

O não-ver e as costas atiçam o pensamento de um corpo que escuta o som da pele. Instaura-se, então, uma sensação de movimento cuja premissa não é ditada pelo protagonismo da visão. Nada mais adequado num momento como esse no qual, sem buzinas e esbarrões, dormimos e acordamos amedrontados, fazemos reuniões de trabalho ao mesmo tempo que cozinhamos, assistimos a crise política do Brasil em meio à maior pandemia de todos os tempos, ajudamos nossos filhos no homeschooling no intervalo em que limpamos o chão, fazemos pão e brincamos, acompanhamos um presidente sem limites, jogamos cartas, tememos o amanhã, lavamos a louça, cuidamos de nós mesmos, cuidamos do outro, sem sair de casa, com o corpo fervendo. A habilidade de ouvir com a pele, ver com os ouvidos, tatear com as papilas e cheirar com os olhos, torna-se um mecanismo de luta, resistência e cuidado. Tais inversões promovem a abertura para um outro corpo, diferente daquele que repetia mecanicamente os movimentos. Agora, esse corpo cria montanhas com as curvas das pernas, abre buracos entre os dedos das mãos e lustra o piso pelo polvilhar suave dos pés no chão. Não seria a nossa capacidade de adaptação uma abertura ao espaço da casa para além de uma arquitetura sólida e estável? Talvez assim possamos experimentar o desconhecido sem abrir mão do que já passou, ou então habitar o turbilhão de Athikté até que o novo “normal” não nos assombre mais.


¹ Bailarina e Colaboradora em processos de criação. Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO. Mestre em Artes Visuais pela UFRJ. Licenciada em Dança pela Faculdade Angel Vianna. Professora Departamento de Arte Corporal da UFRJ coordenadora do Projeto de Pesquisa LINHA. www.alicepoppe.com
² Referência: VALÉRY, Paul. A Alma e a Dança e outros diálogos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996, pg. 68