CINEMA

 

 

Em 1990, durante o governo de Fernando Collor de Melo, ocorreu a extinção da EMBRAFILME (Empresa Brasileira de Filmes), praticamente paralisando a produção cinematográfica brasileira. Até esse período, a produção cinematográfica estava ancorada num modelo que a vinculava ao financiamento estatal, que controlava a produção e distribuição dos filmes.

Somente em 1993, após uma série de negociações entre Estado e cineastas é que foi promulgada a lei 8.685, a chamada Lei do Audiovisual, que promoveu a “retomada” dos investimentos no cinema brasileiro.

Cinema da Retomada é como ficou conhecida a produção cinematográfica realizada a partir de 1995 com os recursos decorrentes dessa nova legislação. O filme apontado como marco da Retomada é Carlota Joaquina, princesa do Brazil, lançado em 1995, com direção de Carla Camurati. A partir deste filme, o cinema brasileiro começou uma fase de produção mais intensa e com uma boa repercussão junto ao público.

Ainda em 1995 é lançado o filme Terra Estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas. Outros filmes que estrearam nos anos seguintes também alcançaram grande prestígio tanto junto ao público brasileiro quanto internacional como: O Quatrilho, de Fábio Barreto (1996); Central do Brasil, de Walter Salles (1998); Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Kátia Lund (2002); Tropa de Elite, de José Padilha (2007); Aquarius, de Kléber Mendonça Filho (2016), etc.

A lista de filmes do chamado Cinema da Retomada é extensa e variada em termos temáticos e estéticos. Nesse sentido, a Retomada não se configura como um movimento cinematográfico que apresente uma plataforma política ou uma unidade estética. Pode ser caracterizado como um momento do cinema nacional em que os investimentos advindos das leis de incentivo proporcionaram uma ampliação da produção de filmes, o aparecimento de novos diretores e de uma grande diversidade de propostas.

Carlota Joaquina, princesa do Brazil, lançado, 1995.

Na imprensa, de um modo geral, o termo continua sendo utilizado para a atual produção cinematográfica brasileira, entretanto, encontramos também autores que procuraram delimitar essa produção da Retomada entre 1995 e 2002. Entendemos, no entanto, que o termo Cinema da Retomada abrange a produção cinematográfica nacional até os dias atuais, uma vez que a criação da ANCINE (Agência Nacional de Cinema), em 2001, e a adoção de fomentos como o FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), em 2006, e a “Lei da TV Paga”, em 2011, ainda se enquadram no processo de desdobramento da “retomada” (situação que caminha para uma drástica mudança a partir das propostas de política cultural do atual governo federal).

Alguns autores afirmam que o modelo de produção cinematográfica baseado na renúncia fiscal imprimiu nos filmes da Retomada uma supremacia de critérios publicitários em detrimento das escolhas exclusivamente estéticas. Essa idéia gerou uma polêmica que ficou conhecida como uma oposição entre a “estética da fome” do Cinema Novo e a “cosmética da fome” dos filmes produzidos a partir da Retomada.

Em artigo publicado em 2001, no Jornal do Brasil, a pesquisadora e ensaísta Ivana Bentes comenta o filme de Walter Salles, Central do Brasil, para o qual aponta uma série de características que vinculam o filme mais a uma estética que agrada ao mercado do que uma estética no estilo do Cinema Novo, que tinha uma proposta de caráter político. A polêmica teve grande repercussão entre cineastas, críticos e pesquisadores de cinema.

Enquanto a “estética da fome” buscava uma representação da miséria a partir de um viés que privilegiava certos aspectos políticos e sociais, acreditamos que os filmes abrigados sob a denominação comum de Cinema da Retomada de fato tematizam a exclusão e a desigualdade social, porém, o fazem sob outro olhar. Uma estética que dá lugar às novas tecnologias digitais, à linguagem da televisão, do telejornalismo e da internet, das quais se apropriam como representação do real. Uma das características dessas produções é que elas privilegiam o espaço urbano tal como eles se apresentam nas mídias digitais globalizadas. Como exemplo dessa nova harmonia tecnoglobalizada podemos citar as semelhanças entre dois filmes premiados internacionalmente e que retratam a vida em comunidades periféricas de duas grandes cidades do Terceiro Mundo: Cidade de Deus (2002), dos brasileiros Fernando Meirelles e Kátia Lund, e Quem quer ser um milionário? (2009), do britânico Danny Boyle. As duas produções apresentam a saga de um jovem que tenta vencer os obstáculos impostos pela miséria na periferia de uma grande cidade de um país subdesenvolvido, Rio de Janeiro e Mumbai, respectivamente. Os primeiros minutos de ambos os filmes são impressionantemente parecidos nas imagens, seja no que diz respeito aos personagens, ao cenário, aos enquadramentos, ao ritmo etc. Prevalece o imaginário da representação globalizada de qualquer cidade grande em desenvolvimento.

As modificações introduzidas pelas novas tecnologias acabam por induzir a um determinado resultado plástico, o que contribui para imprimir um caráter mais “realista” às cenas e, ao mesmo tempo, criar uma linguagem mais próxima da televisão e da internet em algumas produções, o que não chega a ser propriamente suficiente para eleger o surgimento de uma nova estética. Mas ainda que nem todos os cineastas envolvidos nesta abordagem possuam um projeto estético comum, acabam assinalando o surgimento de uma nova linguagem que padroniza certos procedimentos narrativos. O realismo nessa nova linguagem nada tem a ver com o conceito de realismo proposto por André Bazin em seus estudos sobre cinema ao se referir ao neorrealismo italiano, conceito esse que é passível de aplicação aos diversos “novos cinemas” das décadas de 1950 e 1960 (Cinema Novo, inclusive). O realismo que emerge a partir dos anos 1990 anula a distinção entre o “verdadeiro” e o “falso”, anula os referenciais. Não se trata mais de intervir politicamente num contexto histórico e cultural, mas de aproximar cada vez mais real e ficção, até ao ponto em que se tornem praticamente indiscerníveis. A realidade não é mais o pano de fundo para a ficção, essa distinção desaparece, a ficção incorpora o real, enquanto a realidade torna-se cada vez mais ficcional. Passamos para o registro do “espetáculo”, entendido aqui na totalidade do conceito criado pelo pensador francês Guy Debord, ou seja, não apenas na constatação da presença ostensiva dos meios de comunicação de massa no cotidiano, mas, principalmente, no consumo excessivo (e passivo) de imagens.

Portanto, é importante enfatizar que os filmes que integram essa produção nacional, que obtêm reconhecimento internacional a partir do sucesso de Central do Brasil e atinge seu ápice a partir da nomeação para o Oscar de Cidade de Deus, em 2004, resgatam, sim, uma tradição do popular em nosso cinema presente desde o movimento Cinema Novo, só que agora ancorada numa estética da linguagem televisiva, do telejornalismo e, mais recentemente, da internet, muito distantes dos princípios cinemanovistas, espelhados em movimentos importantes daquele período, como a Nouvelle Vague e o neorrealismo italiano. A ousadia formal e política do Cinema Novo não está mais presente e o que predomina é o rearranjo do conceito de realismo.