ARTES VISUAIS

 

 

Conversa com Thiago Fernandes, historiador da arte e designer gráfico

Thiago Fernandes é um jovem historiador de arte bastante ativo no circuito de artes visuais do Rio de Janeiro; graduado em Design Gráfico pela Universidade Estácio de Sá e em História da Arte pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez também mestrado em Artes Visuais na EBA-UFRJ, na linha de pesquisa História e Crítica da Arte, e atualmente faz doutorado no mesmo programa e linha de pesquisa. Realizou curadorias nos anos recentes, voltadas à ativar espaços inusitados ou periféricos. Conversamos com Thiago sobre sua trajetória, perspectivas e como está encarando a “virada digital” da pandemia.

– Por que a história da arte entrou na sua vida? Como pintou o interesse?

– O interesse surgiu logo no início da minha graduação em design gráfico na Universidade Estácio de Sá. As disciplinas teóricas despertaram um grande prazer em mim e comecei a estudar história da arte por conta própria (investindo em livros, assistindo a filmes, visitando exposições, etc.). Sempre tive a consciência de que faria uma segunda graduação ou uma especialização, pois o curso de design gráfico na Estácio era de graduação tecnológica, com dois anos e meio de duração, e o concluí com apenas 20 anos de idade. Esse tempo da primeira graduação serviu para que eu amadurecesse a ideia sobre a segunda, que é onde realmente me encontrei como profissional, embora na época não tivesse essa pretensão, e muito menos a de me tornar um acadêmico. Fazer um mestrado sequer passava pela minha cabeça, e um doutorado, então, era algo inimaginável, ainda mais considerando o lugar de onde vim. Faço parte da primeira geração da minha família a conseguir chegar à universidade e sou o primeiro (e até então único) a passar para uma universidade pública. Devo isso à cota destinada a ex-estudantes de escolas públicas. Tenho muito orgulho em dizer que fui cotista e com isso ter sido capaz de chegar onde estou hoje.

Eu nunca tive muito contato com artes visuais, até ingressar no curso de design gráfico. Até então, eu não frequentava museus, centros culturais ou teatros. Nasci e cresci no subúrbio (em Guadalupe, bairro da Zona Norte do Rio) e lá nossas referências culturais eram outras. Infelizmente os equipamentos culturais se concentram no eixo Centro-Zona Sul (e estou falando da minha infância e adolescência nos anos 1990 e 2000, quando essa realidade era mais cruel do que hoje) e raramente esses espaços são frequentados por quem é do subúrbio. Então meu contato com a história da arte se deu de forma indireta, por intermédio da graduação em design. Fui a uma exposição de arte pela primeira vez aos 18 anos, por indicação de uma professora muito querida do curso de design, como atividade complementar. Foi uma experiência que me encantou. Depois disso a visita a exposições se tornou um costume.

Entrei na EBA-UFRJ como um curioso. Acreditava que o curso de história da arte alimentaria um prazer pessoal e ofereceria novas referências para meu trabalho como designer, não era meu objetivo atuar profissionalmente nessa área. Entrei com uma “mentalidade de designer”, muito interessado no construtivismo russo, na Bauhaus, na art déco, na pop art, nos movimentos mais ligados ao design gráfico, porém meu horizonte se ampliou. Ao longo da graduação conheci um universo incrível. Fui apresentado, entre tantas outras coisas, ao riquíssimo campo da arte brasileira, que na minha visão limitada, até aquele momento, se reduzia a meia dúzia de nomes mais conhecidos do modernismo.

Posso afirmar honestamente que me interessei e explorei tudo o que o curso tinha a me oferecer, desde a arte pré-colombiana até a arte contemporânea. Aos poucos fui encontrando meu lugar e, antes de chegar na metade da graduação, eu já havia decidido mergulhar de cabeça nessa área e colocar o design gráfico em segundo plano.

– Sua pesquisa é em arte brasileira. Que períodos mais lhe atraem e por que?

– Comentei na resposta anterior que ingressei no curso de história da arte como curioso, mas a verdade é que nunca deixei de ser. Embora eu pesquise arte contemporânea, sou completamente apaixonado pela arte medieval, como também adoro conhecer mais sobre a arte colonial brasileira (não consigo passar em frente a uma igreja no Centro do Rio e não entrar), leio bastante sobre Antiguidade, sobre arte indígena, tenho uma biblioteca bastante heterogênea e da qual não consigo dar conta, pois sempre preciso interromper minhas leituras “curiosas” para me dedicar a textos mais relacionados à minha pesquisa. Mas acho que tudo isso só acrescenta, sempre busco maneiras de ser anacrônico e de misturar referências de diferentes contextos nos meus textos e nas minhas aulas. Muita gente da arte contemporânea torce o nariz para a produção anterior ao século 20, assim como alguns

estudiosos dedicados a esses períodos mais longínquos têm reações negativas diante da arte contemporânea. Já eu tento dar um jeito de “infiltrar” um trabalho da Bia Leite ou do Guga Ferraz numa aula sobre medieval. Quando abordo a iconoclastia na Idade Média, por exemplo, adoro trazer exemplos recentes de interdição às imagens (como foi o caso da Queermuseum e outras exposições sabotadas). Ou quando falo sobre a ostentação das propriedades e dos modos de vida na pintura à óleo entre os séculos 15 e 18, gosto de fazer uma comparação com a atual cultura das selfies no Instagram e até com videoclipes do “funk ostentação” de São Paulo. Ao lidar com a arte (ou com as imagens, de modo geral), estamos sempre falando sobre visibilidade e sobre poder (em seus diversos significados). Por mais que a arte tenha se transformado radicalmente, esse é um aspecto que se mantém e que me permite considerar que não é algo tão conflituoso a categoria “arte” abranger tanto Michelangelo quanto Hélio Oiticica.

Falando mais especificamente sobre meu campo de pesquisa, sempre me concentrei na virada do século 21. O que me atrai nesse período é a criatividade e a mobilização dos artistas diante das dificuldades encontradas no circuito de arte brasileiro: vemos a saída da arte para as ruas, a criação de espaços autônomos de arte contemporânea, a edição de publicações independentes, a apropriação subversiva dos veículos de comunicação em massa, etc. Esse é um período em que se renovam os debates sobre a dimensão pública da arte e, ao mesmo tempo, sobre a dimensão pública dos espaços da cidade. A privatização do público e a publicização do privado são questões que eu abordo atualmente no doutorado. Tenho pensado como a arte pode produzir dissensos na ordem vigente de ocupação dos espaços da cidade, e essa é uma questão muito cara à geração da virada do século 21. Vemos, por exemplo, o projeto Atrocidades Maravilhosas transformando espaços destinados à publicidade em palco para manifestações artísticas, a Galeria do Poste interferindo na percepção sobre um espaço público cotidiano, além de diversos artistas que transformaram o espaço privado de suas casas em espaços públicos de exposição e/ou residência artística, como a Graziela Kunsch, a Xiclet, o Edson Barrus e tantos outros. A diluição de fronteiras entre arte e vida e a contaminação da arte pelo cotidiano (e vice-versa), questões recorrentes na arte dos anos 1960, ganharam novos contornos.

– Você também é designer. O que tá te salvando durante a pandemia: aulas de história da arte ou os freelas de design?

– Além de ministrar cursos livres em diferentes instituições, como a Casa do Saber e o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, desde 2019 tenho me dedicado a fazer isso de maneira autônoma. Investi em um mini-projetor e ofereci um curso de crítica de arte e outro de intervenção urbana no Atelier Sanitário (espaço dos artistas Daniel Murgel e Leandro Barboza no Centro do Rio), e isso me salvou mais do que os trabalhos de design, que não estavam aparecendo muito.

Ainda adoro o trabalho de criação, mas diria que atualmente eu sou mais historiador da arte do que designer, é o que tem me dado maior prazer. Na pandemia isso se acentua, pois a busca por serviços de design gráfico está menor, e, por outro lado, as pessoas necessitam de atividades para ocupar a mente neste período, então focar na educação à distância com preço popular foi uma saída bastante oportuna.

– Falando sobre o Atelier Sanitário, em 2019 assistimos a hilária exposição Salão vermelho de artes degeneradas, onde ao lado da curadora Bruna Costa e dos sócios Leandro e Daniel, você selecionou cerca de cem obras, entre quase trezentos artistas que se inscreveram, e trouxe centenas de visitantes à zona portuária do Rio de Janeiro para comemorar de forma debochada e descontraída, o primeiro de maio de dois mil e dezenove – primeiro dia do trabalhador do atual cenário político sombrio. Como surgiu a ideia e qual foi o motivo de tantos artistas se interessarem em participar?

– A ideia de fazer o Salão Vermelho surgiu de maneira espontânea, numa conversa informal entre amigos no Atelier Sanitário. A intenção era realizar uma ação artística bem-humorada no dia do trabalhador, brincando com o modelo expositivo tradicional do salão de arte (que remonta aos séculos 18 e 19, principalmente). Lançaríamos uma chamada nas redes, convidando artistas a submeterem seus trabalhos. Quando estávamos prestes a divulgar a convocatória, me ocorreu a ideia de acrescentar ao nome o complemento “de artes degeneradas”, ficando Salão Vermelho de Artes Degeneradas. Acho que isso ampliou nosso leque, pois com o nome Salão Vermelho imaginávamos que muitos artistas enviariam trabalhos com a cor vermelha, ou um tipo de produção mais engajada. Ao trazer o “degenerado”, ironizando o modo como a arte e os artistas são tratados pelo atual governo, acabamos atraindo também trabalhos bastante debochados, grotescos, que apelavam mais para o humor e para o bizarro, sem nenhum tipo de pudor. Isso também se deve ao texto da convocatória, no qual afirmávamos querer “selecionar, avaliar e revelar a produção artística esquerdopata, doutrinadora, abortista, gayzista, feminazi no território nacional”. Então o resultado foi uma exposição bastante divertida e ficamos surpresos com o número de inscritos e de pessoas que foram visitar o espaço. Acredito que o humor e o clima de festa, mesmo diante de um cenário tão sombrio, foram o que atraiu tanta gente (artistas e público). Acabamos criando um lugar de resistência diante dos ataques às liberdades de expressão sofridos por artistas no Brasil.

– Como você encarou a “virada digital” da pandemia? Como foi a experiência de dar aula à distância?

– Essa não foi minha primeira experiência no ensino à distância. Há um ano atrás comecei a dar aulas na Núcleo Academy, que é uma escola virtual de arte contemporânea, então eu já estava familiarizado com o aplicativo de videoconferência e com a dinâmica da aula à distância. A novidade, para mim, estava mais nas circunstâncias do momento. O curso online “História da arte e os usos das imagens”, que ofereci entre abril e maio, me serviu como uma fonte de renda neste período complicado, mas também partiu de um desejo de oferecer um conteúdo acessível a um público amplo, por isso cobrei apenas R$ 50 pelo curso inteiro. Fiquei bastante impressionado com a quantidade de inscritos e com a diversidade regional da turma. Acho que um dos pontos mais positivos dos cursos online é o alcance, poder chegar a pessoas de outras cidades e estados que não teriam aquela oportunidade se o curso fosse presencial.

– Quem são suas principais referências?

– Acho que Jacques Rancière é minha principal referência no momento, em razão de suas ideias sobre arte e política. Para Rancière a relação entre estética e política está na capacidade inata a ambas de gerar dissenso e romper o status-quo, questionando as visibilidades e certezas dadas. Gosto muito quando Rancière afirma que o caráter político da arte não está no tema ou numa ideia de participação física do público, mas no próprio exercício do olhar, que não deve, para ele, ser encarado como algo negativo, no sentido do “espectador passivo”. Ver também é uma ação, então o espectador deve ser compreendido como um sujeito ativo, que exerce sua capacidade de ver o que a arte lhe apresenta, de criar associações ou dissociações com aquilo que conhece e de desenvolver seu próprio percurso diante do objeto artístico. Isso é política. Tem me incomodado uma certa literalidade recorrente em trabalhos artísticos que buscam se colocar como políticos e acabam por dar pouca margem ao exercício do olhar e à subjetividade. Claro que há uma vocação política na literalidade, no desejo de ser claro, objetivo e até mesmo didático, mas há mais do que isso a ser explorado na arte, e se entendermos como políticos apenas os trabalhos artísticos que seguem esse caminho, ficaremos limitados e repetitivos. Muitos se preocupam mais com os fins do que com os meios, como se a arte fosse sobre finalidade, sucesso e eficácia (características fundamentais para o design e a publicidade, mas não é disso que vive a arte, que é subjetiva). Devo pontuar que não sou contra a instrumentalização da arte, pelo contrário. Historicamente, a arte sempre esteve vinculada a determinadas funções, então negar isso seria rejeitar toda a história da arte. Mesmo se tratando de arte contemporânea, eu poderia listar diversos trabalhos de grande relevância que possuem algum viés pragmático, inclusive entre meus objetos de pesquisa. O que me incomoda é quando essa instrumentalização obscurece o caráter subjetivo da arte, ou a reduz à mera ilustração de um ativismo. A arte tem o poder de produzir política, de produzir diferenças, e não apenas de comunica-las. Rancière é um filósofo que tem me ajudado a refletir sobre essas questões.

Entre outras referências, pensando ainda fora do contexto brasileiro, não posso deixar de mencionar Marie-José Mondzain, Walter Benjamin, Hans Belting e Georges Didi-Huberman, que foram nomes importantes para minha pesquisa de mestrado e continuam presentes nos cursos que ministro.

Já entre minhas referências brasileiras, além dos nomes mencionados na resposta anterior, as autoras que mais tenho lido no momento são Lilia Schwarcz e Marilena Chauí. Estou me dedicando a pensar a especificidade dos espaços públicos no Brasil, que tendem a ser produzidos de acordo com interesses privados. Os escritos dessas duas grandes pesquisadoras têm me ajudado muito a refletir sobre nossa cultura patrimonialista, o costume enraizado em nossa história de privatizar o que deveria ser público e de publicizar o que é privado. É o caminho que sigo para tratar de proposições artísticas que, como forma de dissenso, interferem na distribuição de papéis aos quais os espaços da cidade são destinados, sejam eles ditos públicos ou privados.

– Certo dia viajando contigo no trem da Central, você falava que Mário Pedrosa, escrevendo sobre Hélio Oiticica, falou pioneiramente sobre “arte pós-moderna” nos anos sessenta, antes dos yankees levantarem debates sobre esse termo. Mas eis que veio a roda viva e carregou o pioneirismo dos nossos pra lá. Trinta e poucos anos e o trabalho de muitos agentes até que os gringos pudessem reconhecer – em pleno século vinte e um e com um olhar retrospectivo – a importância do neoconcretismo brasileiro. O que tu acha: está consolidado o nosso reconhecimento internacional ou a nossa arte vai afundar no papelão subalterno proposto pelo desgoverno do coiso ruim?

– A introdução do termo “pós-moderno” na arte é atribuída ao crítico brasileiro Mário Pedrosa, que a faz pioneiramente em 1966 numa série de artigos publicados no Correio da Manhã. Pedrosa colocava o Brasil como um precursor, e não mero seguidor de um novo ciclo pós-moderno, e deu esse mérito aos artistas neoconcretos, como Lygia Clark e Hélio Oiticica, cujas obras superaram os paradigmas do modernismo. Lá fora, as discussões sobre pós-modernidade na arte só se disseminariam na virada dos anos 1970 para os anos 1980. Podemos afirmar que esse debate não se deu, aqui, de forma isolada, restrito a alguns textos de Pedrosa. Frederico Morais também adotou esse termo em alguns de seus textos nos anos 1960 e 1970, além de oferecer no MAM-Rio um curso de arte pós-moderna no final da década de 1960. Numa conferência realizada em 1969, intitulada “Plano-piloto da futura cidade lúdica”, Morais chegou a idealizar a criação de um museu de arte pós-moderna, baseado numa nova mentalidade condizente com as transformações ocorridas no campo da arte com o advento da arte conceitual, land art, minimalismo, performance, intervenção urbana e proposições participativas, que eram conflituosas com a concepção moderna de museu. Em alguns textos do início dos anos 1970, Morais também antecipou discussões sobre o que viria a se chamar de “estética relacional”, termo cunhado nos anos 1990 pelo crítico francês Nicolas Bourriaud para dar conta de tendências que Morais já havia detectado mais de 20 anos antes, assim como Hélio Oiticica, em seu famoso texto “Esquema geral da nova objetividade”, escrito em 1967.

O neoconcretismo, que ganha corpo no final dos anos 1950, é o primeiro movimento de vanguarda genuinamente brasileiro. Mais do que isso, ele estava na linha de frente na assimilação de questões como o corpo na arte e a participação do público. Essa originalidade viria a atrair olhares estrangeiros mais tarde. A presença da arte brasileira – sobretudo do neoconcretismo – em museus e galerias internacionais é decorrente da virada dos anos 1980 para os anos 1990. Há, na verdade, nesse período, um interesse pela arte latino-americana de modo geral. Isso faz parte de um contexto de globalização e de um aquecimento do mercado de arte em diversas partes do mundo. A contribuição de Mário Pedrosa também está sendo reconhecida lá fora. O crítico foi homenageado com uma exposição no Museu Reina Sofia, na Espanha, em 2017, com curadoria de Michelle Sommer e Gabriel Pérez-Barreiro. Em 2015, uma antologia de textos de Pedrosa traduzidos para o inglês, organizada por Glória Ferreira e Paulo Herkenhoff, foi publicada pelo MoMA.

A realidade que vivemos hoje, que veio se moldando desde a década de 1980, é a da ausência de um centro hegemônico das artes visuais. Se antes tivemos Paris e depois Nova York, hoje não é possível eleger uma cidade ou país catalizador da produção artística, ou um artista que seja considerado o grande “gênio” de nossa época (como antes fora Picasso e Pollock), ou um movimento que possa ser visto como a tendência a ser seguida. Numa bienal somos surpreendidos pela grande quantidade de artistas que até então desconhecíamos, oriundos dos países mais diversos. Criou-se uma grande rede que é o circuito de arte global, onde não existe a dicotomia dentro e fora, todos estão dentro, pois isso interessa também a um mercado alimentado pelo fetiche do estrangeiro. Quanto ao nosso reconhecimento do ponto de vista histórico, não tenho certeza se a contribuição da arte brasileira está conquistando o lugar que merece ou se ainda somos um apêndice da história da arte europeia. Isso, na verdade, não me preocupa. A arte brasileira é desconhecida pelos próprios brasileiros, então me interessam mais as pesquisas feitas no âmbito nacional e as medidas que podem ser tomadas para difundi-las em nosso território, alcançando a população em geral.

– Em suas aulas você fala do forte movimento de artistas e espaços de arte alternativos no início do século vinte e um no Rio de Janeiro. Frente ao precário, os artistas se mexeram como puderam. Que paralelos possíveis você traçaria com a sua geração, jovens artistas e jovens pesquisadores que chegam cheios de gás em um cenário tão sombrio?

– O cenário da virada do século 21 era bastante precário aqui no Brasil. Nos anos 1990 houve maior afastamento do Estado no fomento à cultura, com o fechamento temporário da Funarte, o fim do Salão Nacional das Artes Plásticas, a ascensão das megaexposições (de

caráter mais comercial, associadas ao marketing cultural de grandes empresas que privilegiam “grandes nomes”), além do fechamento de diversas galerias. O Luis Andrade descreve muito bem esse cenário num texto chamado Rio 40º Fahrenheit, publicado na revista Concinnitas em 2003 (e disponível online). Não que nas décadas anteriores tivéssemos um sistema artístico bem estruturado, mas a diferença é que nos anos 1990 começou a haver maior busca das universidades para a formação em artes visuais. Os cursos de pós-graduação para artistas estavam florescendo e sendo bastante procurados, como também eram os cursos de graduação. O que penso é que com isso houve um aumento no número de artistas e de outros profissionais da área, mas não houve, em contrapartida, uma ampliação do circuito. Tínhamos ainda um circuito incipiente e que não conseguia acolher a todos, por isso aqueles jovens artistas, em formação ou recém-formados, tiveram de criar seus próprios circuitos. Então esse cenário que acabei de descrever coincide com o “boom” de coletivos, de intervenções nas ruas, de espaços independentes (Zona Franca, Rés do Chão, Casa da Grazi, Casa da Xiclet, Edifício Galaxi, Agora, Capacete, Galeria do Poste e dezenas de outros exemplos) e de publicações independentes (Item, O Ralador, Rizoma, Urbânia, Revista Número, etc.).

Nós vivemos um cenário bastante similar, com a extinção do Ministério da Cultura, a perseguição frequente às artes, o fechamento de exposições, a precarização das instituições. Isso tem impulsionado o surgimento de novos espaços independentes, novos coletivos, novas publicações. Acho que uma das grandes diferenças em relação à virada do século é que hoje a arte está se expandindo mais para as periferias. Se as universidades, no contexto dos anos 1990 e 2000, deram origem a uma nova geração de artistas, a implantação do sistema de cotas gerou outra bastante distinta. Com estudantes de origem periférica tendo a oportunidade de ingressar nos cursos de graduação em artes, e considerando que é nas universidades que se origina grande parte dos agentes que compõem o sistema de arte, é natural que esse sistema sofra uma transformação. No campo teórico, essa geração atual tem se interessado em preencher lacunas existentes na história da arte brasileira, como a atuação de artistas negros, suburbanos, mulheres, transexuais e outros sujeitos que estavam à margem dessa história. Já no campo prático, os artistas têm se interessado em abordar temáticas como a negritude, as favelas, a exclusão social, gênero, etc. Então a vivência desses corpos agrega novas questões à produção artística e teórica. Além disso, essa geração atual não se conforma apenas em se inserir num circuito que sempre privilegiou homens brancos de classe média ou alta, mas desejam, sobretudo, expandir a penetração da arte para zonas periféricas. Daí ganham destaque ações no Centro Cultural Phábrika (em Acari, Zona Norte do Rio), no Galpão Bela Maré (na favela da Maré), e em outras regiões, até então à margem desse sistema. Acho que vivemos um momento bastante revolucionário e muita coisa ainda irá mudar, pois toda transformação é um processo que se dá aos poucos.

– Quais artistas desta leva (oriundos do processo de democratização da Universidade Pública) lhe chamam a atenção?

– Acho que o coletivo Seus Putos foi um dos acontecimentos mais interessantes na arte carioca dos últimos anos. O grupo surgiu no contexto das manifestações no campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que passava por graves problemas financeiros em 2015. Depois o coletivo realizou ações-vírus no circuito de arte e diversas intervenções na cidade, que abordavam questões como a gentrificação e as contradições dos projetos que visavam “revitalizar” o Rio de Janeiro e prepara-lo para receber os Jogos Olímpicos. O Seus Putos era composto por estudantes da UERJ, com exceção de Lyz Parayzo, que era da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), e é uma artista de grande destaque no cenário aqui tratado. Entre os artistas da EBA-UFRJ, instituição com a qual tenho maior familiaridade, há vários nomes a serem destacados, como Rafael Amorim, Camilla Braga, Mariana Paraizo, Agrippina Manhattan, Yuri Dias, Iamn, Fátima Aguiar, Mônica Coster, Rodrigo Pinheiro, Marcela Cantuaria, Carine Caz, Aleta Valente. Certamente estou deixando escapar alguns nomes. A EBA-UFRJ tem formado muitos artistas que me interessam e cujos trabalhos busco acompanhar de alguma maneira.

– Mesmo sendo difícil em um cenário em convulsão como o nosso, quais as tendências mais fortes em arte para esta década, que você arriscaria dar um palpite?

– A geração que entrou nas universidades por meio das cotas (ou que vivenciou esse processo de democratização do ensino, mesmo sem ser cotista), hoje está ingressando no mestrado e no doutorado. Se o cenário dos próximos anos não for tão trágico (leia-se: se a universidade pública não acabar e os concursos não pararem) esses estudantes serão os novos professores universitários e formadores de pensamento. Este é um passo muito importante para a consolidação da democratização do ensino e afeta diretamente o campo da arte. Se há tantas lacunas na história da arte brasileira, uma evidente desigualdade no sistema, além da dificuldade da arte em alcançar as periferias, acredito que essa geração contribuirá muito para a resolução desses problemas.

– Em quais projetos está envolvido no momento?

– Atualmente sou pesquisador-residente no núcleo de curadoria e pesquisa do Museu de Arte do Rio. Estou envolvido com as exposições que o MAR abrirá após o fim desse período de isolamento social e me dedicando à pesquisa de doutorado.

– Se você fosse gravar uma canção de amor, para lançar num disco voador, como intitularia?

– Você pegou no meu ponto fraco. Intitular qualquer coisa é uma das coisas mais difíceis para mim. Às vezes levo apenas um dia para escrever um texto, mas passo uma semana inteira definindo o título. Para sair dessa enrascada, eu regravaria uma canção já existente. Poderia ser “Vai passar”, do Chico Buarque. Acho que ela carrega uma mensagem bastante necessária para o momento atual, além de evocar o clima do Carnaval, que tem feito tanta falta.

– Deixe uma mensagem aos leitores sobre este momento.

– O isolamento social tem provado como a arte é fundamental em nossas vidas. Estamos descobrindo que podemos sobreviver sem muitas coisas que fazem parte do nosso cotidiano, mas o que seria de nós se não tivéssemos, neste momento de tantas privações, o cinema, as séries de TV, a música, a poesia, as artes visuais? Provavelmente perderíamos a sanidade mental. Gostaria de trazer esta reflexão para os leitores e compartilhar meu desejo de que o trabalho de nossos artistas seja melhor valorizado de agora em diante.