Por Maira Moreira e Fernando Prioste/Le Monde Diplomatique Brasil

Julgamento do Quilombo Paiol de Telha (PR) espelha desafios nacionais

No dia 17 de setembro a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em Porto Alegre (RS), julgará dois recursos que envolvem direitos territoriais da comunidade quilombola Paiol de Telha, localizada em Reserva do Iguaçu (PR).

Um dos recursos tratará de possível reintegração de posse em área ocupada pela comunidade desde 2017, outro decidirá se a União deve ser obrigada a repassar ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em prazo razoável, recursos orçamentários necessários à titulação do território. Apesar do julgamento tratar de um caso específico, seus desafios e desdobramentos são de âmbito nacional.

Desde a publicação do Decreto n° 4887/2003, declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro de 2018, o Incra expediu títulos de terra para apenas 43 quilombos, ou seja, uma média de 2,6 territórios titulados por ano, no Brasil.

Titulações paralisadas

A seguir esse ritmo, seriam necessários 659 anos para a titulação de todos os 1.715 quilombos que abriram processos junto ao Incra. A situação tende a se agravar, pois se o orçamento federal para titulações quilombolas chegou a ser de R$ 50 milhões em 2012, hoje é de apenas R$ 423 mil reais, já levando em conta os contingenciamentos de Paulo Guedes.

Por outro lado, o Plano Safra 2019/2020 conta com R$ 225,59 bilhões de reais, tendo dobrada a disponibilização orçamentária para o seguro rural e aumentado em 32% o orçamento para custeio e investimento aos médios produtores.

A comparação dos cenários orçamentários evidencia violação expressa da Constituição Federal pela não realização do direito quilombola à titulação. Mas esse cenário já era esperado, pois Jair Bolsonaro (PSL) já havia dito que se chegasse à presidência não haveria “um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”.

Comunidade quilombola de Paiol de Telha, no Paraná, aguarda titulação de seu território. Foto: Franciele Petry/ Terra de Direitos.

Famílias quilombolas

Apesar do cenário desfavorável o direito quilombola à titulação do território continua vigente, ao tempo em que as comunidades vivem com grandes restrições no acesso à terra.

O quilombo do Paiol de Telha, por exemplo, só teve 7% do seu território tradicional titulado, havendo apenas 255 hectares disponíveis para a sobrevivência de 116 famílias. Outras 184 famílias quilombolas aguardam o seguimento das titulações para retornarem ao território tradicional do Paiol de Telha.

Esse cenário obrigou o Paiol de Telha a ajuizar uma Ação Civil Pública contra o Incra e a União, em novembro de 2018. Com a ação, quilombolas pedem que a justiça determine que o Incra e a União realizem um planejamento, incluindo orçamento, para titulação de todo o território em prazo razoável.

Em decisão liminar da 11º Vara Federal de Curitiba a juíza Sílvia Regina Salau Brollo determinou que a União disponibilizasse ao Incra, em 180 dias, R$ 23 milhões de reais para que o processo de titulação tivesse seguimento. Contudo, a União recorreu e caberá ao TRF4 decidir se mantém a obrigação de repasse orçamentário.

Sobrevivência

A falta de perspectiva para seguimento das titulações, somadas à necessidade de moradia e trabalho, fizeram com que quilombolas do Paiol de Telha ocupassem uma área de pouco mais de 100 hectares em 2017. Assim, foi posísvel, viabilizar mínima sobrevivência digna às famílias negras quilombolas.

Nessa área cultivam feijão, mandioca, batata, abóbora, milho, criam de galinhas, porcos, vacas e cavalos, além de fixarem moradia. Se o TRF4 determinar o despejo dessas famílias os danos sociais serão grandes, pois perderão casa e trabalho, o que aprofundará o quadro de vulnerabilidade dessas.

Dessa forma, o TRF4 deverá decidir se o Incra e a União estão obrigados, por determinação Constitucional, a dar andamento efetivo, com disponibilização de orçamento, aos processos de titulação quilombola. Assim como também decidirá se a morosidade do Incra e a situação de necessidade das comunidades quilombolas no acesso à terra permitem a posse quilombola provisória em áreas ainda não tituladas.

Uma vitória judicial dessa comunidade garantirá vida digna a essas famílias, e importantes precedentes para as demais comunidades, uma vez que a comunidade quilombola de Paiol de Telha é um dos casos emblemáticos da trajetória da política quilombola no Brasil.

Diante deste quadro, no julgamento do dia 17/09, estará em jogo a posição do sistema de justiça quanto aos direitos étnicos, culturais e territoriais das comunidades quilombolas, cuja garantia e proteção se mostram fundamentais para a construção da democracia com justiça social.

Os efeitos da escravidão negra tricentenária ainda não acabaram, pois ainda há quem resista à emancipação do povo negro quilombola pelo acesso à terra.

Maira Moreira e Fernando Prioste são assessores jurídicos da Terra de Direitos e atuam na defesa dos povos tradicionais. Isabela da Cruz é historiadora, estudante de direito e quilombola do Paiol de Telha.

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