Uma personagem rebelde, inconformada, que não se dobrou diante do sistema patriarcal e depredador da classe operária

Ilka Corado

Dona Julia fazia isso, pedia uma colaboração, um ato humanitário e de solidariedade que o sistema chama de esmola. Era conhecida como a mulher que pedia esmolas no ponto de ônibus. Dona Julia tinha dois filhos que se drogavam e que ela os cuidava, em lugar deles cuidarem dela. Dona Julia, mulher de 70 anos, com uma perna doente – dizia ela que a ponto de gangrenar-se – nunca recebeu nenhum tipo de atendimento médico e muito menos pensão do governo, foi esquecida como milhões.

Impossibilitada de trabalhar, Dona Julia pegava sua muleta e seu bastão e ia para o ponto de ônibus pedir dinheiro, aí tomava seu café da manhã e almoçava e com sua boca de carreteira lançava tapas a torto e direito e à primeira provocação ia à bastonada pelos ares como látego. Muitos riam dela, a viam como louca, como uma mulher desequilibrada que ia a passar o tempo na parada porque não tinha o que fazer e aproveitava para pedir dinheiro.

Os dias não eram os mesmos por ali quando Dona Julia faltava, eram dias mortos, silenciosos, sem vida; ela, com seus vestidos de camurça, com suas pulseiras de cigana e seus impropérios que afiavam sua personalidade, dava vida à estação.

Eu via Dona Julia todos os dias, pois no mesmo lugar eu vendia sorvetes e passava boa parte da manhã observando-a; na convivência habitual dos vendedores ambulantes, havíamos nos acostumado uns com os outros que quando alguém faltava notávamos imediatamente; um dia Dona Julia faltou e a notícia chegou logo: havia falecido e no seu tugúrio encontraram dúzias de obras de arte, pinturas por todos os lados até debaixo da cama, tapizando as paredes; descobriu-se nesse momento que Dona Julia era artista, era pintora e boa parte do dinheiro que pedia no ponto de ônibus o utilizava para comprar utensílios para pintar. Ninguém nunca soube, ela nunca contou, foi seu segredo mais bem guardado. Não sei o que aconteceu com suas obras de arte, se jogaram fora ou as guardaram. Até o momento não se sabe delas.

Dona Julia foi uma personagem sempre, uma artista, desde sua vestimenta, personalidade e caráter até a forma de agarrar o bastão e lançá-lo pelos ares na melhor atuação de melodrama, porque não há melhor melodrama que a da própria realidade do abandono de nossos velhos. Desde esse dia eu a guardo na minha memória como “A artista do arrabalde” porque isso é o que ela é para mim, a artista da Cidade Peronia. Eu a nomeio e a reivindico e agradeço seu legado para todas as meninas, adolescentes e mulheres da Cidade Peronia.

Dona Julia para mim, foi insurreta por haver-se atrevido a fazer algo diferente ao que estamos destinadas às mulheres no arrabalde. Desconheço como foi sua infância e sua juventude, sua primeira idade adulta, mas na sua terceira idade ela foi uma mulher que se levantou, tomou sua muleta, apesar da sua doença, e seu bastão e buscou como pode, o dinheiro para sua criação artística. No processo se viu exposta a humilhações, burlas, a uma infinidade de apelidos depreciativos, por sua idade, sua aparência e seu caráter, por sua condição de ninguém; em um lugar de ninguéns ela se atreveu a ser alguém, a ser ela mesma, a ser “A artista do arrabalde”. Isso é o que fazem as mulheres rebeldes, as inconformadas, as que não se dobram diante do sistema patriarcal e depredador da classe operária, por mais injusto que ele seja com elas.

Por isso eu a nomeio e a reivindico, por isso agradeço seu legado de luta e desobediência. Dona Julia é parte da memória história da Cidade Peronia, e ganhou esse lugar por sua luta. Obrigada, Dona Julia, onde quer que esteja.

*Colaboradora de Diálogos do Sul desde Estados Unidos.

**Tradução: Beatriz Cannabrava

 

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