“O alimento socialmente produzido como objeto de lucro (bem de troca e duvidoso bem de uso), atravessado pela gênese mercantil-colonial, a expansão industrial capitalista, e agravado a níveis extremos nos marcos do neoliberalismo vigente, deixou há tempo de ser alimento. E suas consequências eminentemente políticas são cruciais. Porque o alimento foi e será semente indispensável do mais profundo sentido da politicidade da vida”, escreve Leonardo Rossi, jornalista e pesquisador em assuntos relacionados à soberania alimentar, impactos de projetos extrativistas e formas autônomas de organização política, em artigo publicado por Ardea, 22-08-2019. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.
Perifericamente em um Ocidente epistêmico, sob a anestesia das promessas sempre frustradas da urbanidade, com o ensurdecedor ruído da fé no progresso cientificista, e a lâmpada ofuscante da falsa ideia de desenvolvimento, nós nos esquecemos dos componentes essenciais que tecem a trama da vida. Contudo, nem mesmo este pungente esquecimento, em si grave, é o mais dramático.

Essa amnésia coletiva carrega como correlato intrínseco uma encalhada tara civilizatória pela qual nos obstinamos, dia a dia, em prejudicar as próprias fontes de nossos suportes elementares, que nos permitem se tornar organismos viventes. E ao fazer isso, sob uma marca profunda de soberba, celebramos a partir de um suposto dever ser da história os êxitos no avanço de uma corrida frenética, que se em algo não tem competidores é em sua capacidade (auto)destrutiva.

Esta potência erosiva opera de uma vez em vários planos, profundamente entrelaçados: sanitário, ambiental, social, cultural e fundamentalmente – isto é o interesse destas linhas – no das subjetividades políticas. Enfatiza-se, aqui, a autodestruição a partir da observação de um desses nós que formam o arcabouço disso que chamamos humanidade: colocaremos no centro deste relato o alimento.

Falaremos dessa fibra nutritiva que permite que a humanidade tenha vida biológica-cultural. Recuperaremos, então, para o alimento, essa tessitura que brota na dança de infinitos processos misturados que surgem do fluir da luz solar, da água, da terra, do ar, dos minerais e das comunidades humanas e não humanas, para decantar em energia disponível para nossos corpos, como parte de um tapete de complexas e solidárias redes de reciprocidade.

Partamos de recolocar a visão no mais terreno. Nesses alimentos que todos os dias, em menor ou maior medida, na atualidade, são ingeridos por boa parte das mulheres e homens que conhecemos. Ao menos, acreditamos, entendemos e confiamos que são alimentos. Ou talvez já nem sequer questionamos se são ou não são alimentos.

Pensemos em uma fruta com resíduos e mais de vinte pesticidas. Em um punhado de macarrão a base de uma farinha ultrarrefinada, produto de um trigo tratado com agroquímicos que acabará em nosso intestino. Uma carne bovina com origem em um feed-lot que deixou um solo morto, carregado de dejetos, já sem capacidade de ser assimilados, e fará outro tanto em nosso metabolismo. Bolachas com derivados de soja e de milho transgênicos, que para chegar a ser coletados deixaram regiões, rios e corpos de seu entorno mais próximo carregados de produtos tóxicos e assim dialogarão com nosso sistema digestivo. Por que isto se torna norma? Que mandato justifica este hábito? Quais são as consequências de tamanha contradição-emoção pela própria vida?

Ao menos como primeira proposta, surge revisar nossa própria humanidade, seu andar nesta terra, e então recordar que, exceto situação fortuita ou uma primeira experimentação, mulheres e homens buscaram na longa marcha humana evitar a ingestão sistemática – para além de bebidas e frutos que faziam parte de experiências religiosas pontuais – de alimentos que colocassem em risco sua saúde. Ao contrário, a pulsão à vida, entendida esta não em termos individuais, mas como sobrevivência da coletividade, aponta completamente o oposto.

Múltiplos trabalhos de perfil antropológico, etnográfico, histórico e econômico dão conta, há séculos, de que o alimento era alimento com a finalidade de satisfazer e acabar com a necessidade fisiológica-cultural de saciar a fome de diversas comunidades, oferecer as melhores condições de saúde para se adaptar ao território habitado, ao mesmo tempo em que surgia do trabalho coletivo e tinha profundo sentido de enraizamento cultural.

Como alcançamos este presente de hiperconhecimento científico-aplicado, em que sobram produtos derivados do agro em termos de cotas alimentares, segundo os organismos internacionais, sem cessar a fome dos famintos, ao passo que a outra grande parte da massa que, sim, se alimenta, segundo os cânones destas entidades, assiste a marcados processos de afecção em sua saúde, produto dessa mesma suposta alimentação? Como nos esvaziamos dessa intensa história que relaciona o cuidado da terra, de nossos corpos, de nossas culturas e nossas comunidades?

Sem dúvidas, violentos processos expropriatórios fizeram a tarefa inicial, sempre reeditada em novas geografias, para persistir depois mediante mecanismos insensibilizadores que nos tornam autômatos sujeitos consumidores de sucedâneos, insanos nutricionalmente, epistemicidas agroculturalmente e extremamente nocivos ecologicamente. E como nó, esses objetos carregam intrinsecamente a fundamental pegada despolitizadora da vida, tão claramente expressa na disputa pelo alimento.

Já não podemos ignorar que a política se baseia essencialmente na forma como as comunidades humanas se organizam para reproduzir a vida em vínculo com sua natureza exterior. Essa articulação coletiva, em busca de adaptação a diversas geografias e ciclos naturais, teve na obtenção do alimento e da água seu sentido mais elementar, mesmo que já não recordemos mais disso.

A politicidade do alimento e a politicidade da reprodução da vida humana, em seu mais literal sentido material, são dois aspectos inseparáveis. Portanto, são chaves do fazer e, sobretudo, do pensar político, ainda que não por acaso tenham sido apagados das páginas mais difundidas da teoria política. Recolocarmo-nos aí, talvez nos permita desandar caminhos, para enfrentar a calamitosa crise civilizatória (climática, ecológica, migratória, política, emocional) que atravessamos e, então, sim, encontrar algumas possíveis respostas e propostas.

Será, então, tarefa urgente dotar de sentido político nossa palavra-território em questão: o alimento. Ingerir um objeto carregado de veneno não é saudável. Se não é saudável, entendemos que não é alimento. Um objeto que destrói a terra só para gerar um lucro abstrato fere, nesse processo, nossos próprios suportes biofísicos. Portanto, digamos, não é alimento. Um objeto, fruto do solo e do trabalho humano, que pode ser descartado em grande escala, porque não encontrou o melhor preço de mercado ou serve para especular, é absolutamente lesivo em termos sociais. Então, está claro, não é alimento. E assim poderíamos continuar.

Mas, não se trata de cair em um binarismo vão sobre quem está no caminho correto da alimentação e quem não. Pelo contrário, trata-se da busca sensata do cuidado sempre sentido em termos coletivos. De assumir que chegamos a este presente carregado de profundas feridas que chegam a nossa carne, permeiam nossos imaginários, e se manifestam em nossas inconscientes claudicações cotidianas, operadas através da alimentação. É questão, portanto, de caminhar a senda para recuperar o sentido pleno do alimento, não como objetivo pessoal em prol de uma dieta de melhor qualidade para um corpo isolado, mas como impostergável disputa política do nos reter como comunidades que compreendem seu formar parte desta trama da vida.

É deste ponto de partida que se torna imperioso deixar explícito que isso do qual falamos diariamente não é alimento. O alimento socialmente produzido como objeto de lucro (bem de troca e duvidoso bem de uso), atravessado pela gênese mercantil-colonial, a expansão industrial capitalista, e agravado a níveis extremos nos marcos do neoliberalismo vigente, deixou há tempo de ser alimento. E suas consequências eminentemente políticas são cruciais. Porque o alimento foi e será semente indispensável do mais profundo sentido da politicidade da vida.

Aí foram forjados os laços que sustentam esta espécie humana no planeta, como parte de uma gama diversa de “apoios mútuos”, como bem destacou, há mais de um século, Kropotkin. O vínculo espiritual inalienável com a terra (que foi, é e será) habitada, o trabalho comum, o saber e o sabor coletivo, e o cuidado do ecossistema (exterior-território e interior-corpo) se encontram – em sua dupla acepção – no alimento. Tudo isso tentaram e ainda insistem em minar de cima, com grande eficácia em inocular a amnésia de crescentes faixas dos “de baixo”.

Quando a filósofa e ativista hindu Vandana Shiva lança a ideia de ‘monoculturas da mente’ para condensar a potência do agronegócio em termos de subjetividades, convida a revisar os imaginários que circulam diariamente, seja em forma de notícias, políticas públicas, legislações, conversas no lar ou no espaço público.

“Colheitas recorde”, “Grande expectativa pela entrada de divisas do agro”, “Pujança da indústria alimentar: cresce a venda de primeiras marcas”, são frases que podemos recriar com base na experiência discursiva hegemônica que nos habita. Estas eufóricas mensagens de celebração têm seu reverso na preocupação de setores político-partidários, acadêmicos e comunicacionais, quando estes indicadores caem. Uma vez e outra, a partir da chamada “opinião pública”, alertam sobre os aliciados números macroeconômicas, como se de forma linear esses movimentos de mercado fossem uma marca indelével de um suposto bem-estar.

Quando a maré dos grandes mercados está em uma boa, segundo essas concepções, pouco ou nada dizem os aduladores do crescimento em si a respeito dos impactos ecológicos, sanitários e subjetivos desses gráficos em alta. Quando vem a má, claro, muito menos. No melhor dos casos, a qualidade do alimento, quem e como é produzido, o que a estrutura social possui em sua composição é um debate sempre postergado, nunca tão urgente como colocar um prato de comida para todos de forma imediata. E quem se oporia a isso [?]. Não é esse o ponto em questão. É que as discussões não são excludentes, ao contrário, indefectivelmente, devem ocorrer simultaneamente, se é que genuinamente desejamos que a comunidade se alimente, se ansiamos uma saúde próspera dos corpos e os territórios.

Dizia Hipócrates que “o alimento seja o seu remédio”, e em pleno século XXI parece que boa parte das vozes hegemônicas, da direita e de boa parte da esquerda, não chegaram a compreender totalmente a frase. “Que as dietas voltem a ter mais frutas, que volte a crescer o consumo de carne e peixe, e que aumente a ingestão de leite”, enfatizam dirigentes político-partidários, comunicadores e diversos formadores de opinião. E mais uma vez, ninguém pode se opor. Frente à brutal pilhagem de cima, o tempo alimentar se apressa.

Mas, restam dúvidas de que já entramos tarde na discussão, de que é impostergável manifestar se queremos nos alimentar para se curar ou seguiremos com a ingestão de sucedâneos que multiplicam as problemáticas sanitárias em escala massiva [?]. Quem ainda pode desconhecer as graves patologias causadas pelos alimentos ultraprocessados, pelos microdoses de pesticidas que ingerimos diariamente, pelo sobreconsumo de carnes e leites de péssima qualidade, saturadas de antibióticos, de peixes extraídos de rios tingidos de glifosato e outros agrotóxicos [?].

A recuperação do alimento não se trata de um tema que deva ficar reduzido a círculos do ativismo, que podem muito bem marcar outros horizontes possíveis, assim como nunca deixaram de fazer comunidades camponesas e indígenas. Mas, trata-se de interpelar e (com)mover estruturas sociopolíticas e emocionais profundas. Claro que os “formadores de opinião”, tomadores de decisões em políticas públicas e agentes de mercado, sejam liberais, conservadores ou progressistas, ignoram esta urgência ou deliberadamente a negam.

Adiar esta discussão com a informação hoje disponível é temerário. É não tomar nota da catástrofe social, ecológica, sanitária que implica o atual padrão civilizatório com um modelo agroalimentar brutal como base. Devemos remarcar este negacionismo, sem dúvidas, mas sobretudo será necessário orientar o fluxo de energias políticas em uma profunda pedagogia de baixo, baseada em um profundo sentido do amor, que retome a politicidade da vida na maior diversidade de âmbitos possíveis. Será este (e já é) um processo, repleto de complexidade, assim como é a vida em seu devir. Não se pensa, aqui, em mudanças instantâneas, em movimento de algumas peças e nomes como parte da (nunca alcançada) transformação. Essa é a lógica que sempre prometem de cima.

Será necessário, então, artesanalmente, cultivar o solo para que o retorno do alimento a nossas vidas cresça com raízes sadias e duradouras. Na diversa geografia que habitamos estão dadas as condições para transitar para alimentações diversas, saudáveis, sustentáveis, em processos agroprodutivos agroecológicos, livres de xenobióticos, baseados em sua grande maioria em circuitos curtos de comércio, justos para agricultores e consumidores, com marcado sentido de solidariedade.

Já temos aval para iniciar o cultivo de nossas hortas do futuro, porque há grande quantidade de experiências que multiplicam estas sementes de esperança: comunas pela agroecologia, cooperativas de produtores e produtoras, e redes agrícolas em transição agroecológica, coletivos de consumo consciente e uma infinidade de exemplos.

Que então o alimento volte a ser a essência de nossas humanas existências, essas que sabem do cuidado da terra, da água, da biodiversidade, do corpo e do espírito, do fazer em comum para dignificar nosso modo de sentir e práticas, e em última instância nosso próprio sentido de conceber a densidade política da vida.

O artigo original pode ser visto aquí