Reportagem relembra ocupação da Fazenda Annoni, realizada pelo MST há 30 anos, no Rio Grande do Sul.

por Fernanda Canofre e Gerson Costa Lopes, do Sul | 21 publicado 01/11/2015

O ponto era a Encruzilhada da Barca, às duas horas da manhã, da terça-feira, 29 de outubro de 1985. Um fusca vermelho estaria parado no local como sinal. A estrada de chão ainda guardava água da chuva do dia anterior.

Aos poucos vinham chegando os caminhões carregados de homens, mulheres, crianças e uns poucos pertences na caçamba. Gente que vinha de 33 municípios da região norte e noroeste do Rio Grande do Sul. Para limpar a estrada e não despertar suspeitas, quem chegava, ia se escondendo nas estradas vicinais ao redor do local esperando a próxima ordem.

Por volta das 2h15, dois brigadianos responsáveis pelo posto na Fazenda Annoni, passaram pela Encruzilhada fazendo sua ronda. Era noite de lua cheia. Na estrada, só se ouvia o barulho dos grilos. Encontraram o fusca abandonado com uma das portas abertas. Sem sinal de ninguém por perto, os policiais revistaram o veículo, checaram as imediações e resolveram seguir em direção a Ronda Alta.

Se tivessem dado alguns passos para dentro de uma das estradas que entravam nas lavouras, os brigadianos teriam se deparado com mais de 4 mil pessoas em silêncio, segurando choro e nervosismo. Mas sem encontrar nada, apenas seguiram caminho.

Os colonos correram para o carro, queriam ver se havia ficado algo que despertasse suspeita da polícia. Fecharam as portas que estavam abertas e voltaram a se esconder para esperar o grupo que se atrasou retido na estrada. Quinze minutos depois, os policiais voltaram. Estranharam as portas fechadas, ainda sem ter sinal de haver alguém por perto. As buscas para encontrar qualquer pista foram outra vez em vão. Talvez para levar a informação, talvez desconfiando de algo, talvez por realmente não achar que o fusca fosse um problema, embarcaram na viatura e foram embora.

A tensão com a presença da polícia serviu como combustível. Antes das 3 horas da manhã, Isaías Vedovatto, um guri magro de 19 anos, segurava o alicate nas mãos trêmulas para cortar o arame que separava os 9 mil hectares da Fazenda Annoni do sonho daquela gente. “Não passava nada pela cabeça. Só queria cortar a cerca de uma vez. Lembro do zunido dos cinco fios de arame sendo cortados, como se fosse o início de uma música”, recorda.

A história da primeira ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que começou com o arame cortado, foi lembrada quinta-feira, durante as comemorações dos 30 anos da ocupação da Fazenda Annoni. A programação ocorreu no Assentamento Novo Sarandi, em Sarandi, região norte do Rio Grande do Sul, com a presença do coordenador nacional do MST, João Pedro Stédile, além de outras lideranças.

Até domingo (1º), ocorre, no mesmo local, o Acampamento Estadual da Juventude Sem Terra. O lema deste ano é “Somos filhos e filhas de uma história de lutas”. A expectativa era reunir cerca de 800 jovens de todas as regiões do Rio Grande do Sul, e representantes de Santa Catarina e Paraná.

Organizar para ocupar
Enquanto o grupo cravava as primeiras estacas no solo da Annoni durante a madrugada do dia 29, outros 2,5 mil agricultores, na carroceria de 30 caminhões, saídos de Santo Ângelo, Palmeira das Missões e outros municípios, vinham decifrando senhas ao longo do trajeto para encontrar a fazenda. Galhos de árvores deixados nos cruzamentos, carros estacionados nos trevos, sinal de luz, tudo servia para indicar a direção. Os primeiros raios de sol de terça-feira já estavam quase despontando quando o comboio chegou ao destino. Naquele momento, já eram 7,5 mil pessoas reunidas dentro da Annoni.

“Tivemos 72 horas para traçar o caminho e os desvios da polícia. Saímos em comboio. A orientação era, em caso de abordagem policial, desembarcar e montar acampamento na estrada mesmo. No trevo de Sarandi havia um corcel marrom nos esperando. Quando chegamos na Annoni, a cerca já havia sido cortada. A polícia já estava lá ”, lembra Darci Maschio, um dos assentados e um dos líderes do assentamento. Naquela noite, o comboio de gente vindo de Erval Seco chegou liderado pelo seu fusca.

GERSON COSTA LOPES/MST  Mário Lil, Isaías Vedovatto e Darci Maschio atuaram na liderança da ocupação e ainda hoje são assentados na Annoni

GERSON COSTA LOPES/MST
Mário Lil, Isaías Vedovatto e Darci Maschio atuaram na liderança da ocupação e ainda hoje são assentados na Annoni

Para reunir um contingente com pessoas de 33 municípios e duas regiões diferentes do estado, foram necessários quase dois anos de organização. Uma movimentação que teve guarida no seio da Igreja Católica, apoiada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). O Movimento Sindical Combativo também surge como ferramenta importante neste processo. Ao final das missas, o padre convidava quem se interessasse, para realizar um debate com o grupo de jovens que o acompanhava. Na pauta, o problema da terra. O mentor dessa organização era um veterano de ocupações: Padre Arnildo Fritzen. Anos antes da Annoni, ele já havia ajudado pequenos agricultores expulsos de terras indígenas de Nonoai e Planalto a organizar ocupações e negociar com o governo do Estado.

“O berço mesmo de tudo é Macali, Brilhante e Natalino. Porque aquilo é uma escola de formação e é o lugar onde as pessoas começam a firmar a convicção de que é possível os pequenos conquistarem seus direitos”, lembra padre Arnildo, se referindo as outras duas grandes áreas de terra da região ocupadas no final dos anos 1970. Foram elas que serviram de modelo para a grande movimentação da Fazenda Annoni anos depois.

Com experiência de driblar a ditadura militar, as reuniões clandestinas eram organizadas com cuidado pelo padre. “O medo era grande. Havia a experiência da Encruzilhada Natalino, onde a repressão foi muito forte. Era preciso todo o cuidado”, conta Isaías Vedovatto. Os pontos de encontro dos representantes de cada região eram com frequência casas de agricultores ou a igreja de Ronda Alta, onde Arnildo Fritzen era um dos responsáveis. Ali, as reuniões dos sem-terra a portas fechadas, se transformavam em “formações de catequistas”, “treinamento de grupos de jovens”. Quando não sentiam segurança nem nestes locais, iam para o meio do mato, durante a madrugada. “Só acendíamos as lanternas. Sempre em grupos pequenos, no máximo doze ou treze pessoas, só a comissão diretiva”, relembra padre Arnildo.

As festas da igreja e bailes também funcionavam como fachada para angariar fundos para a causa. O dinheiro cobria despesas com deslocamentos e como apoio para os sem-terra acampados. Muitas vezes, era nestas festas que os representantes dos agricultores de cada região poderiam se reunir sem levantar suspeita.

Mudança de planos
Foi o que aconteceu no Baile do Chopp de Ronda Alta, no sábado de 26 de outubro de 1985. Em 1984, quando o MST foi criado no Congresso de Cascavel, no Paraná, tomaram a decisão de que deveriam seguir com as ocupações de grandes latifúndios como forma de pressionar os governos. Esperar por eles, poderia virar uma vida sem solução. Como era o caso das 57 famílias de desalojados da barragem de Passo Real, no noroeste do Rio Grande do Sul, que aguardavam há 12 anos por terras, dentro da Fazenda Annoni, sem poder produzir nem um hectare.

A Fazenda do tamanho de 9 mil campos de futebol serviu como modelo perfeito da luta que o MST começava. Há décadas que as terras da família Annoni não produziam nada. Estavam tomadas pelo capim importado pelo patriarca para servir de pasto para o gado, mas que virou praga em todo o Estado. Algumas cabeças magras de gado tentavam justificar a propriedade privada. Ficou decidido então, que o MST levantaria sua bandeira em duas grandes ocupações simultâneas que mostrassem o quanto a reforma agrária era necessária: Annoni e uma fazenda em Erval Seco.

Em Ronda Alta, numa mesa com cerveja e comida alemã, Isaías se inteirou que os planos de ocupar a propriedade em Erval Seco não deram certo. A propriedade de Erval não estava completamente improdutiva, era menor do que haviam previsto, não se encaixava no perfil de latifúndio que o movimento mirava. Ao invés disso, os agricultores que programavam a ação na cidade, agora estavam a caminho de Ronda Alta para entrar na Annoni.

Isaías não gostou muito da ideia. O rapaz franzino que cresceu numa terra que o pai conquistou com a tentativa de reforma agrária de Brizola em 1962, era um dos organizadores da ocupação. Apenas ele e mais três pessoas sabiam do ponto onde a caravana deveria entrar na madrugada do dia 29 e temia que colocar mais gente, de última hora, pudesse lhes custar caro. Mas aceitou.

Enquanto moradores da comunidade se divertiam no baile, alheios ao que ocorria na mesa, o grupo definiu que a ocupação aconteceria na próxima terça-feira, dia 29 de outubro de 1985. Duas noites depois.

Além da cerca
Depois de cortada a cerca, Isaías lembra que havia pressa de todo mundo para entrar e liberar os caminhões antes do amanhecer. Todo mundo só pensava em descarregar os poucos pertences que haviam trazido e começar a fixar os barracos. O Padre Arnildo recorda, porém, de um gesto simbólico que já havia se tornado ritual com as ocupações anteriores naquela mesma região. Muitos agarravam um punhado de terra e levantavam para o alto dizendo: isso aqui é nosso. “Foi aquela sensação de um terra conquistada”, diz ainda emocionado trinta anos depois.

Conforme as horas iam passando, mais famílias iam chegando. No começo da manhã de terça-feira, já eram 1.500 famílias pedindo por um pedaço de terra em cima da Fazenda Annoni, segundo Darci Maschio. Muitos deles pequenos agricultores que não conseguiam tirar sustento dos poucos hectares que dividiam com os pais, outros tantos sem nenhum canto de terra para plantar. Gente que não queria ir para a cidade em busca de uma vida melhor, pertencia ao campo.

Ao contrário do que acontecera com as Fazendas Macali e Brilhante, dessa vez o governo agiu rápido. Quando o dia amanheceu a Brigada Militar de Passo Fundo, há 40 minutos de distância dali, já havia deslocado um batalhão para o local. O cerco a Annoni duraria meses. Nos meses seguintes, cada pessoa que quisesse entrar ou sair da propriedade teria de ser revistada. Uma relação que ficaria ainda mais tensa no ano seguinte.

O acordo firmado pelo então secretário da Agricultura, João Jardim, definia para os sem-terra o mesmo acordo feito com os “parceleiros” desalojados de Passo Real que estavam ali: poderiam ficar, desde que não plantassem, nem produzissem nada. No começo, os agricultores aceitaram. Teriam dois meses de paciência ainda com o governo, até perceberem que a tática era velha forma de ganhar tempo. O dono da fazenda também não daria o braço a torcer fácil. Já havia embargado o processo de desapropriação uma vez em 1972, não ia deixar 9 mil hectares irem assim.

Mas no amanhecer do dia 29, nada disso era preocupação. Mais de 7 mil pessoas, como uma nova cidade que havia se juntado de repente, se reuniam para discutir e debater algo importante: o nome do filho de Roseli. A agricultora de Rondinha que puxou o marido e os dois filhos para cima de uma caminhão, com uma barriga de quase dois meses, deu à luz na Annoni na mesma noite em que os barracos eram construídos. Todos juntos, os colonos batizaram o primeiro bebê de um assentamento de Marcos Tiarajú, em homenagem ao herói indígena das Missões.

A ocupação da Annoni teria ainda grandes episódios, como a marcha a pé desde Pontão até Porto Alegre, o acampamento de dois meses dentro da Assembleia Legislativa, o protesto de milhares de pessoas deitadas em frente à Catedral Metropolitana exigindo serem ouvidas. Além disso, impulsionou ocupação de terras em todo o Brasil. No Estado, seguiram acampamentos por Joia, São Gabriel, Cruz Alta, Viamão.

Era o início de um novo movimento num país engatinhando para fora de uma ditadura. E tudo começou naquela madrugada de outubro, depois da chuva.

Fonte: Rede Brasil Atual

wn